Por uma carta dos bens fundamentais

AutorLuigi Ferrajoli
CargoProfessor de Filosofi a do Direito e de Teoria Geral do Direito na Università degli Sudi Roma
Páginas29-73
Por uma carta dos bens fundamentais1
Luigi Ferrajoli2
Resumo: Este artigo questiona a possibilidade
de a estipulação dos direitos fundamentais, e
suas obrigações e proibições correspondentes,
ser suficiente para garantir adequadamente as
necessidades e os interesses vitais, em especial
aqueles de interesse coletivo. São bens funda-
mentais aqueles cujo acesso é garantido a todos
e a cada um, visto que são objetos dos direitos
fundamentais subtraídos à lógica do mercado. A
garantia de novos bens como bens fundamentais
exige uma decisão política civilizatória de
submeter ao direito as relações de mercado.
Assim, às cartas e convenções internacionais e
constitucionais de direitos fundamentais deveriam
ser acrescentadas Cartas Constitucionais e
Cartas Internacionais de bens fundamentais.
Daí a necessidade de uma nova dimensão do
constitucionalismo garantista: a longo prazo,
além de global, para além da lógica individualista
dos direitos e da miopia, e do estreito localismo
da política das democracias nacionais.
Palavras-chave: Bens fundamentais. Direitos
fundamentais. Garantismo.
Abstract: This article addresses the question of
whether the stipulation of fundamental rights
and obligations and prohibitions related to them
is sufficient to properly ensure the needs and
vital interests, especially those from collective
interest. Fundamental goods are those whose
access is guaranteed to each and every one
since they are the object of fundamental rights,
excluded from the logic of the market. The
warranty for new goods and basic goods in the
bottom of civilization requires a political decision
to submit the right market relations. Thus, to
the international charters and conventions and
fundamental constitutional rights should be
added Charters and international charter of basic
goods. Hence the need for a new dimension of
the constitutionally guaranteed: a constitutionally
guaranteed in the long term, and global, apart
from the individualistic logic of rights and
shortsightedness and narrow localism policy of
national democracies.
Keywords: Fundamental goods. Fundamental
rights. Warrantism.
1 Tradução de Daniela Cademartori (UNIVALI/SC) (daniela_cademartori@yahoo.com.
br) e Sergio Cademartori (UFSC) (scademartori@uol.com.br)
2 Professor de Filosofi a do Direito e de Teoria Geral do Direito na Università degli Sudi
Roma Tre. Dentre outras obras, escreveu Diritto e ragione. Teoria del garantismo penale;
Principia iuris. Teoria del diritto e della democrazia; Teoria assiomatizzata del diritto;
Democrazia autoritária e capitalismo maturo, em colaboração com Danilo Zolo, e La
cultura giuridica nell’Italia del Novecento.
Por uma carta dos bens fundamentais
30 Seqüência, no 60, p. 29-73, jul. 2010.
Introdução
Na tradição do constitucionalismo democrático, as necessidades e
os interesses vitais das pessoas estipuladas como merecedoras de tutela
têm sido expressados quase sempre sob a forma de direitos fundamentais:
da vida à integridade pessoal; da liberdade à sobrevivência; da instrução à
saúde; todos os valores essenciais e vitais, desde sempre proclamados nas
cartas constitucionais como fundamento e razão de ser do edifício jurídico,
e que foram inicialmente reivindicados, e posteriormente reconhecidos
e tutelados através da atribuição, aos indivíduos, de expectativas, ou de
pretensões ou faculdades, concebidas sempre como direitos subjetivos.
Paralelamente, foram, sobretudo, para não dizer somente, os direitos
fundamentais os que delinearam aquele sistema de limites e vínculos
substanciais aos poderes públicos que os quais denominei “esfera do
indecidível”, formada por aquilo que a nenhum poder, nem mesmo à
maioria, é consentido decidir ou não decidir.
A questão que tentarei abordar é: se a estipulação de tais direitos,
e as obrigações e proibições correspondentes a eles, é suficiente para
assegurar uma garantia adequada a todas as necessidades e a todos os
interesses vitais, particularmente aqueles de tipo coletivo. É suficiente,
por exemplo, o reconhecimento do direito de todos a viver num planeta
habitável – ao não aquecimento global, a não poluição dos mares, a não
depredação dos recursos naturais – para sugerir as formas de prevenção
de catástrofes provocadas por esses eventos, cujas dimensões vão
muito além das possibilidades de intervenção de qualquer jurisdição? A
atribuição a todos do direito à vida e à saúde, embora estatuído em tantas
cartas constitucionais e internacionais, é capaz de garantir a vida e a saúde
aos milhões de pessoas que hoje vivem na indigência e que, na quase
totalidade dos casos, não têm um juiz perante o qual demandar justiça,
tanto pela inexistência de tal juiz, ou porque não possuem os meios para
requerê-la? Naturalmente, a afirmação de tais direitos e das respectivas
obrigações e proibições é essencial para a sua tutela. Mas é ela, também,
nos casos exemplificados, suficiente?
Luigi Ferrajoli
Seqüência, no 60, p. 29-73, jul. 2010. 31
Aquilo que caracteriza todas essas catástrofes e essas emergências
está no fato de que os correlativos direitos, consistentes ora em expectativas
negativas de não lesão, ora em expectativas positivas de prestação,
têm por objeto os bens – a atmosfera, o equilíbrio ecológico, a água, a
alimentação básica, os medicamentos essenciais – em cuja proteção ou
prestação consiste a sua garantia. Este ensaio pretende evidenciar como a
garantia desses bens, os quais denominarei “fundamentais”, e seus direitos
correlativos requerem disciplinamento autônomo e específico, que vão
muito além dos interesses e direitos dos indivíduos singulares e da sua
capacidade e possibilidade de intervenção.
1 Uma redefinição do conceito de bens
O termo “bens fundamentais” é desconhecido na linguagem jurídica
usual. Com ele, designei uma subclasse dos bens que por sua vez são uma
subclasse das coisas.3 “Coisa” e “bem” são por sua vez termos do léxico
jurídico tradicional. São “coisas” todos aqueles objetos observáveis e
tangíveis que possuem um valor de uso e são por isso utilizáveis pelos
seres humanos.4 Não são “coisas”, por exemplo, todos os corpos físicos
inacessíveis, dos quais é, portanto, impossível o uso, como um terreno
situado na lua, ou as estrelas, ou os minerais localizados no centro da
3 Em Principia iuris. Teoria del diritto e della democrazia, Laterza, Roma-Bari 2007, I.
Teoria del diritto, cap. XI, § 11.10, p. 776. Antecipei a noção de “bens fundamentais” e a
classifi cação de tais bens em “personalíssimos”, “comuns” e “sociais” em Diritto civile
e principio di legalità, in Il diritto civile oggi. Compiti scientifi ci e didattici del civilista,
Edizioni Scientifi che Italiane, Napoli 2006, p. 81-91 e in La crisis de la democracia en la
era de la globalización, in M. Escamilla y M. Saavedra (Ed.), Derecho y justicia en una
sociedad global - Law and ju stice in a global society, in “Anales de la Cáte dra Francisco
Suárez”, n. 39, 2005, p. 37-66.
4 Lembro de algumas das defi nições escolásticas mais difundidas: “coisa é uma qualquer
porção do mundo externo que seja suscetível de ser utilizada” (G. MESSINEO, 1957, I,
§ 25.2, p. 380); “coisa” é qualquer “entidade material impessoal” (BARBERO, 1965,
§§ 138 e 141, p.219 e 221); “coisa” é uma parte \da matéria...que possa ser fonte de
utilidade e objeto de apropriação” (TORRENTE; SCHLESINGER, 1994, § 58, p. 108);
“são ‘coisas’ aquelas entidades (ou porções) da realidade natural que são suscetíveis de
gozo de forma exclusiva” (MESSINETTI, 1979).

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