O valor filosófico do trabalho propicia a transformação da 'classe - em - si' em 'classe - para - si

AutorMaíra Neiva Gomes
Ocupação do AutorDoutoranda e Mestre em Direito do Trabalho pela PUC Minas
Páginas103-116

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1. Introdução

A centralidade do valor-trabalho em importantes sistemas filosóficos do século XIX permitiu uma nova compreensão dos trabalhadores sobre a ativi-dade produtiva e sobre si mesmos, o que auxiliou a organização de sindicatos. Ora, se a civilização dos séculos XX e XXI pode ser descrita como a civilização do trabalho - que dele nasce, se desenvolve e progride -, o trabalho também pode ser encarado como atividade formadora de consciência que permite a democratização da riqueza e do poder na sociedade política, por meio das organizações sindicais.

As entidades sindicais são, estruturalmente, uma forma de organização, de agregação e de autoidentificação (sic) das camadas populares que vivem do trabalho. [...] Eles são essencialmente, ao lado dos partidos populares, o grande instrumento de organização e de manifestação das camadas populares na sociedade democrática, [...].1

O presente estudo tem por objetivo buscar demonstrar como o desenvolvimento da organização social do trabalho implicou profundas alterações de seu valor filosófico.

A alteração no valor filosófico do trabalho, ou seja, a mudança na significação social do trabalho propiciou novas formas de organização dos trabalhadores e, consequentemente, o surgimento das normas trabalhistas, por meio da atuação dos sindicatos e partidos operários.

No século XIX, o trabalho, antes negado enquanto valor filosófico, passou a ser visto como ativi-dade permanente da consciência humana, expressão de seu poder criador, atividade que constitui o próprio homem e o mundo em que ele vive. O trabalho passou a ser encarado como ato cognitivo e prático que permite a transformação da classe trabalhadora em "classe-para-si".

Para se compreender esse importante processo, inicialmente será apontado o valor-trabalho nocristianismo primitivo2 e sua evolução no tempo. Para tanto, será utilizada a descrição apontada por Battaglia3.

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A opção de iniciar o estudo a partir do cristianismo primitivo se dá por dois motivos. O primeiro é a necessária limitação do tamanho do artigo que comporá uma obra coletiva. O segundo é a opção da autora de iniciar a análise pelo período feudal, pois este, classicamente, é o ponto de partida dos doutrinadores do Direito do Trabalho para compreensão deste ramo do Direito.

Apesar de o cristianismo ter surgido ainda na Antiguidade - marco temporal que não será aprofundado neste singelo trabalho -, desde seus primórdios se pode notar que ele impulsionou uma alteração profunda na compreensão filosófica, motivo pelo qual se optou por iniciar a análise a partir deste momento.

Por fim, será demonstrado, na teoria marxiana - teoria esta que tem bastante influência nas organizações dos trabalhadores -, a importância do valor-trabalho para a construção de uma nova sociedade.

2. O cristianismo e o novo significado do valor-trabalho

O período feudal é marcado pela forte influência política e cultural da Igreja Católica. Detentores quase exclusivos do conhecimento literário e filosófico no território europeu no período medieval, os religiosos católicos edificaram o valor filosófico do trabalho, dando-lhe configurações distintas. No presente tópico, propõe-se analisar a transmutação do valor-trabalho no período medieval, a fim de conceber o quão significativa foi a sua transformação.

2. 1 O trabalho dos humildes e a purificação da alma no cristianismo primitivo

Segundo Battaglia4, fortemente influenciado por várias culturas, desde o dualismo entre o bem e o mal que caracterizava o pensamento de Zoroastra5, do monoteísmo hebraico e por traços culturais helênicos e latinos introduzidos por São Paulo, o cristianismo surge como a primeira religião verdadeiramente universal. A fruição de bens espirituais é assegurada a todos os povos, independentemente de suas origens, desde que se convertam à fé cristã.

Em seus primórdios, o cristianismo, assim como a religião hebraica, condenava a acumulação de bens materiais. A religião cristã negava o trabalho, pois compreendia que Deus dava aos fiéis tudo o que era necessário para suas necessidades, desde que estes acreditassem em Deus e fossem caridosos.

No entanto, influenciado pelas origens de Jesus, o cristianismo, a princípio, revelou uma preferência pelos pobres. O trabalho dos humildes era apreciado, pois se opunha à avareza dos ricos. Embora Jesus e seu pai tenham sido trabalhadores manuais - carpinteiros - e os primeiros colaboradores de Jesus também, no cristianismo o valor-trabalho não se revelou como absoluto. O trabalho não dava sentido à vida, mas poderia se revelar negativo, caso o seu produto prendesse o homem no apego pelos bens materiais, pois o reino de Deus, no cristianismo, era celestial.

O indivíduo tinha o dever de trabalhar, pois o trabalho assegurava independência ao homem, possibilitando que o cristão enfrentasse o Estado pagão na luta pela religião. O trabalho fornecia meios de subsistência e de fazer caridade. A caridade, obrigação do cristão, purificava o espírito. Pelo trabalho, até mesmo o escravo, considerado pessoa no cristianismo primitivo e, portanto, digno de ascender ao reino dos céus, poderia redimir os pecados.

2. 2 O trabalho e a providência divina na Idade Média

Apesar da ociosidade das classes proprietárias dos meios de produção na Idade Média - senhores feudais e eclesiásticos -, o trabalho adquiriu nova conceituação na filosofia cristã, a partir do fim do século XI.

De acordo com Le Goff6, durante a Alta Idade Média as penitências devidas pelos pecadores relacionavam-se aos atos pecaminosos, consignados nos penitenciais que, ao observarem o modelo das leis germânicas, consideravam os atos e não os sujeitos. Porém, a partir do fim do século XI, a concepção do pecado altera-se profundamente, interiorizando-se nos indivíduos. "A partir desse momento, a gravidade do pecado se mede pela intenção do pecador."7

A confissão então se torna individual, privada, frequente e obrigatória com o IV Concílio de Latrão (1215 d. C.). O penitente passa a ter que avaliar sua conduta e suas intenções, o que causa profundas transformações nos comportamentos. À medida que a fé, a revelação divina e a graça de Deus passam a compor o conceito de autonomia humana, por meio da prática da religião, o conceito de trabalho

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se eleva. O reino dos céus somente seria alcançado por uma conduta condizente com a fé cristã na vida terrena.

No século XIII, uma vez que os cristãos têm diante de si um mundo cada vez maior de gozos terrestres, muitas vezes oferecidos pelo comércio, a Igreja Católica decide, por meio da pregação, dirigir a palavra cotidiana aos fiéis. Várias ordens religiosas surgiram prescrevendo o trabalho, rigidamente, como obrigação. O ócio era tido como perigoso e o trabalho era o seu corretivo. A humilhação do corpo pelo trabalho manual era necessária para o exercício da fé.

A dispersão da população, o fim da escravidão e a necessidade do cultivo da terra levaram os religiosos de várias ordens ao trabalho na terra e ao artesanal, além do trabalho intelectual de conservação do patrimônio literário. O trabalho era fonte de sobrevivência, não destinado à acumulação, e prevenia a tentação.

Entre os religiosos franciscanos e beneditinos não havia distinção entre trabalho manual e intelectual, ninguém deveria ficar isento dos ofícios mais humildes e cada um deveria trabalhar conforme suas possibilidades. Para os franciscanos o trabalho era também fonte de alegria, pois glorificava a Deus.

O cristianismo deixa de ser meramente contemplativo e o dever religioso passa a adotar um conceito de atividade/ação - o trabalho -, que é o exercício da humildade. O trabalho, tanto para os religiosos quanto para os demais indivíduos, libertava a alma dos maus prazeres, purificava e servia à caridade. Assim, quem ignorava o trabalho situava-se fora da ordem estabelecida por Deus e se colocava contra o fim para o qual foi criado.

Mas a Igreja Católica, como maior possuidora de terras do período medieval, período este fundamentado em um sistema de exploração do trabalho humano que ficou conhecido como feudal, deveria justificar aquela estrutura social.

De acordo com o pensamento medieval, o trabalho estruturava a sociedade segundo o plano divino, além de ser dever moral que assegurava a vida. Ou seja, a ordem social era estabelecida pela vontade de Deus, por isso havia distinção entre os que trabalhavam e aqueles que apenas gozavam os frutos do trabalho. Mas quem não trabalhava tinha outras obrigações como a contemplação divina, o amor e a caridade.

É interessante notar como a mudança com relação ao tratamento da usura expressa a modificação do próprio conceito de trabalho ainda na Idade Média. A usura era condenada pelos judeus já no Velho Testamento. Os católicos também a condenaram, pois ela inviabilizaria a fraternidade para com os pobres. Além disso, compreendia-se que a moeda - dinheiro - serviria apenas para trocas, sendo injusto receber um pagamento pelo uso de um dinheiro emprestado. O indivíduo...

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