Vozes da independência

AutorRita de Cássia Marques Lima de Castro
CargoEstudante de Doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo ? PROLAM/USP
Páginas53-74

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Introdução

Para se debater os ideais dos homens que pensaram e agiram na América Latina, cabe compreender sua formação e o contexto da época em que viveram, o final do século XVIII e início do século XIX, período das independências das colônias latino-americanas. Assim, este artigo está dividido em duas seções: na primeira parte, apresentamos uma contextualização da época em que estouraram as revoluções que levaram à independência das nações latino-americanas, visando trazer a visão geral do que ocorria naquele momento histórico e quais as causas comuns das ações de independência.

Na segunda seção, inicialmente, são apresentadas breves biografias de Simón Bolívar e José Martí, escolhidos como representantes dessa categoria de homens pensadores-atores. Esses homens de ideia-ação, justamente por serem atores, não podem ser dissociados dos fatos, para que possamos compreender suas ideias políticas. Portanto, vale ressaltar, também contextualizamos regionalmente o espaço em que o pensador revolucionário exerceu suas ideias de nacionalidade, de maneira que possa haver melhor compreensão dos escritos, como defende Sociano (1977).

Lynch (2001) observa que a América, vasto continente de ideias particulares segundo as peculiaridades de cada sociedade distinta, desenvolvia uma consciência dessa nacionalidade bebendo de literatura exclusivamente americana, literatura esta inicialmente produzida pelos jesuítas. Posteriormente, ainda que houvesse a influência da filosofia francesa e das ideias do iluminismo, maior influência coube ao novo americanismo, como veremos no decorrer deste artigo.

A seguir, comparamos escritos selecionados de Simón Bolívar e José Martí, sendo que foram utilizados, para esta comparação, as versões em Língua Portuguesa e os textos em Espanhol, obtidos eletronicamente em bibliotecas virtuais, por considerarmos estes últimos a fonte mais precisa para a compreensão da ideia original, reduzindo-se o viés natural da versão para outro idioma. Nas ilustrações mais longas, optamos por deixar o texto escolhido em notas de rodapé, visando não quebrar o raciocínio comparativo.

Cabe ressaltar que a proposição de analisar comparativamente os escritos nos permite apresentar as ideias expostas, categorizando-as em temas, como apresentado adiante. É importante observar que todo recorte pressupõe escolhas e limitações; assim, esta comparação não tem a pretensão de ser exaustiva; apenas de apontar as ideias que consideramos mais pertinentes para o escopo deste trabalho.

1. Contextualização — a américa latina pré-independência

Bomfim, em 1903, ao discorrer sobre os males de origem que fizeram a América Latina estagnar-se, males estes derivados do parasitismo que Espanha e Portugal exerceram sobre suas colônias, aponta os vícios decorrentes de 300 anos desse parasitismo, vícios estes que, por serem também um reforço às revoluções, valem ser aqui destacados: a exploração da terra sem a visão da conservação, sem a visão da “coisa pública”; um Estado visto apenas como opressor e tirânico e espoliador, uma população dividida, a formação de sociedades

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desabituadas ao trabalho, afeiçoadas a combates e aventuras guerreiras. “Perversão do senso moral, horror ao trabalho livre e à vida pacífica, ódio ao governo, desconfiança das autoridades, desenvolvimento de instintos agressivos.” (BOMFIM, edição de 1993, p. 151.)

Esses vícios permaneceram após a independência e, ousamos afirmar que estão tão presentes hoje em dia como estavam quando Manoel Bomfim escreveu sua obra, no início do século XX. López Chirico (2008) aborda esses vícios denominando-os herança colonial e comenta que tal legado, além de ser um dos fatores da fragmentação das colônias em mais de vinte nações, também foram “a base das dificuldades para a conformação dos Estados nacionais até meados do século XIX” (LÓPEZ CHIRICO, 2008, p. 27). Como ponto positivo, no entanto, serviram como fator de união das nações emergentes em sua busca da independência, foram um fator comum entre elas.

Para Sodré (1997), a independência dos países latino-americanos, ainda que tenha sido particular em cada área colonial da Espanha e de Portugal, foi um processo único no que se refere ao conjunto de fatores que o impulsionaram. Esse processo tem início com a Revolução Industrial, passagem do mercantilismo para o capitalismo. O capitalismo traz a ascensão de uma nova classe — os burgueses e as exigências de abertura comercial e eliminação do trabalho escravos, exigências incompatíveis com o sistema colonial. Se quanto ao primeiro senão — a abertura comercial — houve associação de interesses entre a classe dominante nas colônias e a burguesia industrial europeia, quanto à abolição não houve consenso.

“A independência ocorre no momento em que as pressões externas pela liberdade de comércio, pela abertura do mercado colonial americano, conjugam-se com as pressões internas, no sentido de abolir a subordinação ao intermediário nas trocas.” (SODRÉ, 1997,
p. 142.) Esta visão assemelha-se à de John Lynch, entre outros historiadores. Ele defende que a ideia de ruptura deriva das reformas chamadas bourbônicas, cujo auge foi entre 1759-1788, época do reinado de Carlos III. Essas reformas foram muito centralizadoras e levaram os diferentes grupos sociais que compunham as colônias a reagirem com animosidade a esse controle, ampliando a difusão das ideias e sentimentos americanistas que explodem com a destituição do rei espanhol por Napoleão Bonaparte em 1808. Outros historiadores, como Tulio Donghi, associam diretamente as ações de independência das colônias a essa invasão francesa e à perda do poder espanhol (Soares, 2008).

Em 1808, quando a Espanha é invadida pela França e Napoleão destitui o rei, Fernando VII, José Bonaparte, irmão de Napoleão, passa a governar o país. As colônias espanholas na América se insurgem contra o governo local, não reconhecendo a autoridade, visto que não havia rei legítimo a quem respeitar, e formam juntas locais para governar, uma tradição medieval que trazia por trás a ideia de um governo legítimo, em que a vontade popular pudesse ser respeitada (López Chirico, 2008).

Segundo López Chirico (2008), o processo de independência da América Latina, embora tenha ocorrido de forma simultânea, não foi linear e tampouco houve profusão de contatos entre os movimentos revolucionários:

O Vice-Reinado da Nova Espanha (México) conseguiu sua independência isolado da América do Sul, ainda que com relações estreitas com a América Central influindo

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muito em seu processo. E na América do Sul, diferentes focos revolucionários autônomos
— Caracas, Nova Granada (Colômbia), Chile, Rio da Prata — só chegaram a relacionar suas trajetórias porque a habilidade militar de Bolívar e San Martín percebeu que somente seria possível derrotar a Espanha fazendo com que todas as forças revolucionárias convergissem para o Peru, onde os espanhóis haviam se fortificado. Esta foi a razão das grandes campanhas de libertação continental que culminaram em Ayacucho, em 1824. (LÓPEZ CHIRICO, 2008, p. 34.)

Tal processo também sofreu uma alteração em seu objetivo: “(...) mudou de uma intenção meramente autonomista para a concepção de independência total.” (LÓPEZ CHIRICO, 2008, p. 33.) Mudança esta que não era uma unanimidade entre as populações de cada região e, portanto, muitas guerras civis se seguiram à independência. O sonho de uma América unificada territorialmente ruiu, com exceção do Brasil, que conservou sua extensão territorial e teve um processo de independência mais caracterizado por emancipação do que por revolução. “No Brasil, o processo de emancipação importou mais na medida em que destruiu invertera das peias, que lhe embargavam o passo, do que pela introdução de práticas vigorosamente revolucionárias” (BARRETO et al., 1993, p. 39.)

No Brasil, ainda que a independência não tenha resultado em uma mudança de governo, visto que aqui se manteve a monarquia, não foi diferente a herança colonial e o processo de emancipação sofreu os mesmos entraves e resistências: “(...) as duas aspirações — a da independência e a da unidade — não nascem juntas e, por longo tempo ainda, não caminham de mãos dadas.” (BARRETO et al., 1993, p. 9.)

Essas resistências são causadas, no dizer de Bomfim (ed. de 1993), pelos remanescentes da metrópole, aventureiros, parasitas e subparasitas que viviam da exploração e benesses da metrópole sobre a colônia e que ficaram na América Latina como um “dente de ixode”, o dente que o parasita deixa, incomodando, quando larga a presa. Esses remanescentes, em um primeiro momento, resistiram à independência, mas quando constataram que esta era irreversível, acomodaram-se e ficaram incomodando a evolução política dessas nações latino-americanas, por meio da deturpação da razão primeira da revolução, intervindo e escamoteando, influenciando a ponto de, como apresentado na segunda seção, abalar algumas proposições como a da América unida, defendida por Bolívar, ou mesmo — e principalmente — reduzir as mudanças, manter o status quo.

Podemos afirmar que os processos de libertação das metrópoles aconteceram na América Latina, mas as mudanças estruturais, as que visavam mais justiça, igualdade e democracia, não vieram (López Chirico, 2008). Para Bomfim (ed. 1993), ao contrário dos Estados Unidos, nação que estava pronta quando afirmou sua independência, na América Latina tudo estava por fazer: “(...) não se tratava, apenas, de educar populações novas para a justiça e a...

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