Visões econômicas da flexibilização dos Direitos Trabalhistas

AutorHélio Zylberstajn
Páginas124-139

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I Introdução

Crowdsourcing, o que é isso?1 Ao pé da letra significaria terceirização em massa, mas a tradução precisa ser mais explicada. Trata-se de contratar pela internet trabalhos realizados em pequenas tarefas na internet, quase na forma de pesquisa. Os interessados (milhares, ou multidões, daí a palavra crowd) mandam suas repostas ou sugestões que, se aproveitadas, são pagas pelos contratantes. No Brasil, para evitar problemas com o fisco, os pagamentos são pequenos, situando-se abaixo da faixa da isenção tributária. Este exemplo de contratação de trabalhadores é evidentemente um caso extremo, mas ilustra muito bem o contraste existente entre a velocidade e a diversidade das mudanças no mercado de trabalho e a lentidão na percepção e na evolução do Direito do Trabalho e mais genericamente das políticas de regulamentação do mercado de trabalho.

Neste mundo de relações de trabalho crescentemente descentralizadas, digitalizadas e virtualizadas, o Direito do Trabalho procura adaptar seus conceitos, tentando estender a proteçao e a tutela para as chamadas relações de trabalho

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autónomo dependente, identificando novas formas de subordinação, de continuidade e de dependência, tentando alargar o conceito de vínculo para as novas formas de trabalho. Aparentemente, no entanto, trata-se de uma corrida desigual. Dificilmente a tutela alcançará as situações novas que surgem em ritmo digital.

Como os economistas vêm esta questão? Haveria alguma contribuição da Economia para equilibrar esta competição desigual? Para tentar discutir este tema, a sessão 2 resgata de forma sucinta duas visões conflitantes na Economia do Trabalho, com o objetivo de mostrar que os economistas sempre estiveram muito divididos a respeito do mundo do trabalho. A sessão 3 mostra que apesar das distâncias metodológicas e teóricas, existe uma surpreendente convergência sobre o tema do fim do emprego e da flexibilização. A sessão 4 encerra o texto avaliando as possíveis implicações da convergência para a regulação do mercado de trabalho e para o Direito do Trabalho.

2. Economia do trabalho: duas visões

A preocupação dos economistas2 com o mercado de trabalho remonta às origens da própria ciência económica. Autores clássicos como David Ricardo (1817), Adam Smith (1776), Malthus (1798) e Stuart Mill (1988) já discutiam as particularidades do mercado de trabalho e de certa forma o debate daquela época perdura até os nossos dias, pois a origem das duas visões aqui mencionadas pode ser rastreada até aqueles textos seminais. Um dos fundadores da moderna ciência económica, Alfred Marshall (1920) ofereceu também importantes contribuições para o entendimento do funcionamento do mercado de trabalho. Na segunda metade do século passado, a disciplina Economia do Trabalho passou a integrar os currículos das escolas de Economia e tem despertado crescentemente o interesse dos pesquisadores e estudiosos dos temas sociais.

Para os estudiosos do Direito, e especialmente do Direito do Trabalho, a Economia parece uma ciência que observa o mundo e a sociedade com uma visão uniforme e os economistas seriam todos seres com uma única capacidade: fazer contas e explicar tudo com números e gráficos. Este texto procura mostrar que na verdade não há unanimidade na Economia e apresenta duas visões diametralmente opostas sobre o mercado de trabalho que economistas oferecem. Uma delas seria a visão que simplificadamente pode ser designada como abordagem neoclássica e que provavelmente representa a imagem estereotipada que os estudiosos do Direito do Trabalho têm em relação aos economistas. A outra visão poderia

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ser denominada como enfoque institucionalista e reúne economistas que interpretam os fatos do mercado de trabalho de forma mais qualitativa e menos quantitativa e que são menos conhecidos no Direito do Trabalho. Os parágrafos seguintes apresentam de forma resumida estas duas visões com o propósito de mostrar suas diferenças e as implicações que decorrem de cada uma delas.

Neoclássicos: o mercado funciona, a regulação atrapalha

A concepção neoclássica original do mercado de trabalho coincide com o tipo ideal denominado "mercado de concorrência perfeita". Um exemplo concreto que se aproxima deste tipo ideal é o da feira-livre, tão comum nas cidades brasileiras. Na feira-livre, todas as firmas (as bancas) têm aproximadamente o mesmo tamanho, não havendo dominação de mercado por parte de nenhuma delas. Tanto as firmas como os consumidores têm acesso muito fácil à informação do preço, que se propaga rapidamente neste mercado. Quando uma banca reduz o preço do seu produto, os consumidores e as demais bancas ficam sabendo imediatamente e a redução se propaga para todo o mercado. Isso é o que caracteriza o mercado de concorrência perfeita: igualdade de condições entre as firmas e informação imediata e sem custo para todos. Nestas condições, se algum agente tem percepções desalinhadas com o mercado terá que corrigi-las para continuar comprando ou vendendo. Dessa forma, o mercado leva sempre ao equilíbrio entre oferta e demanda e ao nível ótimo de funcionamento.

Os economistas neoclássicos tendem a considerar o mercado de trabalho como mais um dos diversos mercados que compõem a economia de uma sociedade, sem nenhuma distinção em relação aos demais. Os trabalhadores são o lado da oferta, as empresas são o lado da demanda. Como nos demais mercados, oferta e demanda interagem para determinar o preço de equilíbrio (salário de mercado) e a quantidade (nível de emprego). A concorrência é o motor do mercado, sendo vista positivamente. Se um trabalhador espera obter um salário acima do nível pago pelo mercado, terá que ajustar sua expectativa para baixo. Da mesma forma, se uma empresa oferecer um salário abaixo do que o mercado está pagando, terá que elevar sua oferta para conseguir um interessado na sua vaga. Nesta concepção, a informação sobre vagas para os trabalhadores e sobre candidatos às vagas para as empresas é obtida sem custo e sem dificuldade. Não há custos para transacionar (ou seja, para procurar vagas e candidatos). Enfim, no mercado de trabalho neoclássico, não há nenhuma particularidade no serviço que é transacionado (trabalho). A mensagem é clara e direta: deixemos o mercado de trabalho funcionar livremente, e ele encontrará naturalmente o ponto de equilíbrio, empregando todos os trabalhadores que desejam trabalhar ao preço vigente, que é salário de equilíbrio do mercado.

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Para explicar o nível de emprego em uma empresa e, por extensão, no mercado de trabalho como um todo, os neoclássicos utilizam o conceito de produtividade marginal. Esta é entendida como a contribuição para a produção do último trabalhador contratado pela empresa. Cada trabalhador adicional acrescenta sua contribuição à produção e essa contribuição é decrescente. A empresa contrata trabalhadores até que a contribuição marginal seja igual ao salário do mercado. Neste ponto a empresa atinge seu nível ótimo de emprego. Se contratar um trabalhador a mais, a contribuição adicional será menor que o salário devido, provocando prejuízo para a empresa. Esta ótica vê com simpatia a competição no mercado de trabalho, pois é a concorrência entre os trabalhadores que permite que o salário de mercado se ajuste no nível ótimo também. Qualquer interferência que eleve o salário de mercado é vista como indesejável, porque impediria que as empresas contratassem a quantidade ótima de trabalhadores. Para um neoclássico, portanto, a regulação do mercado eleva artificialmente o preço do trabalho e reduz o nível de emprego de cada empresa e do mercado como um todo.

Institucionalistas: o mercado de trabalho é diferente

Desde cedo, a visão neoclássica encontrou opositores entre os institucionalistas, como, por exemplo, os Webbs (1920) e Commons (1973). Para os institucionalistas, o mercado de trabalho é diferente dos demais, porque o trabalho não pode ser tratado como se fosse uma mercadoria. Os institucionalistas consideram que existem especificidades no mercado de trabalho, principalmente o fato de que há assimetrias de poder entre o lado da demanda (as empresas) e o da oferta (os trabalhadores). Por essa razão, vêem com muita desconfiança a proposta neoclássica de libertar as forças da competição neste mercado. Por causa da assimetria de poder, há uma tendência à competição degradadora, que aviltaria os salários e as condições de trabalho. Por essa razão, a regulação do mercado de trabalho é necessária. O Estado, nessa visão, tem o dever de zelar pelo funcionamento equilibrado do mercado de trabalho, regulando-o diretamente, ou então oferecendo reconhecimento e garantias legais aos sindicatos para que estes também possam participar da regulação por meio da negociação coletiva. Por sua vez, a sociedade deve participar também reconhecendo as empresas que praticam boas políticas com seus empregados.

Os institucionalistas não rejeitam o mercado, apenas não o consideram como algo perfeito ou infalível. No caso do mercado de trabalho, não aceitam a ideia de que funcione como se fosse uma concorrência perfeita, porque existe desigualdade de poder. O trabalhador sozinho não tem como se contrapor à empresa, daí a necessidade de regulação direta ou de...

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