Uma defesa do pós-positivismo

AutorThomas Da Rosa De Bustamante
CargoProfessor da Universidade Federal de Juiz de Fora. Doutor em Direito pela PUC-Rio. Mestre em Direito pela UERJ.
Páginas1-40

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Por pós-positivismo entende-se um tipo de teoria jurídica que, sem necessariamente negar a utilidade e a razoabilidade dos critérios positivos utilizados pelas teorias positivistas para identificar o direito válido em determinada sociedade, transcende os limites do pensamento positivista e, dessa forma, nega a tese da separação entre direito e moral. O conceito de "pós-positivismo" é definido a partir da própria noção de "positivismo", que ele pretende deixar para trás. De certa maneira, o pós-positivismo se contrapõe ao positivismo, já que com ele não compartilha a tese da separação entre direito e moral, mas é exagerado dizer que ele é necessariamente antipositivista, como era o direito natural clássico, pois os principais critérios utilizados pelo positivismo para delimitar o conceito de direito - a validade formal e a eficácia social -, ao contrário de serem desprezados pelo pós-positivista, são necessariamente incorporados à sua teoria. Por isso se pode dizer, com García Figueroa, que o pós-positivismo (ou neoconstitucionalismo externo, como ele prefere chamar) não é, como o jusnaturalismo, uma teoria meramente reativa ao positivismo jurídico1.

O debate entre positivistas e pós-positivistas gira em torno tanto de uma divergência teórica sobre o conceito de direito quanto também, e talvez até num grau mais intenso, em torno de uma diferença metateórica. O positivista e o pós-positivista divergem não apenas quanto ao objeto de estudo da teoria jurídica - o direito - mas também quanto às próprias tarefas, propósitos e justificativas das suas construções teóricas.

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Em seguida, irei fazer, ainda que de forma incipiente, uma defesa do pós-positivismo, bem como elucidar como esse tipo de teoria jurídica articula produtivamente as esferas do direito e da moralidade, ao entender o direito como uma prática social argumentativa dotada de uma pretensão de racionalidade que lhe confere um caráter tanto real (empírico) quanto ideal (normativo) e faz com que a sua descrição não possa ser feita com independência de uma reflexão crítica por parte de quem pretenda compreendê-lo.

I.

Iniciemos por esboçar o nosso conceito de "positivismo", pois este será o ponto de partida para a sua superação.

O positivismo, embora seja uma expressão que apareça normalmente no singular, refere-se a uma imensa pluralidade de concepções diferentes sobre o direito. Entre essas concepções, cabe destacar algumas.

O imperativismo, por exemplo, sustentava - no início do século XIX, com Bentham e Austin, entre outros - que o direito era redutível a uma série de comandos endereçados aos subordinados por parte de um soberano. Uma lei pode, nessa perspectiva, ser definida como "um conjunto de signos declarativos de uma vontade concebida ou adotada pelo soberano em um Estado, concernente à conduta a ser observada em certo caso por uma certa pessoa ou classe de pessoas, que no caso em questão estão ou devam estar sujeitas ao seu poder"2.

O realismo, por sua vez, vê o direito como o resultado de certas "regularidades sociais" que derivam da "repetida e constante execução de certas condutas externas"3. Como explica García Figueroa, "o realismo jurídico embasou boa parte de sua análise do direito na concepção do raciocínio jurídico como um processo psicológico. (...) O direito é o que os juízes dizem que é direito e a sua origem se encontra no processo psicológico que dá lugar à sentença. Dado que não existe ex ante um sistema jurídico de justificação que preceda à decisão judicial e sobre o qual esta possa se apoiar, o estudo do direito fica redirecionado (...) para a análise da explicação dos motivos desse processo psicológico do aplicador do direito"4. Page 3

O normativismo, por seu turno, vê o direito como um conjunto ou sistema de normas que podem ser expressas em proposições e identificadas a partir de suas fontes, a partir da forma ou procedimento por meio da qual elas são criadas pelas autoridades dotadas de competência para estabelecer comandos normativos obrigatórios à luz de um critério fundamental de identificação do direito - como, v.g., a norma fundamental hipotética de Kelsen - tido como válido hic et nunc. Numa palavra, "o direito regula a sua própria criação"5.

A relação entre essas teorias pode ser estabelecida da seguinte maneira, nos dizeres de Massimo La Torre: "Para o imperativismo o significado da norma é redutível às condições fáticas de sua emanação. Para o realismo o sentido da norma é redutível às condições fáticas de sua observância. Para o normativismo genuíno, enfim, o significado da norma é redutível ao seu conteúdo proposicional. Podemos reclassificar estas doutrinas também da forma seguinte: como aquelas que respectivamente concebem o direito como vontade, como história ou como forma"6.

O que essas teorias - além de todas as que genericamente podem ser qualificadas como "positivistas" - têm em comum é a tese da separação entre direito e moral, que são vistas como ordens normativas autônomas entre as quais não existem conexões necessárias. Nino qualifica essa como sendo a tese central do positivismo; segundo esta, "o direito é um fenômeno social que pode ser identificado e descrito por um observador externo sem recorrer a considerações acerca de sua justificação ou valor moral ou acerca do dever moral de obedecê-lo e aplicá-lo. Em outras palavras, e para repetir um velho slogan: que o direito que 'é' pode e deve ser cuidadosamente distinguido do direito que 'deve ser'"7.

Talvez a forma mais desenvolvida de positivismo contemporâneo seja a teoria jurídica de Herbert Hart, que reúne elementos tanto do normativismo quanto das teorias institucionalistas tradicionais e busca caracterizar o direito como uma "prática social" que pode ser identificada por meio de uma master rule semelhante, mas não idêntica, à norma fundamental de Kelsen. Hart denomina a esse critério "regra de reconhecimento". A regra (secundária) de reconhecimento "é aceita e usada para a identificação das regras (primárias) de conduta («primary rules of obligation»)". Onde quer que seja aceita uma regra de Page 4 reconhecimento R, tanto os indivíduos privados quanto as autoridades competentes para aplicar o direito são providos de critérios institucionais para identificar as regras primárias de comportamento8: "podemos simplesmente dizer que a afirmação de que uma regra particular é válida significa que ela satisfaz todos os critérios providos pela regra de reconhecimento"9. Portanto, assim como Kelsen, Hart prevê uma única norma básica que funciona como critério supremo - ou ainda, como um teste - para determinar a validade de todas as demais normas que compõem o ordenamento jurídico10. Mas apesar dessa importante semelhança entre os dois grandes juristas do positivismo há também sérias diferenças. Diferentemente do que ocorre em relação à norma fundamental kelseniana, a questão da existência e do conteúdo da regra de reconhecimento hartiana, ou seja, de "quais são os critérios de validade em qualquer sistema jurídico", é vista como "uma empírica - embora complexa - questão de fato"11. A regra de reconhecimento, ao invés de uma hipótese lógica ou um pressuposto de ordem transcendental - como a norma fundamental de Kelsen -, é uma norma última cuja existência pode ser empiricamente verificável, já que consiste em uma prática social12. Encontrá-la, portanto, requer do teórico do direito uma atenta análise da perspectiva interna, isto é, do ponto de vista do jurista prático, e não estritamente daquele do observador externo: "devemos lembrar que a regra de reconhecimento propriamente dita pode ser visualizada de dois pontos de vista: um é expresso por meio de um enunciado de fato externo segundo o qual a regra existe na prática efetiva do sistema; o outro é expresso por meio dos enunciados de validade internos feitos por aqueles que a usam para identificar o direito"13.

Mesmo para estudar o direito desde uma perspectiva externa - que é a perspectiva do positivismo de modo geral, inclusive o de Hart, na medida em que sua preocupação central é identificar o direito válido (descritivamente), e não dizer como devem os juízes decidir casos concretos (normativamente) - é necessário partir dos enunciados internos formulados pelos operadores do direito. Como explica Ruiz Manero, "a regra de reconhecimento hartiana se apresenta como uma regra juridicamente última - isto é, como uma regra que não é juridicamente válida nem inválida - que existe unicamente como prática consuetudinária dos Page 5 órgãos de aplicação, ou seja, enquanto estes órgãos aceitem e usem de forma consensual uns mesmos critérios últimos de validade jurídica"14.

Por isso, no pensamento jurídico de Hart somente se pode alcançar o conteúdo do direito positivo a partir da análise das regras que os próprios juristas acatam ao exercer sua atividade. É necessário, mesmo para o teórico do direito, que procura descrever "com neutralidade" e de forma objetiva um determinado sistema jurídico, recorrer à perspectiva interna dos aplicadores deste direito (ainda que o jurista teórico ou cientista do direito desaprove moralmente as normas que fazem parte de tal sistema).

Embora fascinante, a filosofia jurídica de Hart não pode ser analisada com detalhe aqui. Limito-me a enunciar, de forma sucinta, as três teses fundamentais que definem o direito para este autor. Como nos relata José Juan Moreso,

"o núcleo do positivismo jurídico hartiano pode ser capturado pelas três teses que se seguem: I) A tese das fontes sociais: a existência e o conteúdo do direito em certa sociedade dependem de um conjunto de fatos sociais, i.e., um conjunto de ações adotadas por membros dessa sociedade; II) A tese da separação: a validade jurídica de uma norma (i.e., o fato de que tal norma pertence a um certo sistema jurídico) não conduz necessariamente à sua validade moral, e, da mesma forma, a validade moral de uma norma não conduz necessariamente à sua validade jurídica; III) A tese dos limites do direito...

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