Vínculos de lealdade e regra de substancialidade: uma comparação de sistemas

AutorHerbert Wiedemann
Páginas7-25

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1. Introdução

A investigação1 do direito societário fez enormes progressos nas décadas que se seguiram à II Guerra Mundial. Nenhum outro ramo de direito privado foi de tal maneira enriquecido por um número tão considerável de grandes comentários, de tantas monografias científicas e de uma abundância a perder de vista de artigos avulsos de doutrina, como o direito privado das

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organizações.2 A contribuição da ciência nisso seguiu, no particular, os impulsos da legislação e da jurisprudência dos tribunais superiores, de modo que alguns ramos do Direito - como o direito das sociedades de pessoas - podem ser hoje considerados adequadamente providos, enquanto que os regramentos das associações e das sociedades cooperativas estão muito menos elaborados.

Vale isto, naturalmente, também para determinadas esferas de problemas: elas encontram na comunidade científica atenção diversa. Se antes foi a doutrina da sociedade de pessoas invalidamente constituída (fehlerhafte Personengesellschaft) e depois a responsabilidade, no grupo societário de fato, de sociedades limitadas (qualifizierten faktischen GmbH-Konzern), atualmente é ao governo das macroempre-sas (Corporate Governance) e ao controle dos seus administradores que se dedica o principal interesse. Tal mudança de tema não se explica como modismo, mas acompanha o desenvolvimento das diferentes formas societárias na legislação e na jurisprudência.

As ideias-chaves migram, os problemas fundamentais sobrevivem. Em diversos períodos, juízes e doutrinadores têm se preocupado com as tensões e os conflitos entre sócios majoritários e minoritários e entre sócios empreendedores e sócios investidores,II assim como, nas Publikums-gesellschaften,III com os encargos impostos por sua participação no mercado de capitais. O problema do equilíbrio intras-societário e do adequado ajuste de interesses já marcava o direito das organizações finalísticasprivadas (Verbandsrecht)IV desde sua evolução no século XIX. Com isto podem lidar a lei e o estatuto, por meio de regras procedimentais, com o tratamento correto dos conflitos internos, porém as decisões de mérito apenas podem ser tomadas com base no caso concreto. Para também ter à disposição critérios de conduta corretos, a jurisprudência na Europa e nos Estados Unidos desenvolveu cláusulas gerais e outras figuras jurídicas, as quais puderam apoiar-se nas experiências com a bona fide ou com a boa-fé objetiva. Por ocasião do bicentenário do direito acioná-

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rio na Europa festejou-se recentemente a "Marcha Triunfal do Dever de Lealdade" na Alemanha. Além disso, exigiu a jurisprudência alemã, em determinados julgados, uma justificação substancial de deliberações majoritárias, mas veio a abandonar este pressuposto de suporte fático em uma série de julgados ulteriores. Sobre ambos os trilhos do desenvolvimento, a Marcha Triunfal e o ocaso, e a relação entre ambas as figuras jurídicas entre si e com o princípio da igualdade de tratamento é que aqui continuará a discussão.

2. Vínculo de lealdade de órgãos e sócios
2. 1 Posição atual

Há duas características dos vínculos de lealdade que merecem o reconhecimento geral perante a jurisprudência e a doutrina. Sob o ponto de vista jurídico--teorético, pode-se assegurar que o dever de lealdade constitui uma cláusula geral de origem judiciária própria do direito societário, como já assinalado em 1968 por Walter Stimpel.3 Isto dá ao princípio de Direito seu indispensável fundamento jurídico constitucional, que exige, como no direito dos contratos, um suporte normativo para o desenvolvimento jurispruden-cial do direito (Rechtsfortbildung) - que então ocorre na altura dos olhos do legislador. O segundo alicerce é formado por sua caracterização dogmática como dever de auxílio e consideração. Sua origem no século XIX é obscura. Na atualidade, o seu reconhecimento está ligado aos trabalhos de Alfred Hueck,4 Robert Fischer,5

Marcus Lutter6 e Wolfgang Zöllner,7 que deram forma à necessária ponderação de interesses; a derivação originariamente considerada, extraída da cooperação baseada na confiança, foi abandonada porque não podia ser estendida aos sócios investidores. Seguiram-se trabalhos doutrinários de peso.8 Dado que o dever de auxílio impõe esforços adicionais e o dever de consideração restringe direitos existentes, acaba-se por refletir aqui, em escala pequena, o problema geral de cada posição jurídica de membro em uma coleti-vidade.

Para a continuação da discussão, é proveitoso atentar para o seu desenvolvimento nos Países anglo-saxões e nos Estados Unidos, visto que lá tal desenvolvimento jurídico ocorreu mais cedo, a riqueza em decisões judiciais é proporcionalmente maior e, no pensamento jurídico anglo-saxão, têm primazia a proteção à minoria e a proteção aos investidores. Seguindo o Direito Comparado, não devem ser classificadas então as próprias explanações, como de costume, de acordo com o conteúdo do dever de lealdade, mas devem ser ordenadas conforme as relações jurídicas nas quais podem atuar. O dever de lealdade recebe outra conformação sempre de acordo com a relação jurídica para a qual está sendo considerado; deveres de lealdade têm possivelmente outro "timbre", quando são exigidos de administradores do que quando são impostos a um sócio investidor.

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2. 2 Uma visão de Direito Comparado

A common law oferece, sob o conceito mais abrangente (Oberbegriff) de fidu-ciary duties, uma classificação sistemática9 e, relacionado a isso, uma concretização pragmática dos deveres de lealdade que, com diferenciações particulares no direito societário inglês como no norte-ame-ricano, têm experiência maior do que no Continente.10 No seu conteúdo, osfiducia-ry duties nos Estados Unidos estão tripartidos como segue:

- O duty ofcare, que obriga os direto-res à administração ordenada com base em informação conscienciosa.11 A ideia essencial consiste no rigoroso cumprimento do dever de desempenho da função assumida. Como as decisões também incluem necessariamente riscos, concede a business judgement rule uma margem de discricio-nariedade que exonera o desempenho da atividade.

- O duty ofloyalty (fiduciary duty em sentido estrito), que obriga os diretores a não misturar a administração alheia com a administração própria de negócios, ou, pelo menos, declinar abertamente a última.12 A ideia básica visa evitar que um administrador não sócio atue com interesses econômicos próprios e, ao mesmo tempo, como parte direta ou indireta do lado oposto. Tão longe não vale a business judgement rule e para o administrador não se abre margem de arbítrio.

- O duty ofgoodfaith,13 de resto, obriga também os diretores a um comporta-mento correto, vale dizer, especialmente no tocante à observância da lei e do estatuto, e mais além, de um modo geral, a um procedimento probo e cônscio da sua responsabilidade.

A classificação tem significado prático no concernente às consequências jurídicas, porque (apenas) o dever de diligência pode ser restringido ou afastado no estatuto; em negócios por conta própria do administrador, aprovados por um comitê independente, o ônus da prova se inverte e cabe ao autor a comprovação do unfair dea-ling. Os argumentos materiais ora expostos do dever de lealdade são conhecidos no Direito Inglês, havendo, todavia, pretensão de os reconduzir a uma formulação geral:

Flannigan (2004) J.B.L., 278: "Fiduciary regulation in contrast is generic. (...) Fiduciary accountability is designed to control the opportunism of those trusted with a defined or limited access to the as-sets of others".

Mais atenção merece a proposta sistemática de elaborar os fiduciary duties conforme as diversas relações jurídicas, nas quais, naturalmente, a diferença básica entre deveres de órgãos e deveres de sócios conforma as exigências de conteúdo - e ao mesmo tempo a ulterior subdivisão propõe direcionar a análise ao círculo de pessoas favorecido em dado momento. Nisso, a jurisprudência britânica tem incluído também os credores da sociedade na qualidade de pessoas favorecidas pelo dever de lealdade, quando a empresa caiu em estado pré-falimentar.14 Sob este ponto de vista, como já anunciado, atinge-se uma concretização adicional da cláusula de boa conduta, da mesma forma como também a boa-fé objetiva desempenha tarefas distintas conforme a modalidade de contrato na qual é evocada.

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2. 3 Deveres de lealdade dos membros de órgãos no Direito Alemão Observação prévia

Ainda não se consegue constatar um resultado inequívoco para a base de avaliação e para a divisão dogmática dos deveres de lealdade com apoio na evolução até o presente. O [seu] reconhecimento como cláusula geral de direito societário e sua caracterização como ampliação ou restrição dos poderes de sócios compreendem, de fato, um reconhecimento do princípio fundamental, mas podem, em sua generalidade, contribuir apenas muito pouco para obter escalas de valores para a corporate correctness. Maior clareza pode surgir quando se procede a uma formação de sistemas com base nas mencionadas relações jurídicas, ou seja, para deveres dos órgãos e dos sócios (v., abaixo, itens 2.4. e 2.5), e então se indaga a quem é devido o dever de auxílio ou consideração, de caso em caso.

(a) O dever de diligência dos administradores pertence ao núcleo dos deveres dos membros de órgãos numa sociedade ou corporação (KörperschaftV); compare § 43, Al. 1, GmbHG, § 93, Al. 1, AktG, § 34 GenG. O dever de diligência...

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