Colisões de direitos fundamentais nas relações jurídicas travadas entre particulares e a regra da proporcionalidade: potencialidades e limites da sua utilização a partir da análise de dois casos

AutorLuiz Guilherme Arcaro Conci
CargoProfessor da Faculdade de Direito da PUC/SP. Mestre e doutorando em Direito do Estado, sub-área Direito Constitucional, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Páginas1-39

Palestrante convidado da PUC/SP no curso de Pós Graduação Lato Sensu (Especialização) em Direito Constitucional - COGEAE. Palestrante convidado da PUC/SP no curso de Pós Graduação Lato Sensu (Especialização) em Direito Penal e Processual Penal - COGEAE. Palestrante convidado no curso de Especialização em Direito Constitucional da Escola Superior de Direito Constitucional - ESDC. Professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Membro do Conselho Editorial da Revista Brasileira de Direito Constitucional - RBDC. Supervisor Jurídico do Núcleo de Prática Jurídica Escritório Modelo Dom Paulo Evaristo Arns, na PUC/SP.

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Introdução

O presente artigo1 tem por objetivo enfrentar o tema da aplicação da regra da proporcionalidade quando da colisão de direitos fundamentais baseada em uma relação jurídica travada entre particulares. Para isso, devo apontar o norte do presente artigo para dois grandes temas, quais sejam, a regra da proporcionalidade, por um lado, e a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais quando a travar relações entre si, ausente, dessa forma, a figura do Estado.

Todavia, pretendo partir de alguns pontos basilares para que meu trabalho se foque no objetivo principal lançado mais acima, que é enfrentar a potencialidade da utilização da regra da proporcionalidade quando uma relação jurídica não presencia a figura do Estado, é dizer, uma relação cidadão-cidadão e não uma relação cidadão-Estado. Page 2

Para o alcance de tal objetivo, fincarei, logo no início, as premissas sobre as quais construo meus argumentos, sem que sejam elas, por óbvio, o objeto do presente artigo, a deixar de lado, por opção, o desenvolvimento de alguns aspectos mais teóricos, os quais desenvolvi em minha dissertação de mestrado junto ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito da PUC/SP, para aprofundar a discussão na resolução dos dois problemas propostos, que são o verdadeiro objeto desse artigo.

Para tanto, o artigo está estabelecido na seguinte ordem, que entendo ser a mais razoável para o objetivo que firmei: primeiro, firmarei as minhas premissas, como (a) minha posição sobre os direitos fundamentais e a vinculação dos particulares a eles e, a seguir, tratarei, brevemente, (b) da regra da proporcionalidade, já muito debatida e pouco entendida hodiernamente; logo após, farei a (c) aplicação dessas premissas aos dois casos propostos que merecem, ao meu ver, diferentes modos de decisão, sendo o primeiro, aquele que tratará do tema da fiscalização de mensagens eletrônicas de empregado pelo empregador e, o segundo, de caso em que empregado conhece da possibilidade de empresa causar dano ambiental e informa ao empregador para que obste o referido dano, mas, de forma abrupta, é informado que se levar a conhecimento de terceiros tal fato será demitido com justa causa.

Os dois referidos casos são interessantes, ao meu ver, em razão de dispensarem técnicas distintas de decisão, apesar de se poder "falar" em direitos fundamentais em ambos, mas ser impossível, também ao meu ver, resolvê-los a partir da regra da proporcionalidade.

1. As premissas
1.1. Os direitos fundamentais e a vinculação dos particulares nas relações jurídicas travadas com outros particulares

Para que alcance, ao final do presente artigo, a resolução dos casos acima referidos, é necessário que aponte, ao leitor, minha posição sobre a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais nas relações que travam com outros particulares.

O tema já mereceu, também no direito brasileiro, alguns estudos de monta2 e, como não se trata do objeto central do artigo, já que se faz pressuposto, aponto que, ao meu ver, os Page 3 particulares, nas relações que travam com outros particulares, estão vinculados imediatamente aos direitos fundamentais e não, somente, ao direito privado, pois, a priori, negar tal vinculação faria com que admitíssemos que o dogma contemporâneo da supremacia da constituição fosse negado e, por conseguinte, admitiríamos que há uma seara do direito independente dessa mesma constituição. Trata-se da admissão de que os particulares, quando a travar relação jurídica com outros particulares, devem, sim, entender que os direitos fundamentais estão a vinculá-los juridicamente de forme imediata3, haja, ou não, uma relação de inferioridade entre eles.

Também, que independe, essa vinculação, de uma mediação a ser executada pelo legislador, mediante lei, que contemple expressões abertas como boa-fé, função social etc., ou pelo juiz, mediante o atendimento de um dever de proteção do mais enfraquecido naquela relação jurídica, para que, finalmente, chegue-se à conclusão de que os direitos fundamentais estão a vincular aos particulares4.

Assim, a vinculação da relação jurídica entre particulares aos direitos fundamentais independe da participação do legislador ordinário como intermediador entre a Constituição e seus direitos fundamentais e o negócio jurídico a ser celebrado, já que, no momento mesmo Page 4 da celebração do acordo, as partes devem respeitar o conteúdo jurídico dos direitos fundamentais e se submeter a eles, sob a razão de que também os particulares, ou especialmente estes, podem afrontar direitos fundamentais, dada, mas não necessariamente, a posição de supremacia na qual se mantêm perante a parte desprivilegiada ou a violação ao Direito que podem produzir.

Deve-se ter por certo que, contemporaneamente, mesmo as relações jurídicas travadas entre particulares transcendem os interesses dos pactuantes para que alcancem o status de questão afeta a toda a sociedade, o que não significa uma transferência da titularidade desses direitos para o Estado, por óbvio5.

A função desses direitos fundamentais seria de fazer as vezes dos "últimos nós de uma rede" que tem por objetivo proteger o particular de abusos provindos de terceiros muitas vezes mais poderosos, independentemente desses terceiros serem sujeitos privados ou autoridades públicas6, e, também, como proteção de violações de direitos fundamentais a partir de relações jurídicas travadas entre particulares. Independe, para que se reconheça essa Page 5 vinculação, da atuação do Poder Judiciário, para que somente após a judicialização da demanda se entendam vinculados os particulares aos direitos fundamentais, dado que o dever de aplicação daqueles direitos pelo juiz faria com que a relação jurídica antes não tutelada pelos direitos fundamentais passasse, como em um passe de mágica, a sê-lo. Isso porque quando da celebração do negócio jurídico estão protegidos e limitados os particulares pelos direitos fundamentais.

A construção parece, à primeira vista, bastante alentadora. Todavia, por vezes não deixa de ter um conteúdo bastante simplificado e incapaz de responder a algumas questões como: em que medida esses direitos vinculam aos particulares? Como se verifica esta vinculação, dado que os direitos fundamentais, em grande parte das vezes, são veiculados a partir de princípios jurídicos?

É claro que admitir a vinculação imediata dos particulares aos direitos fundamentais não deixa de ter um conteúdo protetivo, principalmente quanto aos mais enfraquecidos na relação jurídica7. Contudo, importa refletir sobre a intensidade com que esses direitos fundamentais vinculam aos particulares, para o que se pergunta: há fundamento constitucional para afirmar o que acabo de expor mais acima? Vejamos.

A partir das constituições do pós-guerra, em grande parte sucessoras de documentos constitucionais de baixa eficácia, viu-se, implementados em seus textos, dispositivos que impõem a aplicação imediata dos direitos fundamentais. Algumas dessas Constituições dizem contra quem devem ser aplicados enquanto outras, como a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, somente afirmam a aplicabilidade imediata8, sem dizer a quem Page 6 são endereçados os mandamentos desses direitos. Essa estratégia tem por função superar a mera ineficácia das normas de direitos fundamentais, para alguns sua mera programaticidade, para entender que, a partir do momento em que o texto constitucional produz efeitos jurídicos, também os direitos fundamentais estariam aptos a produzir tais efeitos por sobre todo o sistema jurídico (dimensão objetiva dos direitos fundamentais9), pois, com isso, desloca-se o monopólio da conformação dos direitos fundamentais da seara do legislador, que deveria regulamentar os temas não exauridos pelo poder constituinte, para entender que os intérpretes passam, também, a concretizar tais direitos fundamentais, via ato de criação que se admite na atividade de interpretação. É dizer, como medida para fortalecer a eficácia das normas constitucionais, entende-se que estas se aplicam imediatamente.

A referida estratégia é demasiadamente importante na medida em que não se entende mais possível que o legislador se assenhore, com exclusividade, da conformação das Constituições, como a entender que estes são também seus...

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