O trabalho e o Direito do Trabalho: entre teoria e prática

AutorValdete Souto Severo
Ocupação do AutorJuíza do Trabalho, Mestre em Direitos Fundamentais pela PUC/RS, professora e vice-diretora na FEMARGS/RS
Páginas11-26

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Introdução

A teoria não se justifica sem a prática. No mais das vezes, ela é reflexo das condições sociais vivenciadas por aqueles que se dedicam a pensar sobre determinado tema. Outras tantas vezes, a teoria se reveste de caráter transformador. Não faz diagnósticos, mas propõe mudanças.

O Direito do Trabalho surge diante de uma realidade social que inquieta, mas não se limita a descrever o que vê. Propõe a imposição de limites ao sistema capitalista de produção, mediante adoção de um critério pelo qual o homem-que-trabalha deve ser concebido como destinatário das normas jurídicas, verdadeiro sujeito de direitos. O que hoje parece ‘lugar comum’, é resultado de uma dolorosa e lenta evolução social. Sua fragilidade é bem revelada pelas investidas neoliberais travestidas num discurso de flexibilização.

Temos, portanto, muito a construir e a resgatar em termos de teoria do Direito do Trabalho, a partir dessa visão transformadora e prática, que o discurso deve assumir. E esse compromisso revela-se fundamental diante de uma sociedade que teima em voltar atrás nas conquistas sociais, justamente no momento em que consegue perceber a importância do trabalho na construção do sujeito.

Como já afirmava Freud, o indivíduo constrói sua personalidade a partir de dois pilares. Um deles é o erótico, em que construímos nossas relações de afeto e nossa personalidade (masculina ou feminina). Essa é a dimensão cujo estudo ocupou o pensamento psicanalítico. Ao lado desse campo de atuação, porém, há, também, o campo social, em que a centralidade encontra-se no trabalho. O âmbito social é tão importante quanto o erótico, para a construção da identidade psíquica e emocional do indivíduo. Daí já se depreende a importância social do trabalho e sua centralidade, ainda hoje, no contexto social, político, jurídico e econômico.

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É desde esse lugar de fala que devemos pensar, retrospectivamente, a construção do Direito do Trabalho, para compreender o modo como ele hoje se consolida, ou seja, o conteúdo do princípio da proteção e sua importância. E, com isso, obtermos as bases teóricas para um discurso comprometido e autônomo, que reconheça e reafirme a razão transformadora da teoria trabalhista. Para isso, faremos breve incursão nas teorias que estão na base do Direito do Trabalho, com especial destaque para a obra de Marx.

Há uma imbricação direta entre a filosofia e o Direito do Trabalho, ou o modo como o regulamos em nossa sociedade. Essa imbricação será examinada a partir da obra de Hannah Arendt e Adolfo Vázquez, ambos dedicados a estudar, entre outras coisas, a teoria marxista. Esses autores têm o mérito de perceber a existência de um fio condutor que parece transparente aos olhos contemporâneos, mas cujo significado é imprescindível para a compreensão do Direito do Trabalho e, especialmente, do princípio/dever de proteção e de sua função na atualidade.

1. Compreendendo o direito do trabalho: uma pequena incursão na teoria e na evolução da prática produtiva

Na sociedade grega o trabalho é importante em razão do produto que dele resulta e em função da utilidade desse produto. Não há valor de troca, mas valor de uso. Assim, “o valor do produto como mercadoria não é senão o valor de uso para outro”1. Bem por isso, para Platão e Aristóteles, o homem só se realiza verdadeiramente na vida teórica. O trabalho humano é mera rotina ou atividade servil, de menor importância2. Desse modo, a atividade teórica e a prática produtiva eram vistas como coisas absolutamente separadas. Essa separação tem direta ligação com a (im)possibilidade de se desenvolver, à época, um conceito de dever ou princípio de proteção atrelado à relação entre capital e trabalho. O trabalho físico concebido como tarefa de escravos é destituído tanto do seu “valor de troca”, quanto do valor em si, enquanto atividade que contribui decisivamente na construção da personalidade do sujeito3. O objeto produzido é concebido, nesse contexto,

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como definitivamente separado do sujeito que o produz, e “tanto um como o outro permanecem em sua relação de exterioridade”4.

Hannah Arendt refere que a desconfiança dos gregos em relação ao trabalho físico é compreensível dentro do contexto em que viviam, no qual “laborar significava ser escravizado pela necessidade”5, já que os responsáveis pelo trabalho eram os escravos e os servos. E, de acordo com a filósofa, ao contrário do que ocorreu nos “tempos modernos”, escravizar na antiguidade não era uma forma de obter mão de obra barata, mas sim “a tentativa de excluir o labor das condições da vida humana”6, já que tudo que identificava o homem com os outros animais era considerado inumano.

Só posteriormente, e de forma expressiva na doutrina de Marx, essa relação entre o homem e os demais animais é invertida, e o trabalho passa a ser justamente o que constitui o homem e o diferencia dos animais7. O trabalho adquire a dimensão de forma de constituição do sujeito, porque passa efetivamente a figurar na centralidade das relações sociais, tornando-se, ao mesmo tempo, fonte de subsistência física e condição de possibilidade de realização social. A ideia, aqui, é tentar compreender os fatos que levam a essa centralidade.

A transformação do papel que o trabalho humano assume na conformação social é nítida. Em Hegel, citado por Vázquez, o trabalho é “satisfação imediata de uma necessidade”, de forma que “trabalhando para si, para satisfazer uma necessidade determinada, o homem troca a satisfação de sua necessidade pela satisfação das necessidades dos outros”8. Hegel ainda justifica a condição dos escravos, revelando a plena compatibilidade, à época, entre iluminismo, sociedade capitalista e escravidão9.

Tudo isso ocorre em meio a significativas transformações sociais, marcadas por movimentos de ruptura que interferem nos mais diversos âmbitos da organização social, como foi o caso da Revolução Francesa em 178910. Também as revoluções

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industriais têm grande significado em nossa compreensão atual do papel do trabalho humano para o homem e para a comunidade em que ele está inserido11.

As fábricas do início do período de industrialização tinham condições precárias, ambientes com péssima iluminação, abafados e sujos. Os salários eram muito baixos. Os empregados trabalhavam até dezoito horas por dia e estavam sujeitos a castigos físicos dos patrões. Trabalhavam homens, mulheres e crianças. Diante desse quadro, em muitas regiões da Europa, os trabalhadores se organizaram para lutar por melhores condições de trabalho12. Essa é a realidade em que habita a obra de Marx, para quem a filosofia passa a ter a função de transformar a situação prática, e não apenas justificá-la.

Em sua crítica à filosofia de Hegel, Marx refere que “na teoria, deve-se buscar o fundamento para uma prática transformadora”13. Para Marx, portanto, “a tarefa imediata da filosofia, que está a serviço da história, é desmascarar a autoalienação humana nas suas formas não sagradas, agora que ela foi desmascarada na sua forma sagrada”14. Esse posicionamento diz diretamente com o fato de que Marx está imerso em uma realidade social diversa, que começa a revelar suas injustiças. Já no início do século XIX, vários estudos acerca da chamada “questão social” demonstram, ainda que de forma meramente descritiva, as terríveis condições de trabalho de parte significativa da população15, que são consequências do panorama social antes referido.

A filosofia de Marx inscreve-se nesse cenário, propondo-se transformadora, portanto “nem mera teoria, nem mera práxis, unidade indissolúvel das duas16. Com

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isso, aproxima-se da filosofia da linguagem, pois afirma que cabe à filosofia “não só interpretar, mas transformar” ou, melhor dizendo, “transformar com base em uma interpretação”17. O salto representado pela filosofia da linguagem é maior e determina uma compreensão de que pensar é uma atividade espiritual assim como o falar é uma atividade corporal. Logo, para que alguém “signifique algo” para outrem, de modo a estabelecer uma comunicação, é preciso que o interlocutor compreenda o que é significado. Essa concepção18, embora ainda ausente nas obras de Marx, é resultado de um gérmen que ele ajudou a fertilizar. Marx não chega tão longe em suas investigações filosóficas, mas, comprometido que estava pelo contexto social iluminista, de uma sociedade que se industrializava, dá um importante passo para a compreensão da filosofia como algo prático, com função transformadora.

O conceito de alienação, que o autor desenvolve, é fundamental para a compreensão da dimensão social que o trabalho assume num contexto capitalista de produção e dele trataremos no próximo tópico.

1.1. A Contribuição Decisiva de Marx: o conceito de alienação no âmbito de uma teoria como prática transformadora

A concepção da filosofia como prática transformadora é reflexo e condição, ao mesmo tempo, da configuração social daquele período histórico. E determina uma nova visão do trabalho humano, a partir de sua inserção em um sistema capitalista de produção, que divide a sociedade entre donos do capital e trabalhadores.

Em 1844, Marx examina a situação do trabalhador como sujeito da práxis produtiva, e conclui que “o trabalho é a negação do humano”, justamente porque enxerga a espoliação, as condições indignas de vida dos trabalhadores remunerados. Inicia, então, a desenvolver seu conceito de alienação, referindo que a atividade produtiva, “por um lado, cria um mundo de objetos humanos ou humanizados” e por outro “produz um mundo...

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