'Vale o que está escrito': considerações em torno da relação entre direito e escrita

AutorJoão Pedro Chaves Valladares Pádua
CargoDoutorando em estudos da linguagem pela PUC-Rio, mestre em direito constitucional e teoria do estado pela PUC-Rio, professor de direito processual penal da Universidade Federal Fluminense
Páginas112-132
“Vale o que está escrito”:
considerações em torno da
relação entre direito e escrita
João Pedro Chaves Valladares Pádua*
1) Considerações iniciais: o direito, a linguagem e o escrito
Em pleno século XXI é quase impensável imaginar um direito não-
-escrito. Embora nos livros de introdução ao direito se fale no “costume”
como uma fonte normativa não-escrita do direito, a realidade é que
mesmo estas obras têm grande dif‌iculdade de encontrar um exemplo
convincente para ilustrar o que seria, hoje, o tal costume jurídico como
norma jurídica. Fila no elevador, direito de preferência a idosos em ci-
nemas (antes que uma nova lei reconhecesse isso, por escrito), tradições
e princípios do direito internacional são alguns desses exemplos, mas
parece difícil realmente diferenciá-los de outros costumes não-escritos
que tampouco alguém citaria como norma jurídica: não comer de boca
cheia, não abrir demais os braços à mesa, não falar palavrões na frente de
crianças, etc.; notadamente se considerarmos que a natureza normativa
jurídica do costume, exceto talvez em casos muito excepcionais, vai ser
sempre objeto de disputa no meio social.1
A identidade entre o direito e a escrita é tão grande e evidente que
mesmo acordos “de mentira” são devidamente postos na forma de “con-
tratos” escritos em guardanapos de bar – aliás, um dos conceitos mais
1 Existe aqui implícito um debate sobre a natureza conceitual e social da norma jurídica, que lhe daria este
qualif‌icativo específ‌ico (jurídica), por oposição a outros tipos de normas sociais que também teriam con-
teúdo deôntico, mas não seriam normas jurídicas (isto é: não pertenceriam ao ordenamento jurídico, mas
a outro ordenamento normativo, tal como o moral ou o religioso). Não vou poder entrar nesse ponto aqui,
mas remeto o leitor para Sgarbi (2009), onde tal debate é tratado em minúcias, bem como para trabalho
meu, ainda no prelo (Pádua, no prelo)
Direito, Estado e Sociedade n.38 p. 112 a 132 jan/jun 2011
* Doutorando em estudos da linguagem pela PUC-Rio, mestre em direito constitucional e teoria do estado
pela PUC-Rio, professor de direito processual penal da Universidade Federal Fluminense.
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difíceis de explicar para um leigo ou para um aluno iniciante de direito é
o de contrato não-escrito; às vezes mesmo um jurista tem dif‌iculdade em
reconhecer um contrato não-escrito quando o vê. Na dúvida entre versões
conf‌litantes sobre algum acordo ou combinação, “vale o que está escrito”:
se alguém detém algum documento, qualquer documento (mesmo o tal
guardanapo de bar), é sumamente difícil, quando não impossível, deixar
de lhe dar a razão, numa eventual disputa jurídica. E, no entanto, nada
obstante essa aparente simbiose entre o direito, como conjunto de normas
e práticas guiadas por essas normas, e a forma escrita, como uma das
formas possíveis de prática linguística, muito poucos foram aqueles que
se debruçaram, mesmo que em exercício investigativo, sobre as razões,
particularidades e consequências desse fenômeno.
Começaremos o exercício, ainda em sede de introdução, notando
que, conforme muitos já notaram, antes de ser tão fortemente ligado
à linguagem escrita, o direito é ligado à linguagem. Aliás, poder-se-ia
mesmo dizer que o direito é uma linguagem, ou melhor, um certo (con-
junto de) jogo(s) de linguagem, no sentido wittgensteiniano. Ou seja, num
sentido distinto do que o que é óbvio, também o direito é um conjunto
de regras e de normas2 derivadas de (ou inscritas em) práticas que dão
signif‌icação a todas as demais regras e normas que se inserem na forma
de vida do direito, inclusive as normas jurídicas em sentido mais es-
trito, isto é: aquelas regras de conduta que determinam, dentro de uma
unidade territorial específ‌ica, como devem ou não devem se comportar
as pessoas que se encontram nessa mesma unidade.
Todavia, essa ligação essencial e indissociável entre direito e lin-
guagem é frequentemente confundida com (ou assimilada a) uma ligação
essencial indissociável entre o direito e escrita. No que segue, tratarei,
2 Devo notar, incidentalmente, que estou aqui adotando, para efeitos conceituais, a distinção, formulada
por Robert Brandom ([1994] 1998, cap. 1), a partir da base do segundo Wittgenstein, entre regras e
normas. Segundo esta distinção, regras seriam proposições basais e normativas que determinariam as ma-
neiras pelas quais os usuários de uma determinada forma (ou jogo) de linguagem devem usá-la, de acordo
com a forma de vida na qual estão inseridos, a f‌im de que possam ser reconhecidos, racionalmente, pelos
demais usuários da linguagem naquela forma de vida, como usando-a corretamente. Normas, segundo
Brandom, seriam as práticas últimas das quais podem ser derivadas, reconstrutivamente, como marco zero,
as proposições que valem como regras. A necessidade conceitual e pragmática da distinção entre normas e
regras é evitar a leitura wittgensteiniana que Brandom chama “regulismo” (regulism, no original), pela qual
seria impossível determinar conceitualmente de onde viriam as regras de uso da linguagem em determinada
forma de vida (já que de determinadas proposições sempre podem ser derivadas, regressivamente, outras
proposições, que jamais poderiam clamar um estatuto originário, de resto, em relação às proposições reais
formuladas na própria língua em questão). Assim, originalmente, as regras de uso de qualquer língua de-
rivam das práticas culturais em que tal língua está, como forma de vida. E as práticas não produzem regras,
sob a forma de proposições, mas normas, sob a forma de comportamentos.
“Vale o que está escrito”: considerações
em torno da relação entre direito e escrita

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