Meio Ambiente do Trabalho Saudável: Direito Fundamental do Trabalhador

AutorCláudio Brandão
Páginas81-94

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1. Considerações gerais

Falar-se meio ambiente do trabalho saudável como direito fundamental impõe, necessariamente, um retorno ao período anterior ao surgimento das normas que, pouco a pouco, o regulamentaram, o que remete o investigador à segunda metade do século XVIII e início do século XIX, quando as ideias do liberalismo político - que importava no afastamento do Estado da tutela individual - e econômico - que valorizava a livre iniciativa e estimulava a concorrência -, proporcionaram o desenvolvimento do capitalismo, especialmente na França, Grã-Bretanha e, mais tarde, nos Estados Unidos, Alemanha, Holanda e Bélgica, estes últimos em menor grau.

Nessa época, a classe trabalhadora convivia uma situação de extrema penúria, sendo vista como uma mercadoria qualquer, sujeita às mesmas regras da oferta e da procura.

Inexistia qualquer espécie de proteção conferida pelo Estado, cuja atuação se limitava a "[...] garantir a ordem social e política, com a força organizada, os tribunais distribuindo justiça e dando aos particulares ampla liberdade de ação econômica";1 prevaleciam nas codificações civis dessa época os princípios do individualismo e do materialismo, respaldados, aquele, no princípio da autonomia da vontade, e esse na garantia do direito de propriedade (que propiciava a acumulação de riquezas), ambos necessários para possibilitar ao indivíduo afirmar-se frente ao Estado.

Identificam-se, contudo, já no início do século XIX, as primeiras iniciativas de ordem legislativa, como o Moral and Health Act, de 1802, na Inglaterra, pioneiro na proteção aos trabalhadores; o Factory Act, de 1833, também na Inglaterra, destinado a todas as empresas têxteis que utilizavam força hidráulica e a vapor, além de leis de acidente do trabalho na Alemanha, em 1884.

A criação da Organização Internacional do Trabalho - OIT, em 1919, foi decisiva na evolução do direito à proteção, inserindo-se no preâmbulo de sua Constituição a necessidade de "proteção dos trabalhadores contra as enfermidades gerais ou profissionais e os acidentes resultantes do

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trabalho",2 dispositivo reproduzido na Declaração de Filadélfia, de 1944,3 além de também reconhecer a existência de condições de trabalho que implicam, para grande parte dos indivíduos, miséria e privações.

2. A mudança do paradigma: o direito à proteção do trabalho como integrante dos direitos humanos

Sem dúvida, contudo, que o marco fundamental na marcha evolutiva desencadeada pela OIT se deu com a aprovação, em 10.12.1948, da Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas - ONU.

Introduziu um novo conceito na ordem dos debates no plano internacional, na medida em que incorporou a concepção da dignidade como fundamento dos direitos humanos, o que mais tarde veio a ser incluído em todos os tratados e declarações de direitos humanos,4 mesmo que

predominantemente voltada para a proteção das liberdades e consagradora da ideia da existência de uma ética universal a nortear a ação dos Estados de maneira a assegurar garantias dirigidas à proteção do ser humano.

Interessa, sobretudo, destacar o conceito de indivisibilidade desses direitos, construído a partir da ideia de que compreendiam, na verdade, duas espécies dentre os consagrados desde a constituição da ONU: os direitos civis e políticos e os direitos econômicos, sociais e culturais, os primeiros voltados para assegurar as liberdades e os segundos o valor da igualdade.5

Esses últimos fortaleceram o discurso social da cidadania, ao lado do discurso liberal, e inauguraram uma concepção contemporânea dos direitos humanos, pela qual "[...] passam a ser concebidos como uma unidade interdependente e indivisível".6

Significa afirmar que liberdade e justiça social integram o mesmo contexto dos direitos humanos; não podem ser vistas de forma dissociada e passam a compor "[...] um complexo integral, único e indivisível, em que os diferentes direitos estão necessariamente inter-relacionados e são interdependentes entre si".7 A partir dessa noção de indivisibilidade, a proteção ao trabalho passa a ser concebida como uma variável dos direitos humanos.

A escala evolutiva no sentido de regulamentar-se cada vez mais, do ponto de vista do direito internacional, prosseguiu e ganhou uma dimensão mais ampla com a celebração, em dezembro de 1966, do Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, da ONU, um dos seus principais instrumentos de atuação, que, ao lado do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, constituiu "[...] a mais significativa expressão do movimento internacional dos direitos humanos",8 com a finalidade de "regulamentar, em forma de tratado ratificável, os direitos humanos fundamentais consagrados na [...] Declaração Universal dos Direitos do Homem".9

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A partir de então, solidificou-se o conceito de que o trabalho é feito para o homem e não o homem para o trabalho, tendo o trabalhador "direito [...] de ser tratado como um ser humano e não como instrumento de produção".10 Foi, sem dúvida, um importante marco conceitual e de mudança da abordagem no plano da política de atuação dos entes internacionais, a partir de então.

No campo específico da saúde, higiene e segurança do trabalho, temas correlatos ao meio ambiente do trabalho, a atividade da OIT tem sido voltada para o exame dos direitos nacionais em vigor; coleta, análise e pesquisa de informações por seus peritos, com o objetivo de fornecer subsídios para a elaboração de normas internacionais e de instrumentos regionais como a Carta Social Europeia11, que consagra como princípio que "todos os trabalhadores têm direito à segurança e à higiene no trabalho"12 e define, no art. 2º, como diretrizes para a adoção de condições de trabalho justas, o compromisso dos países signatários de implementarem práticas voltadas a

[...] eliminar os riscos inerentes às ocupações perigosas ou insalubres e, quando esses riscos ainda não tenham podido ser eliminados ou suficientemente reduzidos, a assegurar aos trabalhadores empregados nessas ocupações quer uma redução da duração do trabalho quer férias pagas suplementares.13

Além disso, busca assegurar o efetivo direito à segurança e à higiene no trabalho, elegendo, como objetivo principal, a melhoria da segurança e da higiene profissional e medidas destinadas à prevenção de acidentes e de danos para a saúde originados do trabalho, "reduzindo-se ao mínimo as causas dos riscos inerentes ao meio de trabalho".14

Por outro lado, a atividade da OIT também é marcada pela adoção de programas mundiais em temas de grande importância na atualidade e deve ser assinalada, no que toca à proteção ao trabalho, a elaboração, em 1976, do Programa Internacional para Melhorar as Condições de Trabalho e Meio Ambiente de Trabalho - PIACT, com objetivos amplos e variados, dentre os quais se destacam a prevenção ao acidente de trabalho e a adaptação do meio ambiente do trabalho às capacidades físicas e mentais dos trabalhadores, às formas de organização racional de trabalho, à ergonomia e às condições do meio onde vive o trabalhador (habitação, alimentação, saúde, educação, os serviços sociais, lazer etc.).15

Em um dos seus princípios fundamentais, destaca que "o trabalho não é uma mercadoria"16 e introduz a noção de que os "direitos sociais, econômicos e culturais são autênticos e verdadeiros direitos fundamentais",17 levando David M. Trubek a afirmar que o acolhimento dessa nova concepção na comunidade internacional representou uma "[...] visão social do bem-estar individual", cuja proteção representa o acolhimento do paradigma de que

[...] o bem-estar individual resulta, em parte, de condições econômicas, sociais e culturais, nas quais todos nós vivemos, bem como envolve a visão de que o Governo tem a obrigação de garantir adequadamente tais condições para todos os indivíduos.18

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A aprovação, em 1981, da Convenção n. 155 da OIT, provocou uma substancial mudança no tratamento da proteção à saúde nos tratados até então firmados. Rompeu definitivamente com o paradigma individualista do direito e passou a compreendê-lo como elemento integrante do conceito de meio ambiente, mais especificamente do meio ambiente do trabalho, como um reflexo de sua atuação a partir da década de 1980, cada vez mais preocupada com esse tema19 sobretudo em virtude dos grandes acidentes ocorridos nessa época, que ocasionaram danos ambientais de proporções inimagináveis.20

O aludido instrumento representou um considerável avanço no tratamento dado ao direito de proteção à saúde do trabalhador em virtude dos aspectos relativos à conceituação do direito à saúde e pelo fato de haver estabelecido para os países signatários o compromisso de implantação de uma política nacional em matéria de segurança e saúde dos trabalhadores e o meio ambiente de trabalho com a participação das organizações mais representativas de trabalhadores e empregadores (art. 4º).21

Ainda é dessa época o surgimento da preocupação dos organismos internacionais com a humanização do trabalho, a partir do reconhecimento de que a saúde é um direito humano fundamental22, como elemento integrante do próprio conceito de dignidade humana.

Os países em desenvolvimento e pobres foram instados a introduzir-se "no debate com a consciência de que o respeito aos direitos humanos civis, econômicos, sociais e culturais é fundamental para o seu desenvolvimento".23

Em 1988, o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais24 da Organização dos Estados Americanos - OEA, inspirado nos dispositivos do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, buscou garantir o reconhecimento e...

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