Tratados internacionais tributários, emendas constitucionais e leis complementares após a EC 45/2004. o que pode (e deveria) mudar na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

AutorThomas da Rosa de Bustamante
CargoLecturer na University of Aberdeen, Reino Unido Doutor em Direito pela PUC-Rio Mestre em Direito pela UERJ
Páginas1-34

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1. Introdução

A Emenda Constitucional n. 45/2004, dita "reforma do Judiciário", introduziu mudanças significativas no regime jurídico dos denominados tratados internacionais de Direitos Humanos. Sem dúvida, a Emenda acalmou os ânimos de exaltados internacionalistas e "humanistas" de modo geral que pugnavam pelo reconhecimento de um status especial para os tratados de Direitos Humanos no ordenamento jurídico brasileiro. Já não é mais necessário malabarismos hermenêuticos como a falácia de que seria possível inferir do § 2º do art. 5º da Constituição da República, a contrario sensu, uma norma que atribuísse automaticamente a todos os direitos previstos nos tratados de Direitos Humanos força de preceito constitucional. A solução do constituinte reformador, de que será atribuída eficácia de norma constitucional aos tratados de Direitos Humanos que forem aprovados pelo processo legislativo Page 2 correspondente ao das emendas constitucionais, parece resolver definitivamente esse problema.

O legislador constituinte reformador perdeu a oportunidade, no entanto, de solucionar uma grave lacuna na Constituição Brasileira de 1988: o problema da própria extensão do poder de celebrar tratados internacionais no Direito Brasileiro. Ao se buscar na Constituição uma orientação acerca de quais matérias podem ser reguladas por meio de tratados internacionais, o jurista fica sem resposta para perguntas extremamente relevantes no mundo contemporâneo, em que cada vez mais se exige dos Estados nacionais a cooperação internacional e a integração regional em blocos econômicos. Entre essas perguntas estão as seguintes: pode um tratado dispor sobre matéria de lei complementar? Um tratado que não verse exclusivamente sobre "Direitos Humanos" pode, se obedecidas as regras de processo legislativo próprias, ser internalizado com força jurídica de norma constitucional? Possui o Presidente da República autoridade para celebrar tratados acerca de matéria de competência dos Estados e dos Municípios? É válido um tratado internacional que disponha sobre matéria relativa a benefícios fiscais de tributos estaduais e municipais, por exemplo?

As respostas que vinham sendo ensaiadas antes da Emenda Constitucional n. 45/2004, embora pudessem ser tidas como corretas do ponto de vista estritamente jurídico (digo estritamente jurídico no sentido de "conforme ao ordenamento jurídico positivo", pressupondo-se um critério tipicamente positivista de validade jurídica, como o da regra de reconhecimento de Herbert Hart), implicavam sérios inconvenientes no plano da política externa e dificultavam a integração do Brasil tanto na comunidade internacional quanto no Mercosul, haja vista que raramente os tratados internacionais poderiam possuir força jurídica para, independentemente de significativa alteração legislativa posterior (muitas vezes por meio de leis complementares), instituir relações jurídicas no campo do Direito Tributário, entre outros.

Quando o Supremo Tribunal Federal reassentou o seu entendimento de que "os tratados internacionais ingressam em nosso ordenamento jurídico tão somente com força de lei ordinária"1 e portanto "não podem, em conseqüência, versar matéria posta sob reserva constitucional de lei complementar"2, optou pela solução que preservou com mais intensidade o princípio democrático e as condições formais relativas ao processo legislativo que dele decorrem. A construção jurisprudencial parece plausível porque as únicas referências a "tratado internacional" feitas pela Constituição da República, antes da EC 45/2004, estavam Page 3 contidas nos artigos 5º, § 2º, 49, inciso I, e 84, inciso VIII. Ou seja: além do parágrafo 2º do art. , que se limita a declarar a abertura da Constituição da República a princípios implícitos e o caráter não exaustivo ao rol de Direitos individuais nela previstos, as únicas disposições normativas que tratavam da matéria eram as que atribuíam ao Presidente da República o poder de celebrar tratados e ao Congresso o poder de "resolver definitivamente" sobre esses atos normativos. Na ausência de qualquer disposição sobre o alcance da competência legislativa compreendida pelos tratados, e em face do art. 47 da mesma Lei Fundamental (que estabelece como regra geral que as deliberações no Congresso Nacional serão tomadas por maioria simples), se entendeu razoável fazer coincidir o campo de competências do tratado internacional com a esfera da lei ordinária federal. Ainda que essa seja uma solução insatisfatória sob o ponto de vista das relações internacionais e do princípio constitucional previsto no art. 4º, inciso IX, da Constituição, não parece ser incorreta à luz da Constituição.

É preciso que fique claro, contudo, que a mencionada construção do Supremo Tribunal Federal foi sedimentada sob duas premissas, ainda que implícitas: a primeira de que a Constituição continha uma lacuna a respeito do alcance da competência para celebrar tratados internacionais, e a segunda de que a ausência de disposição específica sobre o quorum de deliberação para aprovação de tratados internacionais faria com que esse fosse o mesmo das leis ordinárias. Foi a partir dessas duas premissas que o Tribunal considerou prudente restringir a competência para celebrar tratados à esfera da lei ordinária federal, para evitar que por vias transversas fosse desrespeitado o quorum das leis complementares (na medida em que um tratado poderia ser aprovado por maioria simples, à luz do artigo 47).

Foi sob essas premissas que o Supremo Tribunal Federal, num autêntico ato de criação judicial de norma jurídica, teve de regular a matéria e limitar o treaty-making power. O Supremo Tribunal Federal, diante da lacuna jurídica acerca das matérias que podem ser reguladas por tratados internacionais, concluiu que deveriam ser analogicamente aplicáveis as regras que definem a competência da União para legislar por meio de lei ordinária. Ainda que o discurso oficial não admita expressamente essa analogia, uma análise das disposições constitucionais que regem a matéria revela que foi adotado o seguinte raciocínio: se os tratados internacionais podem ser validamente celebrados com a aprovação do Congresso Nacional por maioria simples, então a matéria sobre a qual eles podem versar é a matéria de lei ordinária federal, haja vista que esse tipo de fonte do Direito pode ser aprovado com esse mesmo quorum. O elemento formal comum entre leis ordinárias e tratados internacionais (quorum necessário para aprovação) foi decisivo para se determinar que ambas as espécimes Page 4 normativas pudessem dispor sobre as mesmas questões. Podemos, de modo simplificado, descrever essa construção judicial da seguinte forma:

1) As leis ordinárias são aprovadas por maioria simples e podem dispor sobre as matérias x, y e z;

2) Os tratados internacionais são aprovados por maioria simples

3) Os tratados internacionais podem dispor sobre as matérias x, y, z.

No esquema acima, apenas as asserções "1" e "2" estão textualmente previstas na Constituição Federal. A asserção "3", por sua vez, não passa de uma construção jurídica do Supremo Tribunal Federal para colmatar a lacuna contida na Constituição acerca das matérias que podem ser disciplinadas por meio de tratado internacional. Trata-se de uma construção porque simplesmente não pode ser deduzida de "1" e "2".

A melhor forma de colmatar lacunas é através da analogia, pois entre os métodos de integração do Direito em tese admissíveis é o que pode encontrar mais pontos de apoio no ordenamento jurídico positivo e, portanto, aquele em que se verifica uma decisão do legislador mais próxima possível do caso em questão. Para determinar a força do argumento por analogia, porém, é necessário pelo menos os seguintes passos metodológicos:

  1. constatar, e justificar com argumentos, a presença de uma lacuna no texto da legislação positiva;

  2. encontrar um caso regulado pelo Direito positivo que apresente características semelhantes em aspectos relevantes ao caso que pode ser considerado "lacunoso";

  3. isolar a ratio legis da regra jurídica tomada como paradigma;

A etapa "c", por seu turno, só pode ser bem realizada se o intérprete tiver uma capacidade de abstração suficientemente desenvolvida para revelar quais são os princípios jurídicos que se encontram por detrás da regra-paradigma e quais as relações de preferência condicionada entre princípios que foram estabelecidas pelo legislador ao promulgar a regra em questão.

Ora, é sabido que toda vez em que ponderamos princípios em rota de colisão, para o fim de determinarmos as relações de prioridade condicionada entre esses princípios, chegamos a uma regra que tem como hipótese de incidência os fatos em face dos quais a ponderação foi realizada e como conseqüência normativa a conduta que é exigida pelo Page 5 princípio jurídico que tenha apresentado um maior peso no caso concreto. Essa descrição alexyana das ponderações de princípios pode ser compreendida através de um exemplo elementar. Se, num caso concreto, entram em colisão o princípio da livre iniciativa (P1) e o princípio da proteção aos consumidores de serviços essenciais (como por exemplo o serviço de educação) (P2), o legislador tem de estabelecer qual desses princípios deve ter prioridade. Deve, por exemplo, estabelecer que diante de práticas abusivas de determinadas instituições de ensino (C), P2 deve prevalecer sobre P1, ficando a União autorizada a regular a forma como o preço das mensalidades escolares...

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