A titularidade do direito fundamental de greve

AutorCláudio Armando Couce de Menezes
CargoDesembargador do TRT da 17a Região
Páginas27-35

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1. Introdução

A greve, fato social por excelência, pelas suas repercussões, tornou-se objeto do Direito. Primeiro como ato ilícito; após como fato e ato jurídico e, com a evolução da sociedade, como Direito. Contudo, independentemente de seu reconhecimento formal pelo direito positivo, constitui-se em um fato social inerente aos interesses contrapostos existentes na sociedade. Traduz um anseio de alterar, inverter, superar a situação das classes sociais ou categorias pro?ssionais.

Todos os direitos dos trabalhadores remontam ou têm como caldo de cultura as lutas obreiras, que encontram na greve um instrumento precioso para implementar suas reivindicações e, outrossim, para combater a opressão econômica, a degradação de suas condições de vida e trabalho, o descumprimento ou a burla dos deveres dos empregadores.

O direito de greve é, em realidade, a conquista dos trabalhadores que mais incomoda aos empresários, dirigentes de empresa, organizações patronais, setores conservadores da sociedade (e até mesmo ao Estado), que buscam, não raro, enquadrar, restringir, regulamentar, quando não impedir o seu exercício.

Não poderia ser de outro modo, pois é um direito que se impôs aos empregadores, tomadores de serviço e ao Estado. Portanto, consiste a greve em arma básica do trabalhador na eterna luta pela sua dignidade como ser humano e pelo reconhecimento e efetivação de seus direitos.

Neste trabalho, pensamos em destacar questão que entendemos importante para a efetividade do Direito de Greve, qual seja, os sujeitos legitimados para o seu exercício.

No Brasil, geralmente, apresenta-se a greve como um direito coletivo, cujo exercício seria atribuído à entidade sindical1. Tal assertiva, porém, contraria expressamente a Constituição em vigor que, no seu art. 9º, caput, dispõe com clareza que cabe aos trabalhadores — e não aos sindicatos — a decisão sobre os interesses a defender e a oportunidade da realização da greve.

“Art. 9º É assegurado o direito de greve, COMPETINDO AOS TRABALHADORES decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.”

Há na construção doutrinária brasileira sobre o tema uma supervalorização da Lei de Greve (Lei n. 7.783/89) que, em seu art. 4º, dispõe que cabe ao sindicato iniciar os preparativos do movimento. Daí extrai-se a conclusão de que a titularidade da greve estaria adstrita às entidades sindicais. Contudo, essa leitura contraria o preceito constitucional citado acima, valorizando uma interpretação restritiva que, além da literalidade da norma constitucional, esquece do sistema e dos princípios oriundos de Tratados e Convenções Internacionais sobre o tema.

Os Direitos Sociais dos trabalhadores não são meras promessas, mas mecanismos de realização de direitos. Não se admite, na moderna teoria do direito constitucional, sejam podados na sua aplicação por interpretações restritivas. Em outras palavras, os Direitos Sociais enquanto Direitos Fundamentais necessitam de uma interpretação que busque sua máxima efetividade sob pena de reduzirmos os princípios constitucionais a meros textos. Portanto, não cabe a inversão normativa adotada pela doutrina brasileira, infelizmente comum a um grande número de operadores e estudiosos do Direito do Trabalho: ler a constituição à luz da lei2.

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Destarte, não é dado ao legislador tampouco ao aplicador da lei e aos juristas limitar o alcance de princípios e regras constitucionais conforme o disposto nas normas ordinárias, que deveriam tratar dos Direitos Fundamentais, sobretudo os de cunho social, sob a ótica da sua efetividade, pautada nos cânones da progressividade e da não regressividade social, da dignidade da pessoa humana e da valorização social do trabalho.

A natureza coletiva da greve e o disposto no art. 8º, III, da Constituição Federal brasileira que atribui a representação coletiva aos entes sindicais, não exclui a possibilidade dos obreiros exercerem esse Direito Fundamental em conjunto ou até contra a vontade dos sindicatos, sem falar, evidentemente, da hipótese em que não haja entidade sindical organizada.

Inúmeros fundamentos autorizam nosso raciocínio: a existência de Tratados e Convenções Internacionais sobre o tema, o direito comparado, a jurisprudência da OIT, razões de ordem sociológica, princípios de direito coletivo, além do já mencionado art. 9º da Constituição Brasileira.

Por outro lado, também não impressiona o argumento de que a negociação coletiva exige a participação obrigatória do sindicato (art. 8º, VI, da CF)3. A negociação coletiva pode até ser considerada pressuposto ou condição da ação de dissídio coletivo. A greve, por sua vez, não raro antecede ou ocorre simultaneamente às tratativas entre empregado e empregador, inclusive para forçar à entabulação de acordos e convenções coletivas ou, simplesmente, para o cumprimento do que já pactuado. Sem falar nas greves que têm como escopo o cumprimento de normas e regras previstas em Tratados e Convenções Internacionais, dispositivos da Constituição e da lei, políticas sociais e regulamento interno da empresa.

Mesmo correndo risco de sermos repetitivos, salientamos que o problema aqui posto tem como razão maior a subversão praticada por aqueles que invertem a equação, lançando mão, por diversos motivos (inclusive ideológicos), da normatividade infraconstitucional antes e acima da Constituição, banalizando e esvaziando um Direito Fundamental que é protegido de modo especial pela Constituição ao emprestar-lhe tratamento em apartado.

De resto, como já exposto anteriormente, há ainda um abandono de regras e princípios de direito internacional, constitucional e comparado, além de dados sociológicos e históricos cuja análise faremos a seguir.

2. Definição do sujeito do direito de greve
2.1. Tratados internacionais, resoluções e decisões de Direito Internacional

A Carta Internacional Americana de Garantias Sociais incorporada à Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (Bogotá, 1948), em seu art. 27, estabelece que aos trabalhadores é assegurado o direito de greve.

Por sua parte, o art. 44 da Carta da Organização dos Estados Americanos trata do direito de greve como atinente aos trabalhadores, INDEPENDENTE DA LIBERDADE DE ASSOCIAÇÃO SINDICAL: art. 44, caput: “Los

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Estados miembros, convencidos de que el hombre solo puede alcanzar la plena realización de sus aspiraciones dentro de un orden social justo, acompañado de desarrollo económico y verdadera paz, conviene en aplicación de los siguientes principios y mecanismos:... c) “Los empleados y trabajadores tanto rurales, como urbanos, tienen en el derecho de asociarse libremente para la defensa y promoción colectiva y el de huelga por parte de los trabajadores, el reconocimiento de la personería jurídica de las asociaciones y la protección de su libertad e independencia, todo de conformidad con la legislación respectiva”.

Registre-se que o Pacto de São José da Costa Rica adota a técnica do reenvio à Carta da Organização dos Estados Americanos que, conforme preceito transcrito acima, considera os trabalhadores como titulares do Direito de Greve.

Já o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Nova York, 1966) reza que os Estados-partes garantem o direito de greve. Embora não especi?que sua titularidade, cuida da greve em parágrafo distinto daquele que regula os direitos sindicais.

No campo dos tratados internacionais dos Direitos Humanos Fundamentais encontramos ainda a Declaração Sociolaboral do Mercosul (Rio de Janeiro, 10.12.1998) que, em seu art. 11, reconhece tanto aos trabalhadores como às organizações sindicais o exercício do direito de greve: “ todos os trabalhadores e suas organizações sindicais têm garantido o exercício do direito de greve, ...”.

Nos pronunciamentos dos órgãos internacionais de controle dos direitos coletivos e de liberdade sindical (OIT, Conselho da Europa, etc.), a greve é tida como direito individual que se exerce ou se expressa de maneira coletiva pelos trabalhadores ou pelos entes sindicais.

As Ementas ns. 363 e 364 do Comitê de Liberdade Sindical da OIT bem demonstram o aspecto:

“363 – O direito de greve dos TRABALHADORES e suas organizações constituem um dos meios essenciais de que dispõem para promover e defender seus interesses pro?ssionais.”
“364 – O Comitê sempre estimou que o direito de greve é um dos Direitos Fundamentais dos Trabalhadores e de suas organizações, ...”

Note-se que, bem antes disso, no ano de 1957, a OIT expediu a resolução sobre abolição da legislação antissindical, instando os Estados-Membros a não restringirem o direito dos trabalhadores à greve4, sendo que a Comissão de Expertos na Aplicação de Convênios e Recomendações (CEACR, desde 1959) reconheceu o direito de greve como direito dos trabalhadores e de suas organizações5.

2.2. Direito comparado

A compreensão da greve como um direito de titularidade individual, que se exercita coletivamente, responde a um modelo latino-europeu, consolidado em países como França, Itália e Espanha, com...

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