Estado Federal e Descentralização: uma visão crítica do federalismo brasileiro

AutorAna Claudia Saldanha
CargoColaboradora dos Cursos de Pós-graduação da ESMP-CE, integrante do programa de Pós-graduação em Direito Constitucional da UNIFOR
Páginas327-360

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Introdução

A principal característica da federação é a existência mútua de níveis autônomos de governo. O longo período de colônia (1500 a 1822) deixou marcas profundas na cultura brasileira. Verifica-se que oPage 328processo de independência do Brasil veio muito mais como vontade das elites descontentes com a metrópole, do que da vontade do conjunto da população; diferente, por exemplo, do que ocorreu com os EUA, em que a população toma parte, de forma ativa, no processo de independência.

Entretanto, esse fato não significa que existiram avanços tanto na administração como na visão política brasileira no caminho para o desenvolvimento de uma administração descentralizadora e na efetivação de uma democracia brasileira.

Entende-se que, antes de abrir à possibilidade de participação política por parte da população, deveríamos munir o Estado de instituições fortes para, desta forma, evitar o desmando, ou então de forma mais ideologizada, a anarquia.

Porém, não existe uma precedência entre a institucionalização do Estado e a participação política, já que ambas se fortalecem ao mesmo tempo, na medida em que a participação engendra e aperfeiçoa as instituições e estas a participação em uma relação simbiótica. O que não invalida o argumento de que a democracia substantiva pressupõe instituições fortes, ou seja, institucionalizadas.

A história do Estado Brasil é uma história de centralização política e administrativa. No Império, em que a base econômica era centrada em um regime escravocrata, centrado no latifúndio, a centralização das decisões de toda a ordem se constituía em uma necessidade para a sobrevivência do próprio regime. Com a adoção da República presidencialista, muda-se o regime, mas não a centralização na dimensão da tomada de decisões políticas e administrativas.

O presente trabalho objetiva revelar os caminhos da centralização versus descentralização e do federalismo na construção do pensamento constitucional brasileiro.

Buscará verificar a contribuição de alguns autores brasileiros que tiveram grande importância para a formação do ordenamento jurídico que culminou com a Constituição Federal de 1988 - sem a pretensão de revelar todos os grandes pensadores brasileiros, até porque não caberiam num trabalho sintético de artigo, mas tão somente aqueles que, para a pretensão deste trabalho, foram considerados essenciais.

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Para tanto, primeiramente se fará uma definição de Estado, federação e descentralização, posteriormente se abordará o federalismo no Brasil. Partindo para uma visão crítica do federalismo e da descentralização brasileira, serão estudados os efeitos e tipos de centralização política, verificando suas vantagens e desvantagens para finalmente fazer breve conclusão.

1 Noção de Estado

Para Zimmermann (2005, p.10) sinteticamente, Estado pode ser conceituado como forma de organização política estabelecida dentro de um território para domínio e regulação de condutas. Informa-nos o referido autor que os mais antigos centros de poder político foram formados há três milênios antes de Cristo e surgiram na Baixo-Mesopotâmia. Neles e nos grandes impérios que surgiram no Oriente não existiam doutrinas democráticas, mas sim a forma monárquica e teocrático-absolutista de governo.

Entendem alguns que o Estado surgiu da tendência natural do homem para a associação; entretanto, para outros, o Estado é produto da luta de classes sem as quais o Estado desapareceria. De qualquer forma, independentemente de sua origem, o Estado é uma realidade sociopolítica incontestável, com personalidade jurídica e autoridade moral que lhe são próprios.

Os três elementos essenciais do Estado são: povo, território e governo. Destes três, o governo incorpora a autoridade política dominante na sociedade. Lato sensu, representa o conjunto de órgãos estatais realizadores das funções por intermédio das quais o Estado objetiva os seus determinados fins. Através de dispositivos jurídicos específicos, esse governo promove a política estatal.

Alguns autores preferem acrescentar mais um elemento característico do Estado: a soberania. Carl Schmitt (2007, p. 48-49) entende que o conceito de Estado não é um conceito geral válido para todos os tempos, mas é um conceito histórico concreto que surge quando nascem a ideia e prática da soberania, no século XVII.

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Como formas de Estados, estes podem ser simples, mais conhecidos por unitários, e possuem um único órgão de governo político, invariavelmente localizado no poder central, que assume a direção política de todos os negócios públicos. A centralização política não exclui, todavia, algumas formas de descentralização administrativa garantidora da relativa autonomia regional ou local. São exemplos de Estado unitário: França, Itália, Espanha, Portugal, Argentina, México e Venezuela.

O Estado composto envolve a união de duas ou mais entidades políticas. Reconhecem-se quatro espécies de estado composto: união pessoal, união real, confederação e federação. A união pessoal e a união real são tipicamente monárquicas e ocorrem quando dois ou mais estados são submetidos ao governo de um único rei, em virtude de sucessão hereditária. No primeiro caso, os estados conservam sua soberania interna e internacional, ligando-se apenas pela pessoa física do soberano. No segundo caso, existe uma união mais definitiva de dois ou mais estados, conservando cada um a autonomia administrativa, mas formando uma única pessoa jurídica perante o Direito público internacional.

A confederação é uma união contratual de Estados soberanos com o objetivo de estabelecer determinadas tarefas comuns, tais como defender o território e garantir a segurança interna. Associação de Direito internacional, donde tais Estados permanecem soberanos, mas submetidos por vontade própria ao contrato confederativo.

Na federação, as unidades estaduais somente são reconhecidas através das regras de Direito constitucional interno. Este tipo de estado reparte as competências estaduais em pelo menos dois tipos de níveis verticais de poder.

O Estado-nação corresponde a um longo processo político iniciado nos fins da Idade Média. Na análise deste processo, verifica-se a transformação histórica das formas de poder baseadas na necessidade de acordo entre o rei e a burguesia. Os burgueses comandaram a transição do novo Estado pré-capitalista e impuseram as regras do jogo político, destruindo as barreiras comerciais impeditivas do progresso capitalista contidas no antigo modelo descentralizado do feudalismo. Tal processo abriu caminho para monarquias unitárias, pois, através dos reis, procedeu-Page 331se a integração territorial que livrou os burgueses do pagamento de pedágios e outras taxas aos senhores feudais, além de ter impulsionado o mercado ao seu crescimento e formar o espírito nacional.

O Estado moderno emergiu unificando imensos espaços territoriais e desenvolvendo processos centralizadores adequados aos interesses do rei e da burguesia ascendente. Assim, no século XVII, o sistema dos estados criou a autoridade política individualizada na pessoa do monarca, com poderes coercitivos sobre todos os indivíduos estabelecidos sob a respectiva jurisdição territorial.

2 O Estado federal

José L. Magalhães2 entende que existem várias formas de Estados federais no mundo contemporâneo, e o federalismo não é a única forma de descentralização da organização territorial, sendo que, a partir da década de setenta do século XX, assistimos a um grande movimento em direção a uma acentuada descentralização, com inspirações políticas e econômicas diferenciadas, mas que marcam um caminho trilhado pelos estados democráticos. Importante é ressaltar alguns aspectos a respeito das formas descentralizadas de Estado em relação ao federalismo. O federalismo clássico de dois níveis diferencia-se de outros Estados descentralizados, como o Estado autonômico, regional ou unitário descentralizado pelo fato de ser único, cujos entes territoriais autônomos detêm competência legislativa constitucional ou um poder constituinte decorrente. Assim:

No Estado unitário descentralizado, as regiões autônomas recebem por lei nacional competências administrativas, caracterizando a descentralização pela existência de uma personalidade jurídica própria e eleição dos órgãos dirigentes. Tal descentralização administrativa pode ocorrer em nível municipal, departamental (provincial) ou regional, em um nível ou vários, simultaneamente.

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No Estado regional, as regiões recebem competências administrativas e legislativas ordinárias, elaborando seu estatuto, sempre com controle direto do Estado Nacional. No Estado autonômico - interessante modelo espanhol da Constituição de 1978 - existe outro modelo altamente descentralizado, em que ocorre descentralização administrativa em quatro níveis, e legislativa ordinária em dois níveis. No Estado federal, os entes descentralizados detêm, além de competências administrativas e legislativas ordinárias, também competências legislativas constitucionais, o que significa que os Estados-membros elaboram suas próprias constituições estaduais sem a intervenção do parlamento nacional para sua aprovação como ocorre no tipo anterior, sofrendo tão somente controle de constitucionalidade posterior, que não caracteriza nenhum tipo de hierarquia entre estados-membros e União.

Entretanto, de todas as formas de Estado, a federativa é a mais complexa delas. Atualmente, contam-se sete estados federais nas Américas.

Na América do Norte: Estados Unidos, Canadá e México. Na América do Sul: Brasil, Venezuela, Colômbia e Argentina. Além dos seguintes Estados: Alemanha, Áustria, Suíça, Rússia, Nigéria, Índia, Paquistão e Malásia.

O Estado federal apresenta...

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