Proteção do Trabalho da Prostituta: Modelo Laboral e Princípio da Justiça Social

AutorJorge Luiz Souto Maior
Ocupação do AutorJuiz do Trabalho, titular da 3ªVara do Trabalho de Jundiaí
Páginas145-163

Page 145

1. Introdução

O presente artigo tem por escopo estabelecer os paradigmas de sustentação teórica dos modelos de proibição, higienista e abolicionista, quanto ao trato legal da questão da prostituição, para em seguida tecer críticas a cada um destes sistemas, enfatizando a necessidade de adoção de um sistema laboral, que reconheça a atividade da prostituta como trabalho, a fim de lhe assegurar todos os direitos trabalhistas e o efetivo gozo dos direitos fundamentais.

Inicialmente, são fincadas as premissas teóricas do modelo de proibição, de regulamentação e abolicionista, estabelecendo-se também as suas consequências práticas na vida de cada uma das pessoas que prestam serviços sexuais e na adoção de políticas públicas. Sustenta-se a implementação do modelo laboral, que impõe a aplicação de uma racionalidade emancipatória nas relações laborais, além das relações sociais como um todo. Em seguida, é defendida a liceidade da prostituição e a possibilidade de seu reconhecimento como relação de emprego ou relação de trabalho autônomo. Por derradeiro, o texto discorre sobre os fundamentos constitucionais de proteção do trabalho da prostituta, além de estabelecer a premissa de que, além da ponderação de valores, deve calcar esta tese o princípio da justiça social, que fornecerá um vetor axiológico para a superação da lógica capitalista de coisificação do homem.

Page 146

2. Os modelos jurídicos sobre a prostituição

A prostituição é um fenômeno universal, cuja existência se verifica em países ocidentais e orientais, submetidos os mais diversos regimes econômicos e que ao longo da história tem recebido diferentes tratamentos normativos. Conquanto a simplificação não seja imune a riscos e imprecisões, é possível distinguir, basicamente, quatro sistemas legais sobre a prostituição: o sistema de proibição, o sistema de regulamentação da atividade, o sistema abolicionista e o sistema laboral1.

Na prática, esta classificação não é tão rígida, pois comporta inúmeras e significativas variações entre os diversos regimes jurídicos vigentes. Todos estes sistemas, por seu turno, com exceção do sistema laboral, comungam entre si da mesma condenação moral da atividade da prostituição e foram elaborados no escopo de erradicar ou controlar a indústria do sexo.

A primeira perspectiva se apoia na premissa de que a prostituição é um problema social a ser erradicado, devendo ser adotadas todas as medidas legais, inclusive penais, para sua extirpação da realidade social. A maioria dos países preocupa-se com a criminalização da própria atividade, porém poucos são aqueles que tipificam a conduta do cliente que se utiliza dos serviços da prostituta, com exceção da Suécia2. A prostituição, destarte, é em si mesma uma violação de direitos, incompatível com o princípio da dignidade da pessoa humana. Este é o regime mais repressivo, dentre todos os que se verificam nos países ocidentais, embora os estudos indiquem que não é alcançada a sua finalidade social, nem mesmo remotamente. Assim, todas as atividades relacionadas com as prostituição são proibidas, apenando-se igualmente as partes envolvidas, inclusive a prostituta, que é considerada um ser primitivo e movido por forças atávicas que a impulsionam inexoravelmente para os impulsos delinquentes. Há, portanto, um forte embasamento teórico na criminologia positivista.

Na atualidade, são poucos os países que declaram seguir este modelo; na maioria dos casos, o Estado formalmente se declara abolicionista, embora empregue técnicas de criminalização da prostituição e do seu entorno, cominando multas pesadas pela sua prática ou determinando a prisão de quem oferece tais serviços. Na França, desde 2003, a prostituição de rua é sancionada com multa de aproximadamente quatro mil euros, além de pena de até dois meses de prisão. Na Grã-Bretanha, conquanto o comércio de serviços sexuais não seja em si mesmo um delito, muitas das atividades relacionadas o são, como por exemplo abordar os clientes, oferecer e negociar serviços sexuais, além de manter um prostíbulo, de sorte que a atividade das prostitutas inglesas somente pode ser exercida individualmente em seu próprio domicílio3.

Como já asseverado, embora a finalidade almejada por este tipo de sistema seja a de eliminar a prostituição, não existem evidências de que tenha alcançado o seu escopo e, ao revés, engendra uma situação perversa de dependência da prostituta em relação a terceiras pessoas, em especial os proprietários de bordéis ou intermediários, já que não encontram nenhuma proteção legal. Em diversas oportunidades, precipuamente nos países menos desenvolvidos, observa-se ao contrário

Page 147

que o sistema termina por ser extremamente lucrativo para a polícia e para alguns funcionários públicos que aceitam vantagens pecuniárias, ou serviços sexuais gratuitos, em troca da não fiscalização da legislação repressiva.

A partir da segunda metade do século XIX, a necessidade de controle de doenças venéreas, da desordem social e da indecência originaram uma regulamentação da prostituição, considerada como um mal necessário que o Estado deveria reconhecer e regular para o bem de toda a sociedade, da moral e dos bons costumes. As mulheres, então, não mais estavam à mercê da polícia, vez que a sua conduta tornara-se um indiferente penal, porém estavam agora submetidas às autoridades administrativas da vigilância sanitária. A atividade, portanto, tornou-se tolerada e regulada, mas não legalizada, vez que restrita a algumas zonas de meretrício. Pelo sistema de regulamentação da atividade, portanto, a prostituição é algo moralmente reprovável, porém impossível de erradicar da sociedade. Trata-se, pois, de um “mal necessário” ou, por vezes, inevitável. Ao mesmo tempo em que se reconhece a sua existência — porém em espaços restritos, para não colocar em risco a sociedade burguesa — são estabelecidas regras para a atividade, a fim de que não traga uma ameaça à saúde, à higiene ou à ordem pública. Apenas a título ilustrativo, em muitos países europeus foi determinado que as prostitutas deveriam ter uma identificação própria, além de poderem oferecer os serviços sexuais em determinados lugares (prostíbulos) ou bairros mais afastados da cidade. Também foram prescritos controles médicos que velavam pela saúde pública — isto é, pela saúde dos clientes e de suas esposas, não pela saúde das próprias mulheres que se prostituíam. Com a regulamentação, criou-se a categoria de prostituta e foi imposta uma relação de docilidade-utilidade sobre o corpo feminino, que servia de lastro, e porque não dizer sustentáculo, para o puritanismo burguês. A inscrição nos registros, pois, convertia a mulher em “puta”, ou mulher “pública”, em contraposição à mãe de família, confinada ao âmbito privado e submetida aos cuidados domésticos.

A regulamentação, por seu turno, atendia também às necessidades masculinas, à proteção das mulheres decentes e ao pagamento de impostos, evitando assim um prejuízo público e assegurando a invisibilidade social das prostitutas. Não eram destinatárias, portanto, de direitos trabalhistas, e tampouco o Estado assumia responsabilidades em relação a suas condições laborais. Mesmo hodiernamente, muitos países, tais como França, Alemanha, Bélgica e Áustria, fazem incidir impostos sobre as atividades sexuais, conquanto se proíba formalmente o lucro obtido por estas atividades. A finalidade do modelo de regulamentação, por conseguinte, não é a de defender os interesses das prostitutas, nem tampouco protegê-las da violência ou de possíveis abusos, mas proteger a sociedade deste denominado “mal necessário”.

O sistema vigente no Brasil e na maioria dos países ocidentais, entrementes, é o modelo abolicionista, que se alicerça na proibição da exploração da prostituição alheia. Segundo esta perspectiva, as prostitutas são vítimas de um sistema econômico e social que as impele para a marginalidade, e não podem ser encaradas como delinquentes ou como pessoas com desvio moral congênito.

O movimento abolicionista tem sua origem na Inglaterra, no final do século XIX e com grande projeção em todo o século XX, quando um grupo de mulheres inglesas de classe média se lança em uma cruzada moral internacional contra a regulamentação da prostituição. O vocábulo “abolicionista” está intimamente relacionado à abolição da escravatura do século XIX, pois pretendiam erradicar a escravidão sexual e o denominado “tráfico de brancas”. As prostitutas, destarte, são vistas igualmente como escravas que necessitam ser libertadas, para que tomem consciência da opressão que sofrem. A abolição destas mulheres contra este mal seria realizada precisamente pela punição das denominadas “terceiras pessoas”, ou seja, todas aquelas pessoas que recrutam, organizam e obtêm benefícios da prostituição; a mulher que oferece os serviços, por seu turno, não deve ser sancionada, porque é uma vítima da sociedade. A prostituição é uma

Page 148

violência contra a mulher e contra os direitos humanos; desta sorte, pouco importa se a sua inserção neste mercado foi voluntária ou mediante coerção, na medida em que se concebe a prostituição como algo forçado por definição.

Esta perspectiva ficou claramente refletida na “Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e contra a Exploração da Prostituição Alheia”, firmada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque, em 2 de dezembro de 1949. Como estabelecido em seu preâmbulo, a prostituição se considera “incompatível com a dignidade e o valor da pessoa, e põe em perigo o bem-estar dos indivíduos, da família e da comunidade”, ou, na...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT