Tráfico de pessoas e trabalho escravo: além da interposição de conceitos

AutorChristiane Nogueira/Marina Novaes/Renato Bignami/Xavier Plassat
CargoMestre em Direito Constitucional pela UFC/Bacharel em Direito pela PUC-SP/Mestre em Direito do Trabalho pela USP e Doutorando em Direito do Trabalho pela Universidad Complutense de Madrid/Mestre em Economia do Desenvolvimento pela Faculdade de Direito e Ciências Econômicas da Universidade de Paris
Páginas217-243

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Introdução

O “Protocolo Adicional das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição ao Tráfico de Pessoa, em Especial Mulheres e Crianças”, mais conhecido como “Protocolo de Palermo”, foi ratificado pelo Brasil em 2004, por meio do Decreto n.
5.017, de 12 de março de 2004.

Muitas dúvidas e questões em torno do tema têm surgido desde então, envolvendo tanto o alcance da expressão “tráfico de pessoas”, quanto as tímidas modificações legislativas implementadas pelo Brasil para a compatibilização do ordenamento infraconstitucional com o Protocolo, entre tantas outras relacionadas com a exploração da prostituição, relações de gênero, migração.

As discussões não são infundadas. Ao contrário, decorrem da própria complexidade do fenômeno, que se encontra em área de interseção entre diversos assuntos, como os citados no parágrafo anterior e outros: a exploração do trabalho, o modelo econômico em que está inserida e a postura do Estado Brasileiro desde o surgimento dos primeiros instrumentos internacionais relacionados com esse objeto no início do século XX, até o advento do Protocolo de Palermo.

É possível observar duas linhas nos caminhos trilhados por esses debates: a hegemonia da abordagem criminal e a dificuldade em ampliar a concepção de tráfico de pessoas para além da exploração para fins sexuais. Discutem-se os elementos do crime, as espécies de dolo, o tráfico inter-nacional e o interno, a restrição efetivada pelo Código Penal alterado em comparação com o Protocolo. É evidente a movimentação produzida pelo instrumento internacional no ambiente acadêmico, estatal e da sociedade civil organizada. Isso do ponto de vista criminal e da proteção dos direitos

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humanos daí decorrentes, postos em xeque quando da ocorrência de tráfico de pessoas, os quais certamente saem fortalecidos com tais discussões.

Porém, através do prisma trabalhista, a análise ainda é incipiente. Em que pesem os princípios específicos do Direito do Trabalho — proteção, norma mais favorável, condição mais benéfica —, somados aos princípios constitucionais ligados aos direitos humanos — que incluem os direitos sociais e entre eles os trabalhistas —: indivisibilidade, interdependência, proibição do retrocesso, autorizarem a interpretação que assegure a proteção mais ampla possível aos direitos dos trabalhadores, fato é que, nesse plano, os desdobramentos do Protocolo de Palermo ainda não foram detalhadamente explorados.

Exceção deve ser feita a artigos e abordagens dispersos, que tangenciam a questão, e ao Manual de Combate ao Trabalho em Condições Análogas às de Escravo, do Ministério do Trabalho e Emprego, atualizado em 2011 que, em diversos trechos, equipara a exploração do trabalho escravo à definição de tráfico de pessoas contida no Protocolo de Palermo. Igualmente, merece destaque a atual Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Decreto n. 7.901/13), a qual esclarece que a expressão “escravatura ou práticas similares à escravatura”, utilizada no Protocolo, deve ser compreendida como a apontada pelo art. 149 do Código Penal e também considera tráfico de pessoas a intermediação, promoção ou facilitação do recrutamento, do transporte, da transferência, do alojamento ou do acolhimento de pessoas para fins de exploração. No âmbito da Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE) e do Ministério Público do Trabalho, foram criados grupos dedicados à questão do trabalho de imigrantes, os quais têm discutido esses temas.

O objetivo do artigo, portanto, é contribuir com o aprofundamento desse debate. A ideia de publicá-lo surgiu após inúmeros impasses e questionamentos observados e vividos pelos autores em suas atuações diárias para erradicação do trabalho escravo. Esses desafios geraram diálogos, trocas de mensagens eletrônicas, discussões profícuas e a necessidade de compartilhar algumas conclusões iniciais, que não desconsideram a existência de interpretações diversas.

A intenção é apresentar outras miradas possíveis para o Protocolo de Palermo. Não a partir do marco criminal ou se restringindo às importantes abordagens ligadas à exploração sexual, à movimentação de pessoas entre países ou dentro do território nacional, mas do ponto de vista trabalhista e especificamente através da lente do combate ao trabalho escravo.

O Protocolo amplia sobremaneira esse horizonte. Ao tratar o tráfico no sentido da exploração e da mercantilização das pessoas, inclui também

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nesse universo as definições de aliciamento e redução à condição análoga à de escravo. Assim, embora não apresente conceitos novos para esses males, leva em consideração as formas contemporâneas com as quais se revestem e se metamorfoseiam e abre uma perspectiva muito importante e completamente harmônica com o universo do Direito do Trabalho: a proteção às vítimas e às suas famílias, objetivo central e prioritário do Protocolo de Palermo.

Então, o que move o artigo é o desejo de contribuir com uma alternativa de interpretação sistêmica do ordenamento jurídico brasileiro que promova, no maior grau possível, a proteção do trabalhador vítima de redução a condições análogas às de escravo, seja brasileiro ou imigrante (independente de sua situação migratória), garantindo a dignidade dessas pessoas e de suas famílias e dando concretude às normas de direitos humanos adotadas pelo Brasil, em especial o Protocolo de Palermo.

1. Contexto histórico e jurídico do combate ao trabalho escravo e ao tráfico de pessoas no Brasil

Por quatro séculos, o Brasil recebeu a imigração forçada da África, consequência do tráfico de escravos. A abolição da escravidão que atendeu interesses econômicos, descolada de qualquer planejamento ou política social que integrasse os libertos, fez com que os ex-escravos continuassem à margem da sociedade, alijados econômica e socialmente1.

Consequências vividas até hoje, 125 anos depois, por imigrantes europeus nas fazendas de café no sudeste, “soldados” da borracha no norte, cortadores de cana-de-açúcar do nordeste, trabalhadores nas fazendas de gado do centro-oeste, e ainda os que trabalham no agronegócio, no desmatamento, em casas de prostituição e em oficinas de costura. Em comum, a desigualdade social, a falta de oportunidades e a condição de vulnerabilidade que caracteriza a escravidão moderna, o que Armand Pereira disse ser o “resultado do trabalho degradante que envolve cerceamento da liberdade”2.

As notícias sobre trabalho escravo após a abolição foram recebidas como histórias de ficção ou fatos isolados, representadas em obras de literatura como “Os Sertões”, de Euclides da Cunha; ou “Mad Maria”, de Márcio

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de Souza, também em documentos da igreja católica e, eventualmente, na imprensa3.

A existência do crime está no nosso ordenamento jurídico desde 1940, através de um então genérico art. 149 do Código Penal. A obrigação de garantir os direitos trabalhistas só foi editada em 1963, com o Estatuto do Trabalhador Rural, com previsão de normas de proteção a essa categoria de obreiros, vinte anos depois da Consolidação das Leis do Trabalho. A Lei
n. 5.889/734 substituiu o Estatuto, estendendo os direitos dos trabalhadores urbanos aos trabalhadores rurais com algumas peculiaridades, uma vez que a igualdade jurídica só veio com a Constituição Federal de 1988.

Na esfera internacional, o Brasil ratificou, décadas depois de sua promulgação, as Convenções ns. 295, e 1056, da Organização Internacional do Trabalho. A primeira — Convenção sobre Trabalho Forçado — trata sobre a eliminação do trabalho forçado ou obrigatório em todas as suas formas. A segunda — Convenção sobre Abolição do Trabalho Forçado — diz respeito à proibição do uso de toda forma de trabalho forçado ou obrigatório como meio de coerção ou de educação política; castigo por expressão de opiniões políticas ou ideológicas; medida disciplinar no trabalho, punição por participação em greves; como medida de discriminação.

Apenas em 1971, foi feita a primeira denúncia pública de trabalho escravo nos estados do Mato Grosso, Pará e Goiás, através da Carta Pastoral: “Uma Igreja da Amazônia em Conflito com o Latifúndio e a Marginalização Social”, pelo Bispo D. Pedro Casaldáliga. Ameaçado e fortemente criticado, foi o primeiro texto público a tratar do tema e expor a realidade dos trabalhadores submetidos ao trabalho escravo 7. Em 1975, foi criada a Comissão Pastoral da Terra — CPT, ligada à Conferência Nacional de Bispos do Brasil — CNBB, e a primeira organização não governamental voltada para a questão8.

As primeiras tentativas governamentais para lidar com o problema aconteceram entre os anos de 1985 e 1986, com protocolos de intenções entre os Ministérios do Trabalho, da Reforma e Desenvolvimento Agrário e da Justiça para conjugar esforços visando reprimir violações aos direitos sociais dos trabalhadores rurais dos estados do Pará, Maranhão e Goiás9.

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Na década de 90, diversas denúncias contra o Estado brasileiro foram protocoladas em organismos internacionais, como as Nações Unidas, a Organização Internacional do Trabalho e a Organização dos Estados Americanos. Este último, ensejado pelo caso José Pereira, foi instado pelos peticionários (CPT e Centro pela Justiça e Direito Internacional — CEJIL) juntamente com a Comissão Interamericana de Direitos...

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