Responsabilidade do estado brasileiro pelos direitos trabalhistas dos empregados das empresas contratadas

AutorEduardo Maia Tenório da Cunha
CargoProcurador do Trabalho, Mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória e Doutorando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra-Portugal
Páginas36-71

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Introdução

A terceirização de serviços é hodiernamente uma prática recorrente em boa parte do mundo. A ausência de um regramento específico sobre o tema por parte da Organização Internacional do Trabalho propicia aos Estados nacionais regularem a matéria de acordo com os valores culturais que os informam, resultando uma diversidade normativa expressiva ou até a ausência de qualquer regulação.

A disseminação do processo de terceirização foi tão grande que os entes estatais passaram a utilizá-la também. O objeto da presente investigação diz respeito à responsabilidade do Estado acerca das obrigações trabalhistas dos empregados das empresas por si contratadas. O tema se justifica pela importância econômica e pela magnitude dos problemas jurídicos gerados, principalmente em países em desenvolvimento, como o Brasil.

A abordagem do tema passará por questões antropológicas, sociológicas, históricas, econômicas e filosóficas dos modelos de organização social e dos modos de produção humana, de forma a procurar traços comuns axiológicos entre o Estado e o trabalho, que orientem uma adequada regulação jurídica.

O “valor trabalho”1 servirá como elemento referencial para análise da terceirização pelo Estado brasileiro, designadamente suas consequências para os trabalhadores e para o erário. A observação multidisciplinar do tema não afastará a apreciação dogmática acerca do instituto jurídico da responsabilidade.

Analisar-se-á criticamente o posicionamento do Supremo Tribunal Federal brasileiro na Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 16/2007, que trata do tema em estudo, com o fim de verificar-se a adequação dos fundamentos da decisão ao valor trabalho e aos fins do Estado.

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Por fim, elaborar-se-á um esboço de modelo de responsabilidade estatal adequado à realidade brasileira, de acordo com o conceito de good governance.

1. O status do trabalho e dos seus créditos no ordenamento jurídico internacional e brasileiro

As organizações sociais e o trabalho assumiram diferentes papéis ao longo da história da humanidade. Embora chegue a ser intuitivo nos dias de hoje que cabe ao Estado tutelar, direta2 ou indiretamente3, direitos dos trabalhadores, dada a importância do trabalho para o sistema mundial político e econômico, não se pode deixar de perceber que nem sempre essa proteção é realizada de acordo com os valores dominantes nas sociedades democráticas da atualidade, malgrado a existência de complexo arcabouço jurídico nos planos estatal e internacional para esse fim.

Se a falta de efetividade da tutela estatal pode surpreender, causa ainda mais estranheza quando se cogita de que os Estados nacionais possam ser permissivos ao ponto de promover a desproteção desses direitos. Para que se compreenda o porquê de eventual desconexão entre deveres e responsabilidades nessa seara, faz-se necessária uma breve análise histórica para se perceber como as respostas jurídicas para o valor trabalho variaram ao longo dos tempos e ao sabor das diversas formas de organização social. Será essa compreensão que irá orientar soluções jurídicas e axiológicas acerca do papel da responsabilidade do Estado na tutela de direitos dos trabalhadores, consentâneas com a realidade hodierna.

Com efeito, desde os primórdios da civilização que a sociabilidade humana e a necessidade de cooperação pelo trabalho são fatores fundamentais na determinação da forma de organização política dos grupamentos sociais. Fukuyama4 lembra que a antropologia utiliza diversos parâmetros para classificação dos estágios evolutivos de desenvolvimento social, tais como “selvageria” e “barbárie” (de cunho moral), “paleolítico, neolítico, idade do bronze e idade do ferro” (sobre as formas dominantes de tecnologia), “sociedades de caçadores coletores, agrícolas ou industriais” (modo de

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produção hegemônico) e “bandos, tribos, senhorios e estados” (formas de organização social ou política). Para o presente trabalho, que trata da responsabilidade do Estado pelo adimplemento de obrigações trabalhistas, interessam-nos as classificações que pressupõem o modo de produção e o modelo de organização social.

Nas estruturas sociais de bando, o trabalho surge como amálgama de grupos familiares nômades de caça e de coleta de frutos silvestres. A ausência de hierarquia é característica marcante e a justiça social decorrente do esforço do grupo se vê na partilha igualitária do trabalho. Os líderes emergem do consenso social, não há direito de liderança e tampouco transmissão por hereditariedade.

Com o aparecimento da agricultura, há cerca de nove mil anos, o trabalho molda um novo padrão de organização social, fazendo surgir tribos sedentárias e o aparecimento de agrupamentos humanos mais extensos e complexos, com forte predomínio das relações parentais. A divisão de trabalho nesse círculo não impõe padrões de autoridade. São sociedades com baixa hierarquia interna. Inicia-se, porém, a noção de propriedade privada, embora de uso coletivo tribal.

Se o trabalho esteve na origem dos bandos e das tribos como um dos elementos formadores desses tipos de organização, é a guerra e a honra dos guerreiros que moldam as sociedades senhoriais, haja vista ser pouco honroso naquela altura conseguir com o suor do rosto aquilo que se pode ganhar derramando sangue. Esse modelo de organização social estabiliza e hierarquiza os grupos sociais quase de forma absoluta. A propriedade da terra dita os destinos de várias gerações num modo de produção agrária.

O advento do Estado traz contornos diferentes em relação às demais estruturas sociais. Possui fonte centralizada de autoridade, exerce o monopólio de meios legítimos de coerção, com base territorial e não parental e produz sociedades desiguais. O modo de produção industrial pela apropriação privada dos meios de produção acaba por ditar a hegemonia do capital em relação ao trabalho.

A Filosofia e a Sociologia também referem que o valor do trabalho sofreu diversas conotações ao longo da história da humanidade. José Luís de Moura Jacinto acentua que a atividade produtiva sempre foi “uma constante humana”5; o que variou foi o conceito social acerca de seu valor. Na antiguidade, no século VI a.C., as leis de Drácon e Sólon puniam

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a ociosidade dos cidadãos até com a morte6. Entrementes, dois séculos depois, Platão chegou a ser considerado “culpado” por ter vendido azeite para custear sua viagem ao Egito, conquanto sobre os trabalhadores livres afirmara que “pelo seu intelecto, não seriam muito dignos de serem admitidos na nossa comunidade, mas são possuidores de força física suficiente para o trabalho pesado”7.

Na idade média, as sociedades senhoriais mantiveram a desvalorização do trabalho, em prol da honra dos guerreiros feudais. “A honra é a recompensa daquele que não vive do seu trabalho.”8 O trabalho não tinha reconhecimento social. O modelo de organização feudal estava fundado num modelo de produção que implicava o poder e o proveito econômico do senhorio e do clero e a sujeição do servo, sob a força das armas e da religião.

As correntes filosóficas do jusnaturalismo, o renascimento do comércio com o Oriente, a peste negra que assolou a Europa e o desenvolvimento das cidades vão dar azo à ruptura do feudalismo e à construção do Estado moderno. A propriedade deixa de ser um produto da hereditariedade e passa a ser um produto do trabalho. John Locke harmoniza no campo filosófico dois valores que até então se contrapunham: “todo homem possui uma propriedade em sua própria pessoa, de tal forma que a fadiga de seu corpo e o trabalho de suas mãos são seus”9. O direito medieval disperso dará lugar ao monopólio da força jurídica pelo Estado, no qual se reconhece e se positiva o poder político da burguesia e a força do trabalho como elemento difusor de um novo modelo de sociedade.

O mundo moderno irá desenvolver-se e expandir-se por meio dos estados nacionais, impelido pela revolução industrial e o sistema capitalista de produção. Se o trabalho era desvalorizado no modelo de organização feudal, no modo de produção capitalista “a utilidade é o valor superior, pelo que o trabalho socialmente útil deve ascender a uma posição proeminente como valor social”10. O reconhecimento social do trabalho, todavia, não produziu necessariamente modelos de organização social justos e igualitários. Diferentemente do que previa Adam Smith “acerca da centralidade do

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indivíduo-cidadão e produtor na vida social”11, o modelo estatal e o regime de produção irão marcar três séculos de desenvolvimento econômico, desigualdade social e guerras.

Se o modelo estatal-capitalista teve o mérito de superar a servidão e conceber uma forma de trabalho juridicamente livre, por outro lado não trouxe prosperidade para o trabalhador e, por conseguinte, justiça social. Pelo contrário, um número inimaginável de trabalhadores mutilados, concentração de renda nas mãos da burguesia capitalista e a pobreza da classe operária formaram desde o nascedouro uma relação jurídica de forças e interesses coletivos opostos.

O Direito do Trabalho prestou-se justamente ao desiderato de equilibrar essas forças e assegurar um mínimo de...

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