Trabalho Penoso: Prevenção e o Pagamento do Adicional Constitucional

AutorRaimundo Simão de Melo
Páginas187-207

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1. Introdução

Pretendo com este breve ensaio fazer algumas reflexões sobre o trabalho penoso no Brasil, diante do que dispõe a Constituição Federal de 1988 e as leis infraconstitucionais pertinentes ao tema. Abordarei o trabalho como castigo, como satisfação, como meio de se ganhar a vida e, finalmente, como tarefa desgastante para o ser humano nos tempos modernos, as suas consequências nefastas para o obreiro, a legitimidade para buscar a sua prevenção e reparação e as responsabilidades do empregador ou tomador de serviços diante do ordenamento jurídico brasileiro, especialmente das responsabilidades civis e trabalhistas, incluindo a tormentosa questão do adicional de remuneração pelo trabalho nas atividades penosas em razão da falta de regulamentação do disposto no inciso XXIII do art. 7º da Constituição Federal.

Farei algumas conclusões ao final sobre o que vem sendo feito e o que deve ser feito para proteger o trabalhador que exerce atividades penosas.

2. Trabalho e dignidade humana na lei brasileira

Etimologicamente a palavra "trabalho" tem origem latina no termo tripalium, que era um instrumento com três estacas, utilizado para martirizar e torturar pessoas. Nos tempos primitivos

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o trabalho era considerado como castigo, mas com o passar dos tempos ganhou o significado de algo dignificante para o ser humano, para que o homem pudesse viver do ganho com a venda das suas forças físicas e mentais para um tomador de serviços.

Com efeito, nos dias atuais o trabalho é considerado como um meio de vida, um meio de se ganhar dinheiro para uma vida digna, mas também como uma satisfação de ser o homem útil numa sociedade politicamente organizada. É como consta das leis da maioria dos países do mundo, inclusive as brasileiras, especialmente a Constituição Federal de 1988, que no art. 1° estabelece como fundamentos da República Federativa do Brasil, entre outros, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho. O art. 170 dessa Norma Maior, que trata da ordem econômica, diz que essa está fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados, entre outros, os princípios da defesa do meio ambiente e da busca do pleno emprego, o que é complementado pelo art. 196, que assegura que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Com ênfase estabelece a Constituição Federal brasileira no art. 7º e inciso XXII, que "São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

... redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança".

O reconhecimento da dignidade da pessoa humana está na satisfação do bem-estar físico, intelectual, moral e psicológico do trabalhador, assegurando-lhe um ambiente saudável para cumprir as suas obrigações contratuais e funções e, consequentemente, obter recursos financeiros para satisfazer suas necessidades básicas, com a finalidade de obtenção de uma melhor qualidade de vida. A dignidade humana, pois, é o maior e principal fundamento para a proteção contra o trabalho penoso, desgastante e prejudicial à saúde dos trabalhadores.

Cabe lembrar que o termo saúde utilizado na lei é genérico e quer dizer corpo, alma e mente, pois o objetivo maior é revelar que seu âmbito de aplicação e proteção atinge não somente a higidez física, mas também pode alcançar a capacidade intelectual e psíquica da pessoa humana, o que pode variar de pessoa para pessoa1.

Nos tempos modernos, como se observa, o trabalho não pode mais ser considerado como um castigo, nem como uma forma de desgastar e causar danos ao ser humano trabalhador, pois a sua mais importante finalidade está em se considerá-lo como um meio digno de se ganhar a vida, uma vida com qualidade (CF, art. 225).

Como bem assevera Christiani Marques2, "É inquestionável, portanto, que o trabalho é elemento essencial à vida. Logo, se a vida é o bem jurídico mais importante do ser humano e o trabalho é vital à pessoa humana, deve-se respeitar a integridade do trabalhador em seu cotidiano, pois atos adversos vão, por consequência, atingir a dignidade da pessoa humana".

Ao contratar um empregado cabe ao tomador de serviços assegurar-lhe um trabalho em condições dignas, seguras e adequadas, em que a sua saúde e integridade física e psicológica sejam preservadas. Assim, cabe ao tomador de serviços adotar todas as medidas possíveis para evitar danos e desgastes ao trabalhador, inclusive no tocante ao trabalho penoso, que não obstante os danos à saúde humana, não é proibido como regra em nosso país. É certo, contudo, que o tratamento desumano e degradante é proibido pela Constituição do Brasil (art. 5º, inc. III), que diz que "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante".

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3. Conceito de trabalho penoso

Não temos ainda no Brasil uma lei geral que regulamente as atividades penosas, conceituando claramente o trabalho penoso e estabelecendo qual o adicional a ser pago pelo empregador. É na doutrina, firmada especialmente por médicos e psicólogos que encontramos subsídios a respeito do tema.

Assim, diz-se que trabalho penoso é o trabalho desgastante para a pessoa humana. É o tipo de trabalho que, por si ou pelas condições em que exercido, expõe o trabalhador a um esforço além do normal para as demais atividades e provoca desgaste acentuado no organismo humano. É o trabalho que, pela natureza das funções ou em razão de fatores ambientais, provoca uma sobrecarga física e/ou psíquica para o trabalhador.

4. Exemplos de trabalho penoso

O trabalho penoso é peculiar a determinadas atividades no setor rural, mas também é encontrado no setor urbano.

Na área rural pode-se exemplificar com o trabalho dos cortadores de cana que, em jornadas normalmente superiores a oito horas por dia, expostos a altas temperaturas e a um sol escaldante, ativam-se em contato direto com o pêlo da cana, quando crua, ou com a fuligem, quando queimada, além do contato direto com muitos tipos de agentes físicos, químicos e biológicos e com animais peçonhentos.

Parece mesmo que não se pode negar, de sã consciência, que o trabalho dos cortadores de cana é um trabalho penoso, árduo, pesado e degradante. É um trabalho que, além de expor o ser humano a toda sorte de intempéries, como a maioria dos trabalhos rurais (a temperatura pode atingir mais de 40ºC, dependendo da região), os coloca em contato com risco de acidentes com animais peçonhentos, intoxicações por agrotóxicos, doenças osteomusculares pelos repetitivos e exaustivos movimentos diários, entre outros, submetendo-os a ritmos acelerados de trabalho, uma vez que o ganho, geralmente, é por produção, o que os obriga a trabalharem mais e mais para obterem um ganho mensal melhor.

Durante a exaustiva jornada laboral, o trabalhador repete os mesmos gestos, que são, entre outros, abraçar o feixe de cana, curvar-se, golpear com o podão a base dos colmos, levantar o feixe, girar e empilhar a cana em montes.

Conforme Francisco Alves (Professor e pesquisador do Departamento de Engenharia de Produção da Universidade Federal de São Carlos - UFSCAR), que há mais de 20 anos pesquisa a produção no setor canavieiro, o excesso de trabalho dos cortadores de cana pode ser demonstrado pela rotina do dia a dia. Para uma produção diária de seis toneladas de cana, eles têm de cortar a cana rente ao solo para desprender as raízes; cortar a parte onde estão as folhas verdes, que por não ter açúcar não servem para as usinas; carregar a cana cortada para a rua central e arrumá-la em montes. Segundo esse pesquisador, tudo isso é feito rápido e repetidamente, a céu aberto, sob o sol e calor, na presença de fuligem, poeira e fumaça, por um período que varia entre 8 e 12 horas. Para isso, eles chegam a caminhar, ao longo do dia, uma distância de aproximadamente 4.400 metros, carregando nos braços feixes de 15 quilos por vez, além de despender cerca de 20 golpes de facão para cortar um feixe de cana. Isso equivale a aproximadamente 67 mil golpes por dia. Isso tudo se a cana for de primeiro corte, ereta, e não caída, enrolada. Do segundo corte em diante, há mais esforço.

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Agora, imagine-se aqueles que cortam doze ou mais toneladas por dia, o que não é raro acontecer, pois esses trabalhadores vêm de longínquas regiões do país, premidos pela miséria nas suas origens, dispostos a trabalhar, trabalhar e trabalhar para obter um ganho melhor, inclusive para sobreviver com a família na entressafra.

É normal, ainda, a exposição diária dos cortadores de cana a agentes físicos, químicos e biológicos, o que se traduz em doenças, traumas e acidentes de trabalho a eles relacionados. São exemplos comuns as dermatites, conjuntivites, desidratação, câimbras, dispneias, infecções respiratórias, alterações da pressão arterial, ferimentos etc. As cargas biopsíquicas configuram padrões de desgastes manifestos por meio de dores na coluna vertebral, dores torácicas, lombares, de cabeça, tensões nervosas e outros tipos de manifestações psicossomáticas, que, no conjunto, em algumas situações, levam à morte prematura do trabalhador. Como negar que esse trabalho é penoso e, aos trabalhadores, o direito a uma reparação pelo trabalho desgastante, além, antes disso, de melhorias nas...

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