A tutela penal fundada no gênero: aspectos criminológicos, penais e processuais da Lei Maria da Penha

AutorCarlos José Cordeiro/Josiane Araújo Gomes
Páginas407-427

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Introdução

Na história do Direito Penal observa-se um movimento pendular, ora no sentido da descriminalização ora da criminalização. Por força do espírito do tempo e da historicidade, certas condutas perdem dignidade penal e outras ganham. O complexo conceito de bem jurídico assume novos contornos, nele se inserindo aspectos difusos – como o meio ambiente, as relações de consumo, o genoma humano, o patrimônio público, histórico e cultural; aspectos relacionados à igualdade racial, à proteção de minorias e de classes vulneráveis, inclusive por razões de gênero, orientação sexual ou idade (crianças e idosos).

Nesse movimento pendular, por vezes se identifica uma hipertrofia (Direito Penal máximo) e por outras se vislumbra uma atrofia (proteção insuficiente), ambas passíveis de questionamentos de legitimidade em um Estado Democrático de Direito.

Para o que aqui interessa mais de perto, cumpre analisar a modificação de postura do Estado e do Direito Penal no tocante à proteção da mulher e à violência doméstica, que desembocou, em face de punição sofrida pelo Brasil na Organização dos Estados Americanos (OEA), na promulgação da Lei 11.340/06, conhecida como “Lei Maria da Penha”.

Neste breve artigo, enfocar-se-ão, a partir de perspectivas dogmática, hermenêutica e criminológica, alguns aspectos da tutela penal concernente ao fenômeno da violência doméstica, indagando-se sobre sua legitimidade, especialmente com vistas às concentradas exigências do princípio da igualdade.

1 A violência doméstica contra a mulher: UMA perspectiva histórico-etiológica

Ainda que a criminologia clássica ou etiológica esteja em crise, provocada, sobretudo, pelos duríssimos ataques levados a cabo pela criminologia crítica (interacionista), não se pode abrir mão dos estudos correlatos às causas dos crimes3.

E isso é mais verdadeiro em se tratando do fenômeno em estudo, ou seja, da violência doméstica, que permite e exige uma investigação voltada para as suas causas mais prováveis.

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No devir histórico, o patriarcado foi amplamente aceito, estabelecendo-se uma relação de submissão entre o homem e a mulher. Esta relação vertical se sustentou, durante séculos, no vigor físico masculino, na assunção do papel de provedor, pelo varão, e na imposição de um papel submisso à mulher, que permanecia circunscrita aos afazeres domésticos.

Nesse contexto, convém lembrar, como destacado em voto do Ministro Dias Toffoli4, que as Ordenações Filipinas, em vigor no Brasil até a outorga do Código Penal do Império (1830), conferiam expressa autorização para o feminicídio (Título XXV, Livro V), caso o marido colhesse a mulher na prática do adultério, podendo matar a ela e ao adúltero, salvo se o marido fosse peão e o adúltero fidalgo. A mulher, de todo modo, ele poderia sempre matar...

A revolução industrial do século XIX e o papel decisivo nela assumido pelas mulheres impulsionaram os movimentos feministas, desembocando em importantes conquistas no plano da igualdade formal. O direito ao voto foi sofridamente obtido nas primeiras décadas do século XX, e a revolução feminista da década de 1960 implicou no banimento – no aspecto estritamente formal – dos tratamentos discriminatórios.

Nada obstante, no plano da igualdade substancial, o fenômeno ainda se apresenta bem diverso. Enquanto os postos de trabalho continuam sendo ocupados de modo discriminatório (com homens exercendo cargos diretivos), no plano protossocial também se reproduz uma intolerável hierarquia, em que o varão permanece como o chefe do lar, especialmente em comunidades mais pobres.

Ressalte-se, já no compasso hermenêutico, que boa parte da doutrina brasileira das décadas de 1940 a 1970, sustentava que o marido não poderia ser autor de delito de estupro contra a mulher, na constância do casamento5, em face da existência do debitum conjugale, o que obviamente recusava liberdade e dignidade sexual à mulher, transmudada em verdadeiro objeto de posse. Invertendo-se a máxima kantiana6, consagrava-se a coisificação da mulher, rebaixada a simples meio para um fim.

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Sob a influência dessa visão machista, centenas de “homicidas passionais” restaram absolvidos, até meados do século XX, pelos Tribunais do Júri do Brasil a fora, escudados na famigerada “tese” da “legítima defesa da honra”. A esses homicidas, Nélson Hungria denominava, ironicamente, “açougueiros do amor”. Cumpre reproduzir aqui uma importante reflexão do autor7, que tão bem perspectivava o Zeit-Geist8, com uma visão crítica:

O melhor meio de identificar esses estelionatários do brio e do amor é investigá-los na intimidade de sua vida conjugal. São, em regra, maridos grosseiros, egoístas, tirânicos. A esposa há de ser sempre para eles a escrava submissa, a emborcar, passivamente, a taça de todas as amarguras e vilipêndios. Só conhecem o lado material da vida. Incapazes de um sacrifício pessoal, não sabem privar-se de um prazer, enquanto os seus lares se ensombram no desconforto e na miséria. Faltam aos mais comezinhos deveres morais impostos pelo casamento. Vem daí que, de vexame em vexame, de desilusão em desilusão, suas esposas, quando não sejam Penélopes ou mulheres cuja virtude se resguarda na própria altivez sexual, resvalam para o adultério. Acostumados a ver na esposa apenas o objeto de sua posse arbitrária, desapercebem-se, tais indivíduos, de que há nela uma alma que sente e se revolta. Certamente, a lei e a moral não permitem que a mulher prevarique, ainda quando maltratada e humilhada pelo marido; mas negar-lhe o direito de viver seria um requinte de impiedade. O tue-la de Dumas Filho é um conselho execrável. Em hipótese alguma, o marido tem o direito de matar a esposa.

O mais surpreendente é que Hungria conclui a passagem aventando com a possibilidade de se “perdoar” um uxoricida que comete o crime “arrastado pela intensidade de um amor infeliz ou de uma paixão autêntica”, mas nega “remissão para aquele que elimina a esposa em nome de um monstruoso dever de honra”9.

É dizer, a compreensão vanguardista do autor (no tocante à legítima defesa da honra) tinha seus horizontes hermenêuticos intrínsecos, impostos pelas suas vi-

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vências, preconceitos e visão de mundo (Weltanschauung)10, de um momento histórico no qual o uxoricídio era socialmente tolerável.

Motivada por esse secular desnível e por outros tantos fatores diversos que continuam inalterados, a violência doméstica continua assumindo níveis alarmantes.

De acordo com pesquisa realizada pelo Instituto Sangari, as estatísticas apontam que, em 2010, 4.297 mulheres foram mortas no Brasil11. De 1980 até 2012, foram assassinadas aproximadamente 91.000 mulheres no país. Nos últimos 30 anos, o número anual de mortes passou de 1.353 para 4.297, um aumento de 217%. A pesquisa ainda revela que o Brasil ocupa o desonroso 7º lugar no ranking internacional da OMS (Organização Mundial de Saúde), no tocante ao feminicídio, com uma inaceitável taxa de 4,4 por 100 mil habitantes. Os dados também apontam que 40% dos homicídios acontecem no lar e que os elevados níveis de reincidência nas agressões (mais de 50%) contribuem para o desfecho com morte. A pesquisa indica, outrossim, que 42% das agressões são perpetradas por parceiros.

Portanto, respeitadas as limitações científicas que hoje já são bem conhecidas, uma análise criminológica, sob o viés etiológico, ainda se faz necessária. Os fatores associados às diferenças de gênero precisam ser desvelados para a compreensão da fenomenologia criminógena e para sua redução, por meio de uma política criminal eficaz. Em poucas palavras: há mesmo grandes limites para a criminolo-

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gia etiológica, apontados pelo labeling approach12, mas sua importância não pode ser descartada como instrumento de política criminal13.

Não se cuida de tentar estabelecer uma causa única para o crime, em uma consideração filosófica positivista, que remonta ao conceito de causa e efeito de Stuart Mill. O que se sustenta é que os fatores etiológicos devem, sim, ser considerados para a lida do fenômeno da criminalidade e, para o que aqui nos interessa, da violência doméstica. Se não é possível – como sempre ocorre nas ciências sociais – perspectivar a explicação criminológica segundo um modelo determinista, é lícito trabalhar com a probabilidade, no intuito de se formular medidas eficazes de política criminal, meta de um Direito Penal funcional.

Partindo-se de tais premissas, examinar-se-á a Lei 11.340/06 e enfrentar-se-ão as críticas que lhe são opostas, notadamente nas sendas do princípio da igualdade.

2 Antecedentes e metas da lei Maria da Penha

No ano de 1994, o Brasil abrigou o fórum internacional que aprovou a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, realizado em Belém do Pará. Porém, foi somente com a exposição do caso de Maria da Penha Fernandes à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, que o cenário começou a se alterar.

Ocorreu que a vítima, Maria da Penha, sofreu uma tentativa de homicídio, no ano de 1984, perpetrada pelo então marido, que a deixou tetraplégica. Após 15 anos sem julgamento do processo pela Justiça brasileira, o caso foi levado à apreciação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que decidiu por punir o Estado Brasileiro, em face do...

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