Tutela Judicial dos Direitos Sociais: para Além do Mínimo Existencial na Jurisdição Constitucional Democrática

AutorGérson Marques/Ney Maranhao
Páginas276-290

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1. Introdução

O presente trabalho tem como escopo apresentar um dos critérios adequados para a solução judicial da crise de efetividade viven-ciada em relação aos direitos sociais no Brasil: a superação do paradigma do mínimo existencial, jurisprudencial e doutrinariamente dominante, o qual tem um viés mercadológico e tem sido o único critério utilizado para afastar as críticas

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relacionadas à falta de legitimidade democrática do Poder Judiciário para criar políticas públicas, à reserva razoavelmente possível e à questão da escassez dos recursos.

Sabe-se que a atuação judicial em políticas públicas é essencial ao desenvolvimento da cidadania, mas, por outro lado, se for ilimitada, pode surtir efeitos deletérios à própria concretização dos direitos sociais, que sabidamente constroem espaços para a promoção da igual-dade, base dos direitos humanos, e da inclusão. Não se pode, todavia, partir para uma tutela judicial de direitos sociais tendo como foco apenas a realização do mínimo existencial, já que, além de minimizar a importância jurisdição constitucional na atualidade, a realização progressiva desses direitos, a qual inclui uma política educacional emancipatória e adequados serviços de saúde, é condição para o exercício da liberdade.

A realização progressiva dos direitos sociais constitui pressuposto para a consagração pragmática do conceito pós-moderno de democracia, o qual, superando a ideia de mera representatividade formal, pressupõe uma participação consciente e com capacidade real de influência nas decisões políticas da comunidade. Nessa perspectiva, pretende-se romper com o paradigma da modernidade e firmar posicionamento a respeito do resgate da ética na arena política, a fim de possibilitar a concretização do direito ao desenvolvimento, que pressupõe estimular as potencialidades democráticas e a efetividade dos direitos sociais. Superar o paradigma do mínimo existencial, nesse contexto, é o objetivo deste trabalho.

2. O discurso ideológico neoliberal quanto à tutela judicial dos direitos sociais

Por oportuno, esclarece-se que, não obstante a distinção doutrinária entre direitos sociais, econômicos e culturais1, será utilizada quanto a todos eles, neste trabalho, a denomi- nação genérica de “direitos sociais”, que podem ser, inclusive, agrupados em algumas categorias2.

A efetividade dos direitos sociais constitui um objetivo ainda a ser perseguido no Brasil, país de modernidade tardia e arcaica, cujas promessas ainda não se realizaram, pois a maior parte da população sequer tem acesso aos bens mínimos necessários à vida com dignidade, quanto mais os aptos ao desenvolvimento de suas potencialidades3. Entre o reconhecimento dessa categoria e a vivência concreta dos valores pertinentes ao Estado Social há um espaço gigantesco, o que, na prática, somente amplia as desigualdades que justificaram o aparecimento desses direitos.

A tutela judicial dos direitos sociais, entretanto, recebe as mais diversas críticas por parte da doutrina, as quais, segundo preleciona

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Cláudio Pereira de Souza Neto4, podem ser agrupadas em principiológicas, que questionam a própria legitimidade de o Judiciário atuar na concretização de direitos sociais, e institucionais, relacionadas aos problemas práticos decorrentes das decisões judiciais que determinam a entrega de bens e serviços à população. Na primeira categoria, enquadram-se as críticas de índole liberal (“a sociedade deve ser governada por leis, não por juízes”) e democrática (“os juízes não foram eleitos pelo povo”), enquanto que, na segunda, as críticas de ordem financeira (“os recursos são escassos para atender todas as necessidades sociais”), administrativa (“a atuação judicial desorganiza a Administração Pública, que, ao invés de se preocupar com as políticas públicas, fica sempre na perspectiva de dar cumprimento à próxima liminar”), técnica (“falta aptidão técnica aos juízes quanto a políticas públicas”), econômica (“os juízes, normalmente, não se levam em conta as consequências da decisão”) e da desigualdade quanto ao acesso à justiça. São críticas que envolvem questionamentos de ordem jurídica, envolvendo a teoria da Constituição, seu papel e alcance, filosófica e operacional5.

A questão da eficácia dos direitos sociais, entretanto, não tem cunho científico, é meramente ideológica6. Ideologia é um termo que não possui sentido unívoco, mas, certamente, “está diretamente relacionado à maneira pela qual o Homem apreende a realidade”7. Conforme preleciona Willis Santiago Guerra Filho, “o

Direito como criação humana, como produção da linguagem, se encontra a todo o momento com a ideologia, e desse encontro cabe uma reflexão filosófica dos contornos e potencialidades do próprio Direito enquanto fenômeno ideológico”8.

A função da ideologia é fazer com que o pensamento hegemônico apareça como legítimo e, deste modo, aceitável9. No caso dos direitos sociais, a premissa básica ou o ponto de partida nesta discussão diz respeito ao fato de que a lógica capitalista deve ser compatibilizada com valores que lhe são estranhos, pois a eficiência econômica não pode prevalecer, a não ser que inclua em sua estrutura a eficiência do desenvolvimento do cidadão10, característica do Estado Constitucional contemporâneo.

Se “os direitos humanos venceram as batalhas ideológicas da modernidade”11, uma vez que procuram priorizar o ser humano como valor fundamental da sociedade, precisa-se de uma hermenêutica emancipatória quanto à ideologia neoliberal, que compromete a efetividade dos mesmos, especialmente em matéria de políticas públicas. Em outras palavras, a racionalidade liberal de expansão material capitalista — que reprime, aliena e coisifica o homem — deve ceder espaço à (nova) racionalidade emancipatória, libertadora, um modelo crítico-interdisciplinar de reflexão analítica que não permite engodo, falácia ou pensamento colonizado12. Afinal, o respeito à pessoa humana é o valor referencial das ideologias, verdadeira

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qualidade de condição transcendental do processo histórico, legitimando a atuação estatal13. Sem essa noção14, certamente, corre-se o risco de se adotar uma postura que, na prática, inviabilize a concretização dos direitos sociais15.

3. Direito ao desenvolvimento e justiça econômico-social: rompendo a lógica neoliberal

Sem a necessária reflexão ética, o capitalismo global caminha gerando riscos socioambientais. Da acumulação primitiva, passando pelo processo industrial até a financialização atual, o capitalismo se reinventa determinando as relações humanas como relações de consumo. Assim, pode-se dizer que a globalização, calcada na competição, nos interesses comerciais e financeiros, na lógica do mercado e no consumismo, ao invés de se basear na cooperação e na solidariedade, está levando a humanidade a um grande desastre social (exclusão, desemprego, baixos salários etc.) e ambiental16.

Nesse cenário em que “tudo se transforma em mercadoria, mediante uma ordem jurídica que altera a cogência pela negociação, afasta o Estado-legislador do centro dos poderes e intenta limitar o Estado-juiz a retomar-se como bouche de la loi17, revela-se imperioso redefinir o papel do Estado e superar os entraves ideológicos que comprometem a efetividade dos direitos sociais no Brasil, para se construir um novo paradigma, agora pautado por uma agenda de inclusão social que aponte em direção ao desenvolvimento sustentável18, mais igualitário e democrático19.

Como enfatiza Judith Martins-Costa, “tal qual a economia, também o Direito não é neutro.

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Consiste na ruptura da neutralidade, é tecido por humana escolha, é produção de normas e tomadas de decisões”20. Assim, em um país “comumente tolerante e cortês com os poderosos, mas insensível com os excluídos e cruel com aqueles que desafiam a estabilidade social baseada na hierarquia e na desigualdade”, como é o caso do Brasil, impõe-se exigir justificação jurídica das decisões, inclusive, para reduzir o espaço de pura discricionariedade, no âmbito legislativo, propiciando, em respeito à transparência republicana e ao Estado de Direito, o “reconhecimento de direitos àqueles que são desconsiderados pelo sistema político e pela própria sociedade”, os quais devem ser tratados com igual consideração e respeito no desenvolvimento de suas potencialidades21.

Impõe-se, portanto, demarcar posição no Brasil. O Libertarianismo representado por Robert Nozick22, que prega um Estado mini-malista em todos os setores, sequer deve ser cogitado. O Liberalismo Igualitário de John Rawls23, embora seja um avanço, também não se revela suficiente, dado o elevado quadro de exclusão e desigualdade sociais, sendo por tudo isso demasiadamente abstrato e teórico24.

Os cidadãos brasileiros, em sua larga maioria, ainda não têm liberdade efetiva, são carentes, infelizmente, de necessidades básicas, de modo que as instituições por aqui ainda não estão bem ordenadas25.

A sociedade brasileira, desse modo, tendo em vista o potencial destrutivo da globalização econômica, deve adotar uma teoria tridimensional da justiça, incorporando, com base na lição de Nancy Fraser26, a dimensão política da representação ao lado da dimensão econômica da distribuição e da dimensão cultural do reconhecimento, evitando, desse modo, má distribuição de riquezas e falso reconhecimento de categorias que se posicionam socialmente em situação de maior vulnerabilidade.

A base da mudança rumo ao desenvolvimento, por certo, está além de instituições abstratas...

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