As veias abertas do terrorismo na América Latina : Percepções sobre o uso dos 'direitos humanos' no vilipêndio aos Direitos Humanos - Chile, Brasil e Argentina

AutorNaiara Souza Grossi - Paulo Cesar Corrêa Borges
CargoPossui graduação em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2010) - Possui graduação em Direito pela UNESP (1990), é mestre (1998) e doutor (2003) em Direito pela UNESP
Páginas36-51

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Os espelhos estão cheios de gente.

Os invisíveis nos vêem.

Os esquecidos se lembram de nós.

Quando nos vemos, os vemos.

Quando nos vamos, se vão?

Eduardo Galeano - Espelhos

Introdução

O revoltado3 jornalista uruguaio Eduardo Galeano (2009, p.1), ávido em sua sensibilidade ímpar, traduz de forma brilhante a proposta do presente trabalho. O discurso apropriado pelo governo estadunidense de defesa dos direitos humanos tem vilipendiado hodiernamente os Direitos Humanos latinoamericanos. A situação é clarificada quando o recorte espaço-temporal erigido neste excerto é realizado, qual seja: analisar, a partir dos regimes ditatoriais ameríndios do Chile, Brasil e Argentina de que forma os Estados Unidos fazendo uso de políticas terroristas, combatem o "terrorismo" e mais, de que forma a construção midiática corrobora

A proposta do trabalho, portanto, não se apresenta de forma neutra e desinteressada, muito embora corroboramos com José Eduardo Faria (1988, p. 20) ao firmar a necessidade do "discurso científico tenha de ser aberto". Isso porque ao abordar a temática dos direitos humanos, ainda que tangenciada pelo tema do terrorismo, inserida em um campo científico, qual seja da academia, não há como estabelecer um hiato entre o objeto a ser analisado e o cientista/pesquisador analisador. A temática contundente dos direitos humanos nos são afetas porquanto pertencentes ao gênero humano além de estarmos inseridos enquanto pesquisadores, no espaço analisado: a América Latina.

Porquanto, já revelamos nossa opção metodológica pela abordagem de uma teoria crítica e emancipatória dos direitos humanos. Partindo do recorte temático elucidado, iniciamos a apresentação demonstrando de que forma, por meio de uma cultura de dominação, ocorreu a caracterização do "outro" latino corroborada enquanto um povo à margem do sistema de dominação vigente de recorde ocidental-europeu, no qual os Estados Unidos exercem há tempos forte dominação e influência.

Por meio de relatos sobre o período ditatorial que vigeu no Chile, Brasil e Argentina corroboramos a tese de que o governo estadunidense, direta ou indiretamente, teve participação nos regimes militares em razão dos interesses em jogo, se valendo muitas vezes de políticas terroristas que discursivamente visavam proteger os direitos humanos mas que na prática afrontaram os mesmos. Muito embora sem grande aprofundamento logra-se demonstrar de que forma a mídia corroborada na chamada industria cultural contribuiu para o escamoteamento da situação que o trabalho pretende desvelar.

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Corroborado por Helio Gallardo4, ainda há um abismo entre o que se diz e o que se faz no que tange os direitos humanos. Principalmente, ao resvalar a temática nas políticas terroristas, é cediço que os Estados Unidos intensificaram uma política de perseguição, combate e exterminação das ameaças terroristas, transformando o mundo em uma constante guerra preventiva. Inimigos surgiram, podendo ser citados no pós-setembro de 2001 "Bin Laden" e "Sadam Hussein" e no contexto latinoamericano os regimes socialistas, ocuparam a categoria de inimigos justamente por afrontar uma lógica capitalista, um regime mercantil vigente. Passa-se assim a justificar a invasão nesses países, sob pretexto de criar condições para o desenvolvimento de uma autêntica democracia, uma democracia autoritária e totalitária pois conformada com a lógica da dominação estadunidense.

O presente trabalho assim, deseja demonstrar a convergência que o período ditatorial da América Latina representa, embora os três países descritos Chile, Brasil e Argentina; sofreram o golpe militar cronologicamente distanciados, a situação político-econômico era semelhante: eram regimes que insurgiam contra a totalidade estadunidense e, portanto, afrontavam a ordem dominante, assim justificou-se rechaçá-los, marginalizá-los, incluindo-os enquanto "o outro", ocupantes do "não-lugar", passíveis de serem vilipendiados indiretamente ou até mesmo pelo uso da força, sob o discurso de restauração da ordem democrática, de proteção aos direitos humanos.

Há dois lados na divisão internacional do trabalho: um em que alguns países especializaram-se em ganhar, e outro em que se especializaram em perder. Nossa comarca do mundo, que hoje chamamos de América Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde os remotos tempos em que os europeus do Renascimento se abalançaram pelo mar e fincaram os dentes em sua garganta.

Eduardo Galeano - As Veias Abertas da América Latina

I Historicidade e cultura de dominação: a caracterização do "outro" latino públicas

Elaborar, ainda que sinteticamente, um panorama da historicidade da cultura de dominação perpetrada na América Latina não é tarefa fácil. Não por outra razão, novamente o socorro ao escritor uruguaio, Eduardo Galeano (2005, p. 11), é vital para compreensão sinestésica que a temática requer. Evidenciamos de pronto, que não conforma objetivo do presente item um resgate da História (RUBIO, 2007, p.15)5 da

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América Latina, conquanto o que logramos é demonstrar de que forma a latinoamérica aperfeiçoou-se em ocupar o "não-lugar", em constituir-se em o "não-sujeito", em ser o "Outro" latino (GALEANO, 2005, p. 17).6

A formação da América Latina se deu de forma heterogênea, não há como falar em Estado enquanto produto de uma sociedade nacional politicamente organizada tão pouco como criação exclusiva de uma classe economicamente dominante, fato este observado no Estado europeu que fora "constituído por uma burguesia liberal enriquecida e que suplanta a organização aristocrático-feudal" (WOLKMER, 1990, p. 40). Na América Latina será o próprio Estado o agente que irá definir e concretizar os atores, os grupos sociais e as formas de sociedade nacionais existentes.

Somado à heterogeneidade estatal latina, o caráter de importação de estruturas culturais europeias e norteamericanas que, posteriormente, são assimiladas pelas elites locais, têm favorecido o processo de dominação endógeno traduzido tanto na esfera econômica, política quanto cultural obstando o desenvolvimento de uma cultura naturalmente latino americana7. Nas palavras de Antônio Carlos Wolkmer (2004, p. 2):

[...] Trata-se de uma cultura montada a partir da lógica da colonização, exploração, dominação e exclusão dos múltiplos segmentos étnicos, religiosos e comunitários. Uma história de contradições, marcada pelo autoritarismo e violência de minorias "ausentes da história", como os movimentos indígenas, negros, campesinos e populares.

Os conjuntos de características totalitárias norte-atlânticas são estabelecidos enquanto parâmetros (ou modelos) a serem seguidos (copiados) e por meio dos quais aquelas totalidades não-norte-atlânticas (latinoamericanas) serão pautadas. Nesse diáfano, justifica-se uma sociedade ser considerada como civilizada e àquelas "outras" por portarem uma cultura à parte da Totalidade eurocentrica são consideradas inferiores, justificando sua conquista, exploração e dominação dos povos (ALMEIDA, 2004, p.44)

Todavia, a despeito da presença da dominação interna e externa na América Latina, e as peculiaridades regionais, não é correto afirmar que inexiste uma cultura latinoamericana. Obviamente que essa cultura não foi cunhada espontaneamente, resulta outrossim de uma mescla das importações norte americanas e europeias mas também das influências ameríndias e africanas, o que configura a América Latina um mosaico de diversificação cultural que carecem de uma maior identidade e autonomia8:

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Segundo Antônio Carlos Wolkmer (2004, p.4):

Trata-se de pensar a América Latina não como o passado de dominação e de exclusão, mas como o presente e o futuro de resistência e de construção de sua utopia. [...] Mas, qual é o caminho para que a América Latina venha a encontrar sua identidade cultural e sua autonomia existencial?

A resposta à indagação proposta propugna reflexões e abordagens demasiadamente amplas, o que não configura a proposta do trabalho tão menos refletiria a delimitação que logramos demonstrar, todavia, permite delinear contornos relevantes no que tange a afronta aos Direitos Humanos na América Latina que serão abordados. Nesse diapasão, o conhecimento de fatos marcantes da história do Chile, Brasil e Argentina propiciaram o desvelamento da verdade e é por meio deste que a revolução mencionada por Enrique Dussel (2002, p. 538-539), enquanto transformação de um sistema totalizante para um sistema de inclusão do Outro, igualmente torna-se possível.

1. 1 "O" 11 de setembro e um "outro" 11 de setembro - a ditadura no Chile

Caracterizado9 como um dos maiores ataques terroristas da história, O 11 de Setembro de 2001 "comemorou" onze anos do seu acontecimento. Sob a coordenação da Al-Qaeda, quatro aviões foram sequestrados sendo que dois deles se chocaram contra as chamadas torres gêmeas (Word Trade Center) nos Estados Unidos matando milhares de pessoas. Posteriormente ao ataque mencionado, por meio de políticas terroristas validadas enquanto protetivas aos direitos humanos, o governo estadunidense invadiu países árabes dando início a uma eterna guerra de combate ao terror.

Todavia, um Outro 11 de Setembro igualmente marcou profundamente a história mundial, em especial a chilena. No ano de 1973 um golpe militar findou o governo de Salvador Allende e com ele igualmente pôs fim a séculos de tradição democrática instaurando um regime ditatorial comandado pelo general Augusto Pinochet (GALEANO, 2005, p.8):

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