Da vida humana e seus novos paradigmas: a manipulaçåo genética e as implicações na esfera da responsabilidade civil

AutorAna Célia de Julio Santos/Valkiria Aparecida Lopes Ferraro
CargoMestre em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina/Doutora em Direito Civil pela PUC/São Paulo
Páginas41-57

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1 Introduçåo

O homem contemporâneo assiste a uma época de incontestável desenvolvimento técnico-científico, capaz de promover significativas mudanças nos domínios da vida.

Os avanços da biotecnologia alcançam, no mundo, polêmicas discussões filosóficas, sociais, econômicas e jurídicas. O impacto na sociedade em relação aos avanços trazidos pelo desenvolvimento científico e tecnológico nos campos da biologia, da saúde e da vida, de modo geral, é notável, levando a humanidade a deparar-se com as mais diversas e inusitadas situações até pouco tempo inimagináveis.

Se por um prisma todas essas conquistas trazem na sua esteira renovadas esperanças de melhoria da qualidade de vida dos indivíduos, por outro criam uma série de contradições que necessitam ser criteriosamente estudadas, visando não só ao equilíbrio e ao bem-estar futuro da espécie como à própria sobrevivência do planeta. Por essa razão, as teorias atuais da justiça e da moral trilham por caminhos próprios, diferentes dos da "ética" em seu sentido clássico de uma doutrina da vida correta.

Falar-se em responsabilidade para com a vida implica um retrocesso a princípios bastante antigos, regentes do plano da eticidade humana. Nesse sentido, o pensamento platônico constituiu-se num marco da crença grega tradicional, segundo a qual caberia aos deuses a decisão sobre o destino do homem e de sua vida.

Platão tratou do chamado "mito de Er", onde fez alusão àquilo que estaria reservado ao homem no curso de sua vida. Para ele, o homem não seria livre para escolher entre viver ou não. Mas, esse mesmo homem, dizia o filósofo ateniense, teria a liberdade de escolha entre viver ou não de acordo com a virtude ou sob o domínio do vício. Segundo Platão (2001):

Almas efêmeras, vai começar outro período portador da morte para a raça humana. Não é um gênio que vos escolherá, mas vós que escolhereis o gênio. O primeiro a quem a sorte couber, seja o primeiro a escolher uma vida a que ficará ligado pela necessidade. A virtude não tem senhor; cada um terá em maior ou menor grau, conforme a honrar ou a desonrar. A responsabilidade é de quem escolhe. O deus é isento de culpa. (p. 490).

No texto, Platão afirma que a divindade não teria mais nenhum comprometimento com a responsabilidade humana. Caberia, então, ao próprio homem deliberar sobre suas ações e omissões, responsabilizando-se pelas conseqüências de suas escolhas.Page 42

Então sobre os ombros do homem, para Platão, pesa a árdua tarefa de decidir sobre sua vida, sendo ele o próprio agente ético apto a responder por seus atos.

Vale ressaltar que no pensamento platônico destaca-se a responsabilidade humana sempre projetada para uma dimensão atemporal, ou seja, direcionada para o transcendente, cuja marca seria a eternidade. Platão então buscava a responsabilidade humana sempre direcionada ao destino final do homem.

Já no pensamento filosófico contemporâneo, Hans Jonas representa com louvor os pensadores que se dedicaram a discutir a responsabilidade na era tecnológica, afastando-se dos pensamentos platônicos sobre a responsabilidade em dimensões atemporais e transcendentais, para focar seus argumentos na responsabilidade temporal.

Em linhas gerais, para Hans Jonas , a responsabilidade a ser exigida nos dias de hoje se subsume na temporalidade. Tanto assim que asseverou: ipsis litteris: "O Eros platônico, orientado à eternidade e não à temporalidade, não é responsável de seu objeto. Aquilo ao que nele se aspira é algo superior, que não 'será', senão que já 'é". 1 (JONAS, 1995, p. 209).

Mas isso não significa que tal responsabilidade envolva apenas o mais imediato, mas sim que tal responsabilidade deva ser nas ações de hoje, mas por um mundo vital longínquo, isto é, pela vida que se projeta em direção ao mais distante futuro.

É diante desse quadro que passa-se a tratar, agora, de empreender esforços que orientem e afirmem a conduta responsável de todos aqueles cujas ações possam interferir nos amplos domínios da vida. E essa exigência deve levar em conta o prisma temporal dessa responsabilidade, porque necessariamente envolve o comprometimento com as gerações atuais bem como com as futuras, sendo que pelo termo "futuras" se entenda as mais longínquas que o pensamento imediato seria apto a projetar. Esse é um dos grandes desafios da bioética, indubitavelmente.

Em relação a temas como a proteção jurídica do nascituro, ou do paciente terminal, o direito à vida é um aspecto que não pode ser resolvido de forma voluntarista, seja por parte do legislador, pelos médicos ou pela família. Vislumbrase sob esse ângulo o aspecto moral, ou seja, o momento em que se começa a resolver a questão da vida e da morte sob a ótica moral.Page 43

O direito contemporâneo, especialmente o biodireito, enfrenta dificuldades para lidar com essas novas realidades justamente pelo fato de que não se reconhece nas questões da ciência e da engenharia genética uma dimensão moral. A questão emergente, destarte, é a que remonta ao tema da responsabilidade para com a vida.

Desse modo, é imprescindível que, além de se editarem normas regulamentadoras da questão da possibilidade de fazer pesquisas científicas com material genético, mormente o humano, é necessário sejam feitas considerações sobre os reflexos atinentes à essa regulamentação, principalmente em relação à negociação envolvendo o patrimônio genético humano e da responsabilidade civil oriunda dos serviços prestados, das empresas ligadas à terapia genética, sob pena de prejuízos consideráveis a toda a sociedade.

Ao se associar os direitos de personalidade existentes e previstos em nosso ordenamento jurídico com a verificação das formas de negociação que visam ao desenvolvimento e a um dito avanço da sociedade, principalmente no que tange a utilização do corpo humano, percebe-se que limites devem ser impostos.

Nesse diapasão, Francisco Amaral (1999) entende: [...] é questão preliminar reconhecer-se que o progresso científico deve-se orientar para promover a qualidade de vida individual e social, pessoal e ambiental, mas também que tais descobertas podem causar problemas que o Direito é chamado a resolver, elaborando estruturas jurídicas de resposta que se legitimem pelo respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana.

No contexto da regulamentação da questão da manipulação genética, além de se levar em conta principalmente a proteção incondicional à vida, o presente trabalho tratará desses temas atuais envolvendo a questão da proteção da vida em razão dessa nova perspectiva legislativa, em especial a responsabilidade civil dos entes ligados à manipulação genética, por ser imprescindível que se tracem parâmetros à chamada responsabilidade civil objetiva, já que o Código Civil trata da responsabilidade civil subjetiva.

Assim, considerando o homem como centro do ordenamento jurídico, pretende-se interpretar as normas reguladoras do tema, bem como os princípios que norteiam a questão, levando-se em consideração quais sejam os parâmetros legais e doutrinários para chegar-se a uma responsabilização dos entes praticantes de engenharia genética, de forma a manter-se equilíbrio entre o ressarcimento, reparação dos danos e o não cometimento de avanços capazes de ensejar enriquecimento sem causa por parte das vítimas.Page 44

1 Responsabilidade civil e o dano genético

Assunto amplamente debatido entre os juristas, a responsabilidade civil tem extrema importância no mundo moderno, pois a vida é cada vez mais complexa e os avanços tecnológicos contribuem para aumentar o risco de causar dano a outrem ou até mesmo ao meio ambiente.

Em perspectiva histórica, ensina Clayton Reis (2001) que, em tempos passados, o conceito de justiça era primária, observando-se sempre a premissa de que "nenhum ato lesivo à pessoa deveria ficar impune".

Conta o autor, em suas palavras: [...] o princípio vigente no Código de Hamurabi consistia em coibir-se a violência pela violência. Assim, após o decurso de um longo período da história, os hábitos e costumes dos povos sofreram um natural processo de aprimoramento. A reparabilidade do ato lesivo assenta-se, hoje, no primado de que o causador do dano tem a obrigação de repor as coisas ao seu statu quo ante . (REIS, 2001, p. xvii).

Com o rápido progresso do mundo, houve uma escalada de complexidade nas relações sociais e as melhorias técnicas supervenientes trouxeram benefícios das mais variadas ordens e, com eles, um incremento proporcional nas possibilidades de danos e acidentes.

A sociedade moderna, então, tem se valido de instrumentos a potencializar seus resultados e ganhos. Existe uma farta gama de técnicas publicitárias, de modo a incitar o consumidor a adquirir bens e serviços, fortalecendo a atividade econômica. E isso não pode ser desprezado, pois a sociedade tem se conformado, em nome do progresso, com o aumento do risco a que as pessoas são submetidas para a movimentação da máquina econômica.

Os irmãos Mazeaud e André Tunc (1962, v. 1, p. 11) tratam do tema com propriedade, explicando da importância cada vez maior que adquire a questão da responsabilidade civil, há que se ter em conta uma moderna tendência de as pessoas exigirem segurança. Todos querem estar garantidos contra o risco.

Conforme preleciona Clayton Reis (2001, p. xvii) : [...] nenhum dano perpetrado poderá ficar sem a conseqüente e necessária reparação. Afinal, o equilíbrio da ordem social é preponderante para o Estado, visto que suas atividades são realizadas com o concurso dos agentes que compõem o ambiente societário.

Desse modo, não se pode duvidar que, juntamente com o progresso, vem o incremento da possibilidade do dano. E onde há dano, há espaço para, em tese,Page 45 estar a disciplina da responsabilidade civil, por se tratar de...

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