Parlamento e Tratados Internacionais: o modelo Constitucional do Brasil

AutorJosé Francisco Rezek
Páginas40-72
PARLAMENTO E TRATADOS
INTERNACIONAIS: O MODELO CONSTITUCIONAL
DO BRASIL
PARLIAMENT AND INTERNATIONAL
TREATIES: THE CONSTITUTIONAL
MODEL OF BRAZIL
José Francisco Rezek
ISSN 1982-0496
Licenciado sob uma Licença Creative Commons
Graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (1966), Doutor
da Universidade de Paris (Panthéon-Sorbonne) (1970), Diploma in Law da
Universidade de Oxford (1979). Foi Procurador da República, Ministro do
Supremo Tribunal Federal, Chanceler da República e Juiz da Corte Internacional
de Justiça das Nações Unidas.
INTRODUÇÃO
É da responsabilidade do poder Executivo, mesmo nas grandes democracias
parlamenta res, a dinâmic a das relações internacionais . Notadamente o
comprometimento externo formal, a expressão do consentimento do Estado em relação
aos tratados, é algo que se materializa sempre num ato de governo - a assinatura, a
ratificação, a adesão. Mas é próprio das democracias, ainda que sob o sistema de
governo presidencialista, que os pressupostos do consentimento, ditados pelo direito
interno, tenham normalmente a forma da consulta ao poder Legislativo. Sempre que o
Executivo depende, para comprometer externamente o Estado, de algo mais que sua
própria vontade, isto vem a ser em regra a aprovação parlamentar. O modelo suíço, em
que o referendo popular precondiciona em caráter permanente a conclusão de certos
tratados, configura uma exceção, assim como excepcionais têm sido os episódios
avulsos de consulta ao eleitorado quando se cuida, como na Europa dos últimos anos,
de integrar determinado país a um processo comunitário de grande desenvoltura e de
notáveis consequências.
O estudo dos pre ssupo stos co nstitucionais do cons entim ento é,
fundamentalmente, o estudo da partilha do treaty-making power entre os dois poderes
políticos - Legislativo e Executivo - em determinada ordem jurídica estatal. O estudo do
quadro brasileiro, sob a regência da Constituição de 1988, será aqui precedido, ainda
que em molde sumário, pela consideração de alguns outros sistemas nacionais.
Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 14, n. 14, p. 40-72, julho/dezembro de 2013.
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1. SISTEMAS DE PARTILHA DO PODER CONVENCIONAL
Deixam-se de lado os modelos nacionais em que, de direito ou de fato, não há
partilha, entre governo e parlamento, do poder de comprometer o Estado no plano
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internacional. Em tais casos, hoje muito raros, não se pode falar, a rigor, em
pressupostos constitucionais do consentimento, visto que nada o precondiciona senão
a vontade daquele mesmo poder que o exprime. No cenário restante abordam-se, em
razão de sua excelência didática, três modelos: o francês, o britânico e o norte-
americano.
§ 1. No modelo francês a aprovação parlamentar constitui pressuposto da
confirmação de alguns tratados que a Constituição menciona, no seu artigo 53. São
eles os tratados de paz, os de comércio, os relativos à organização internacional, os
que afetam as finanças do Estado, os que modificam disposições legislativas vigentes,
os relativos ao estado das pessoas, e os que implicam cessão, permuta ou anexação de
território. Cuida-se, pois, de um sistema inspirado na ideia do controle parlamentar dos
tratados de maior importância, à luz do critério seletivo que o próprio constituinte
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assumiu.
Não há, assim, sob o aspecto qualitativo, diferença entre o modelo francês -
herdado pela Constituição de 1958 às linhas gerais de suas predecessoras de 1946 e
1875 - e o que prevaleceu no Império do Brasil, sob a Constituição de 25 de março de
1824. Separa-os um fator puramente quantitativo, vez que neste último caso a
aprovação da Assembleia-Geral impunha-se apenas quando o tratado envolvesse
cessão ou troca de território imperial - 󰜝ou de possessões a que o Império tenha direito󰜞
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e desde que celebrado em tempo de paz.
§ 2. A originalidade do modelo britânico, construído sob o pálio de uma constituição
costumeira, está no modo de enfocar a matéria. Ali, como no sistema já visto, alguns
tratados não prescindem do beneplácito parlamentar. Não se pretende, contudo, que
seja este um requisito de validade da ação exterior do governo, mas um elemento
necessário à implementação do pacto no domínio espacial da ordem jurídica britânica.
O governo é livre para levar a negociação de tratados até a fase última da
expressão do consentimento definitivo, mas não deve deslembrar-se da sua inabilidade
constitucional para alterar as leis vigentes no reino, ou para, de qualquer modo, onerar
seus súditos ou reduzir-lhes os direitos, sem que um ato do parlamento para isso
concorra.
Este, pois, o toque peculiar ao modelo britânico. O mais singelo e estereotipado
pacto bilateral de extradição reclama, para ser eficaz, o ato parlamentar convalidante,
1
Em sua obra de 1943, Paul de Visscher mencionava alguns exemplos ostensivos de
concentração do poder convencional nas mãos do governo. Eram eles, na época, o Império do Japão, a
Alemanha sob o III Reich, a Etiópia, a República de São Marinho, a Arábia Saudita, o Iêmen e o Vaticano
(Paul de Visscher, De la conclusion des traités internationaux, Bruxelas, Bruylant, 1943, pp. 26-28).
2
Quanto ao procedimento: manifestam-se, na França, as duas casas do parlamento, quais sejam
a Assembleia Nacional e o Senado; e o fazem por meio de uma lei, aprovando o tratado, e permitindo,
pois, sua confirmação pelo Presidente da República.
Constituição política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824, art. 102 - VIII.
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Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 14, n. 14, p. 40-72, julho/dezembro de 2013.
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Cf., a propósito, os argumentos de Gladstone e William Harcourt no debate sobre a cessão de
Heligoland ao Império Germânico, em 1890 (William Reynell Anson, The Crown, II, p. 140). Relatam
autores contemporâneos que de 1924 a esta parte o procedimento do governo britânico tem sido, na
prática, mais cauteloso do que lhe manda o direito. Tem ele procurado enviar ao parlamento, com
antecedência, todos os tratados não consumados pela assinatura - vale dizer, os dependentes de
ratificação -, exprimindo seu consentimento definitivo caso aquele poder não se revele disposto, após
algumas semanas, a colocar a matéria em debate. Isso de certo modo aproxima a atual tendência das
instituições britânicas, no particular, do modelo dos Países Baixos (v. Nguyen Quoc Dinh, Droit
international public, Paris, LGDJ, 1975, p. 153).
O Parlement Belge, embarcação civil de uso do soberano belga, colidiu
em 1879, em águas territoriais inglesas, com um barco privado
pertencente a súdito local, que de pronto ajuizou no Tribunal do
Almirantado um pedido de ressarcimento, envolvendo a apreensão da
nave. Em preliminar, o governo belga sustentou a inviolabilidade
daquela embarcação pública civil, não diversa da que cobria os navios
de guerra, fosse à vista do direito internacional costumeiro, fosse em
razão do tratado bilateral belgo-britânico de 1876, que estendia às
naves do gênero aquele privilégio.
Robert Phillimore, juiz, na época, do Tribunal do Almirantado, negou,
primeiro, que a inviolabilidade geralmente reconhecida pelo direito
internacional comum fosse além dos navios de guerra. Em seguida
recusou qualquer préstimo ao tratado de 1876 para estabelecer a
extensão do privilégio, eis que não podia o governo, sem apoio num ato
do parlamento, pactuar com potência estrangeira de modo a reduzir os
direitos de um súdito local, entre os quais o de obter satisfação
judiciária.
A Corte de Apelação derrubou essa sentença, por entender que o direito
internacional costumeiro garantia ao barco real privilégio não inferior ao
das naus de guerra. Não desautorizou, porém, a assertiva de Phillimore
sobre a inidoneidade do tratado, nos termos em que formulada. O caso
do Parlement Belge é citado até hoje como ilustração das limitações do
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governo britânico no trato internacional.
porque não se concebe que uma pessoa, vivendo no real território, seja turbada em sua
paz doméstica, e mandada à força para o exterior, à base de um compromisso
estritamente governamental. Concebe-se, porém, que tratados da mais transcendente
importância política sejam concluídos pela exclusiva autoridade do governo, desde que
possa este executá-los sem onerar os contribuintes nem molestar, de algum modo, os
cidadãos. À margem da colaboração do parlamento pode o governo britânico, assim,
adquirir território mediante compromisso político; e só não pode ceder território ante a
presunção de que, com esse gesto, estará destituindo da proteção real os súditos ali
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instalados.
V. Paul de Visscher, op.cit., pp. 32-33; D.P. O'Connell, International Law, Londres, Stevens &
Sons, 1970, p. 867; Arnold McNair, The Law of Treaties, Oxford, Clarendon Press, 1961, pp. 83-84.
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§ 3. A Constituição americana de 1787 garantiu ao Presidente dos Estados
Unidos o poder de celebrar tratados, com o consentimento do Senado, expresso pela
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voz de dois terços dos senadores presentes. Bem cedo, porém, uma interpretação
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