Introdução

AutorRoberto Basilone Leite
Ocupação do AutorJuiz do Trabalho em Santa Catarina, Mestre e Doutor em Filosofia e Teoria do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e Vice-Diretor da Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho de Santa Catarina
Páginas19-29

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Há vários anos vínhamos acalentando a incômoda e persistente dúvida acerca do papel que efetivamente cabe ao juiz no âmbito do Estado democrático de direito e, em termos mais específicos, no âmbito do Estado pós-autoritário em fase de transição para a democracia, e sobre a consequente questão de saber se o poder judiciário brasileiro padece de um déficit político institucional decorrente de sua eventual incapacidade para executar de modo razoavelmente eficaz esse papel. Foi tal dúvida que nos motivou a empreender os estudos cujos resultados estão sintetizados neste livro.

Para que possamos saber se existe ou não um déficit político na atuação das varas e tribunais brasileiros, é necessário primeiro delimitar qual o âmbito de atuação próprio da jurisdição do ponto de vista político institucional, ou seja, quais funções cabem e quais não cabem ao Poder Judiciário no contexto organizacional do Estado de direito.

Ocorre que a tarefa de fixar os limites da função jurisdicional envolve algumas variáveis. Em primeiro lugar, não há como se pretender descrever a priori e em tese a função normativa que, do ponto de vista político institucional, incumbe à jurisdição na estrutura do Estado sem que tenhamos definido antes que modelo de Estado estamos considerando. Com efeito, ao Poder Judiciário de um Estado autoritário ou totalitário são atribuídas funções diferentes das que cabem ao Poder Judiciário de um Estado democrático. Cada tipo de Estado exige que os juízes assumam determinadas tarefas, responsabilidades e poderes adequados às necessidades específicas do respectivo regime político. Assim, nossa primeira opção consiste em estabelecer que a análise do papel institucional do Poder Judiciário será efetuada no contexto do Estado democrático de direito, com foco na democracia deliberativa.

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Sem embargo de existirem inúmeras conceituações por meio das quais cada autor procura melhor delinear a ideia de democracia deliberativa, nos concentraremos nos estudos realizados pelo filósofo alemão Jürgen Habermas, que ocupam um lugar importante no debate contemporâneo e apresentam certas condições favoráveis à abordagem a que nos propomos, conforme será esclarecido mais à frente. O conceito de democracia deliberativa será adotado, obviamente, em sentido normativo, para servir de aporte à descrição teórica e delimitação da função jurisdicional no contexto do mecanismo estatal.

Parece claro que só poderemos apontar a existência de déficit político em determinado aparato judiciário histórico em face de dois parâmetros: a) um pano de fundo que defina quais são as funções típicas dessa instituição, considerando o modelo de Estado no qual ela se insere (para o que consideraremos, portanto, o regime democrático deliberativo), e b) um rol de elementos capazes de demonstrar a deficiência desse poder secular para o desempenho razoavelmente eficaz de tais funções. Indagaremos, assim, se é teoricamente sustentável o postulado de que o Poder Judiciário brasileiro padece de um déficit político institucional decorrente de sua incapacidade para dar conta das funções típicas que, no contexto democrático deliberativo, cabem a ele, e exclusivamente a ele, desempenhar.

Convém, desde já, ressaltar que a expressão função política do Judiciário é empregada aqui no sentido de delimitação da função institucional que incumbe especificamente a determinado ramo de poder do Estado. O Judiciário é uma instituição estatal e, dessa forma, a constituição reserva a ele determinado rol de competências, poderes e deveres – e dessa forma seu papel político-institucional, no sentido aqui pretendido, é aquele que resulta da distribuição constitucional das funções na estrutura organizacional do aparelho estatal. Procuraremos demons-trar, ao longo da obra, que a função política do Judiciário consiste não em decidir sobre questões de mérito político mas em garantir efetividade aos direitos dos indivíduos e das minorias e, com isso, assegurar validade e efetividade ao sistema de direito do qual depende a integridade do Estado.

A função política da justiça, nesses termos, tem conteúdo jurídico, e não político, muito embora a decisão judicial produza efeitos políticos secundários. Quando aplica a norma constitucional de modo a garantir o direito do cidadão – até mesmo contra uma decisão de mérito político tomada pelos poderes Legislativo ou Executivo – o tribunal está desempenhando sua função política institucional (ou, poderíamos dizer: sua função política em sentido institucional); ao contrário, quando o tribunal profere decisão de mérito político, poderá não estar cumprindo sua função política institucional, porque sua decisão de mérito político poderá estar contribuindo para obstruir o direito de participação dos cidadãos, que representa direito constitucional fundamental de primeira ordem no regime democrático.

Diante disso, poder-se-ia indagar: qual é, então, o lugar da política no âmbito do Poder Judiciário? O lugar da política no contexto do Poder Judiciário está, por um lado, na precisa definição do papel político institucional que a ele cabe

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enquanto instituição pública dotada de poderes e deveres e, por outro lado, na obrigação de garantir ao cidadão e às minorias o direito político fundamental de participação. Este raciocínio poderia conduzir à conclusão precipitada e aparentemente paradoxal de que o lugar da política no Judiciário é um lugar vazio, já que sua função política é “não fazer política”, isto é, não é proferir decisões sobre questões de mérito político, porque tal atitude tolhe o direito fundamental de participação que o Judiciário deveria estar garantindo ao cidadão e, por conseguinte, implica uma postura em função da qual o Judiciário descumpre sua função essencial, que consiste em garantir os direitos fundamentais. Mas esse aparente vácuo que ocupa o lugar da política no âmbito da estrutura judicial constitui mera ilusão de ótica, que confunde o observador apenas quando ele assume a postura restritiva de vincular a ideia de política exclusivamente a decisões sobre questões de mérito político; se, ao contrário, buscarmos o lugar da política dentro do Judiciário considerando a política como o espaço institucional que incumbe a determinado órgão componente da máquina estatal e que envolve certo rol de competências, deveres e poderes, esse vácuo aparente desaparecerá, no exato momento em que percebermos que a função política do tribunal não é decidir politicamente, mas sim decidir juridicamente no sentido de garantir os direitos, inclusive os direitos políticos. Neste passo, concluímos que o lugar da política no âmbito judiciário se confunde, de certa forma, com o lugar do direito; está neste subsumido, já que o papel político do juiz consiste em dar efetividade aos direitos, dentre os quais se inclui o direito fundamental do cidadão de participação nas decisões políticas. Tal discussão conduzirá necessariamente ao confronto entre as correntes teóricas substancialista e procedimentalista do direito, que analisaremos oportunamente.

Destarte, o ponto de partida do presente estudo pode ser sintetizado na seguinte hipótese: considerando que, no Estado democrático deliberativo de direito – como tal compreendido aquele cujo mecanismo de legitimação do exercício do poder político se fundamenta na deliberação pública institucionalizada e orientada segundo regras que incorporam a participação dos cidadãos no processo de produção, interpretação e execução das normas estatais – a função política institucional do Poder Judiciário consiste não em proferir decisões sobre questões de natureza política...

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