Traduzir a língua do medo para superar a cultura de estupro

AutorLeonísia Moura Fernandes
CargoBacharela em Direito pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR)
Páginas339-357
Periódico do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Direito
Centro de Ciências Jurídicas - Universidade Federal da Paraíba
Nº 01 - Ano 2015
ISSN | 2179-7137 | http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ged/index
339
DOI: 10.18351/2179-7137/ged.2015n1p339-357
Seção: Gênero, Sexualidade e Feminismo
TRADUZIR A LÍNGUA DO MEDO PARA SUPERAR A CULTURA DE
ESTUPRO
Leonísia Moura Fernandes
1
Resumo: O sistema patriarcal binário
vigente em todas as formas de organização
social conhecidas é responsável por excluir
as mulheres do protagonismo político e da
sociedade civil. Embora as lutas
promovidas pelos feminismos e pelos
movimentos de mulheres tenham
conquistado significativos direitos, a
submissão e exploração das mulheres ainda
se conservam, sendo a violência sexual uma
de suas consequências mais desastrosas. Da
análise de dados de órgãos de pesquisa e de
segurança pública, além da revisão de
bibliografia que trata da construção social
do gênero e da opressão feminina, este
artigo científico demonstra como esse tipo
de violência é eivado de tolerância e mesmo
de incentivo social, o que acarreta na
responsabilização da vítima pela agressão
sofrida, caracterizando a cultura de estupro.
Tendo em vista a naturalização e
enraizamento social e institucional dessas
práticas, utiliza-se a Literatura como
mecanismo de expor a condição feminina
em tal ordem e como é formulada e
dissimulada a cultura de estupro nesse
diapasão. Para tanto, é analisado o conto A
Língua do P da escritora Clarice Lispector,
publicado em 1974. O conto fornece
múltiplos elementos que facilitam a
percepção da complexidade em que se
insere a sexualidade feminina e o constante
medo da violência sexual na sociedade
patriarcalmente organizada, posto que a
cultura de estupro não se materializa apenas
como violência no corpo, mas também nas
instituições que deveriam puni-la e coibi-la
e, no entanto, são com ela coniventes,
1
Bacharela em Direito pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa
em Direitos Culturais (GEPDC/UNIFOR). Advogada membro da Rede Nacional de Advogadas e Advogados
Populares (RENAP). Militante do Fórum Cearense de Mulheres.
maximizando-a e prolongando-a. Assim,
traduzir a língua do medo da existência
feminina para a Ciência e para o Estado é
indispensável para a superação da cultura de
estupro e para a promoção da igualdade de
gênero.
Palavras-chave: Cultura de estupro.
Igualdade de gênero. Feminismos.
Literatura.
Abstract: The current binary patriarchal
system in all known forms of social
organization is responsible for excluding
women from the political leadership and
civil society. Although the struggles
promoted by feminism and the women's
movements have achieved significant
rights, submission and exploitation of
women still remain active, and sexual
violence is one of its most disastrous
consequences. By analyzing data research
and public security organs, in addition to the
literature review that focus on the social
construction of gender and women's
oppression, this scientific paper
demonstrates how such violence is riddled
with tolerance and even social
encouragement, which leads to making the
victim responsible for the aggression,
characterizing the rape culture. Given the
naturalization and social and institutional
embeddedness of these practices, Literature
is used as a mechanism to explain the status
of women in such order as it is formulated
and disguised the rape culture in the tuning
fork. To do so, it is analyzed the tale The P
language by the writer Clarice Lispector,
Periódico do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Direito
Centro de Ciências Jurídicas - Universidade Federal da Paraíba
Nº 01 - Ano 2015
ISSN | 2179-7137 | http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ged/index
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DOI: 10.18351/2179-7137/ged.2015n1p339-357
published in 1974. The story provides
multiple elements that facilitate the
perception of the complexity in which
operates female sexuality and the constant
fear of sexual violence in the society
patriarchally organized, since the rape
culture does not materialize just as violence
at the body, but also in the institutions that
should punish and restrain it, and yet, are
colluding with it, maximizing and
prolonging it. Thus, translating the
language of fear of female existence for
Science and the State is indispensable to
overcome the rape culture and to promote
gender equality.
Keywords: Rape culture. Gender equality.
Feminisms. Literature.
INTRODUÇÃO
O sistema patriarcal binário – como
expressão específica das relações de
gêneros – revela-se como uma das formas
mais antigas e socialmente enraizadas de
organizar a vida. Caracteriza-se pela
tentativa de definir a submissão feminina
como natural, além de cientifica e
moralmente legitimada. Nesse diapasão,
institui divisão entre esfera privada e
pública, estabelecendo papéis e espaços
diferenciados para os gêneros que
reconhece, quais sejam o masculino e o
feminino, resguardando a opressão e
exploração daquele sobre esse.
As lutas promovidas pelos
movimentos de mulheres e pelas feministas
ao longo das décadas geraram impactos
nessas estruturas patriarcais, incluindo
transformações espaçadas na legislação
internacional e nacional. No Brasil, é
apenas no final da década de 1980 que a
Constituição Federal reconhece a igualdade
entre homens e mulheres. Todavia, tal
equiparação não se configura
completamente no plano material. Dentre as
muitas consequências da opressão das
mulheres, destaca-se a naturalização e
massificação da violência sexual como uma
das mais alarmantes.
Estatísticas do anuário do Fórum
Brasileiro de Segurança Pública (2013)
demonstram que o número estimado de
mulheres que sofrem estupro, ou tentativas
de estupro, gira em torno de 527 mil a cada
ano, tendo o anuário subsequente admitido
que, somando-se os casos não notificados,
esse número dobra (FBSP, 2014). Já estudo
do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA, 2014) estima que as
vítimas de estupro sejam 88,5% mulheres, e
os agressores, independentemente da faixa
etária e gênero da vítima, sejam homens em
mais de 90% dos casos. Razões pelas quais
esse crime deve ser entendido como
violência de gênero.
Tais dados revelam ainda a existência
de uma cultura de estupro, na qual as
mulheres convivem com o medo da
“fatalidade de serem violentadas
sexualmente, caso transgridam
determinadas condutas atribuídas à
feminilidade desejada pelo sistema
patriarcal. Essa compreensão irradia-se para

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