Política Social Brasileira: Aspectos de sua Trajetória e Desafios do Presente

AutorIgnácio Godinho Delgado
Páginas125-132

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1. Apresentação

Retomamos, nesse artigo, as reflexões que estiveram na base de estudos sobre a trajetória da previdência social brasileira, efetuadas em diversos trabalhos elaborados entre 1998 e 2004, conectando-as a formulações mais recentes sobre a política de saúde no Brasil. O objetivo é identificar os desafios e oportunidades que se abrem para a política social brasileira no presente e as eventuais articulações entre a expansão de suas dimensões pública e redistributiva e a perspectiva de desenvolvimento econômico, assentado na elevação da competitividade e da inovação das empresas brasileiras, que tem aparecido como objetivo central do governo Dilma Roussef. Sugere-se que tal articulação é possível e representa um horizonte a construir, através da busca de pactuação entre os atores sociais relevantes. O artigo desenvolve-se em três seções. Na primeira apresentamos, ligeiramente, os elementos centrais da abordagem que instrui os estudos em que este artigo se baseia, com uma ligeira descrição de alguns casos nacionais exemplares. Na segunda, efetuamos, em largas pinceladas, uma descrição da trajetória da política social brasileira dos anos 1930 aos anos 1990 do século passado, com ênfase na previdência social e referência às políticas de saúde e assistência, que compõem com a primeira o escopo da seguridade social no Brasil, tal como definido na Carta de 1988. Na terceira seção, por fim, indicamos o que nos parecem ser as características centrais de tais políticas nos governos de Lula e Dilma Roussef, explorando as conexões apontadas acima e as possibilidades e riscos que encerram.

2. Atores e trajetórias das políticas sociais modernas

As ações preventivas, regulatórias, compensatórias e redistributivas do Estado Nacional compõem as políticas sociais modernas (SANTOS, 1979). Elas integram as parcelas mais desfavorecidas da população, notadamente os trabalhadores assalariados, ao status compartilhado da cidadania (MARSHALL, 1967). Envolvendo a presença dos direitos civis e políticos, que asseguram franquias à livre escolha dos indivíduos e à ampla participação desses no corpo político, tal status compartilhado implica também a presença dos direitos sociais, que, além das medidas de proteção ao trabalho exigem não apenas franquias, mas o provimento (DAHRENDORF, 1992) de recursos e bens associados ao seguro social, bem como à criação de condições de moradia, transporte, saúde, educação e lazer capazes de garantir às pessoas um mínimo de bem estar, com possibilidades de participação na herança social e o desfrute de padrões civilizados de existência, tal como prevalecentes na sociedade em que vivem (MARSHALL, 1967). Para boa parte das políticas públicas, a habilitação a tais recursos e bens tem sido definida através dos mecanismos da seguridade, seguro ou assistência sociais, envolvendo, respectivamente, princípios de acesso regulados pelos direitos da cidadania, por contratos compulsórios firmados entre os principais agentes presentes nas relações de trabalho capitalistas e o Estado, e pelas necessidades de públicos mais vulneráveis (RIMLINGER, 1977). Na comunidade nacional e através do Estado Nacional, as políticas sociais materializam o que Polanyi denominou de autodefesa da sociedade, diante da operação do livre mercado (POLANYI, 1980).

No conjunto das políticas sociais, foram historicamente a regulação estatal do processo e do contrato de trabalho e as políticas ligadas ao seguro social moderno, notadamente as aposentadorias e pensões, que mais diretamente se associaram à interação entre trabalhadores, empresários e Estado, dando forma aos termos fundamentais do compromisso a partir do qual foram constituídos os Estados de Bem Estar Social (PRZEWORSKI, 1989)1. Os sistemas de aposentadorias e

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pensões estabeleceram, ainda, as matrizes de onde se originaram os diferentes tipos de Estados de Bem-Estar Social, além de políticas específicas, como as de saúde e, em alguns casos, as de habitação (DELGADO, 2001)2.

Nas situações em que os Estados de Bem-Estar Social surgiram vinculados ao modelo público universalista de política social, prevalece o princípio do direito de cidadania no acesso a serviços e benefícios garantidos pelas políticas sociais, com a predominância da noção de mínimo vital na concessão dos benefícios previdenciários, garantidos principalmente por aportes estatais originários de tributos gerais e diretos. Ainda que em diferentes proporções, na maior parte dos casos, tal padrão convive, embora não necessariamente, com a provisão pública de serviços como os de saúde.

Onde surgiram associados ao modelo público corporativo de política social, prevalece nos Estados de Bem-Estar Social o princípio do seguro social no acesso a serviços e benefícios, com formas de retribuição meritocráticas na previdência, custeadas pelas contribuições de empregados e empregadores, efetuadas sobre a folha de pagamentos das empresas. Em geral, tal padrão combina-se a dispositivos ocupacionais de acesso a serviços como os de saúde, cuja provisão é assegurada por diferentes arranjos entre o Estado e a iniciativa privada.

Por fim, nos Estados de Bem-Estar Social que se constituíram conforme um padrão liberal residual, a assistência social vertebra a estrutura do sistema de bem estar, com a presença de testes de meios para identificar as pessoas objeto das políticas sociais. A previdência privada, organizada no sistema de capitalização individual, assume um papel expressivo, não obstante a presença mais ou menos significativa da previdência pública. Neste modelo, prevalece também a oferta privada de outros serviços vinculados à proteção social3.

A interação verificada entre trabalhadores, empresários e o pessoal do Estado na gênese das modernas políticas sociais envolveu a realização de escolhas e coalizões em determinadas condições contextuais, com destaque para a forma de inserção da economia nacional no mercado mundial, a natureza do regime político, o tipo de presença política dos trabalhadores e as configurações nacionais de mercado (DELGADO, 2001). As escolhas dos atores derivam de seus interesses, mas suas interações afetam a estrutura de escolhas, distanciando-a, por vezes, de suas preferências. Em políticas específicas, por seu turno, fatores demográficos, econômicos e institucionais afetam as próprias preferências e o peso de tais atores sociais abrangentes, além de interferir no processo de formação da agenda pública setorial e de engendrar a presença de segmentos específicos, aqui designados atores sociais endógenos, cuja importância, preferências e influência são determinadas pelos arranjos institucionais que circunscrevem cada política, como veremos na última sessão deste artigo (DELGADO, 2012).

No que se refere à previdência social, os empresários tendem a preferir a os sistema de capitalização individual. Nem sempre, entretanto, esta aparece entre as suas escolhas possíveis. Se diante de uma estrutura de escolha em que são apresentadas como opções apenas a definição entre um sistema contributivo, com tributação sobre a folha de pagamentos, ou um sistema de cobertura universal, sustentado por impostos gerais e diretos, a escolha empresarial levará em conta o impacto de tais sistemas para o desempenho das empresas. Se a produção industrial dirige-se a um mercado interno protegido da concorrência externa, é provável que aquela recaia sobre o primeiro sistema, já que seu custeio, assentado em tributos indiretos, pode ser transferido aos consumidores, em certos limites. No caso inverso, em economias abertas, com as opções disponíveis, é provável que escolham a segunda alternativa (DELGADO, 2001).

Os trabalhadores tendem, pela insegurança de seus vínculos com o mercado e sua reduzida propensão à poupança, a optar por modelos baseados na solidariedade intergeracional, especialmente se não contributivos. Caso as circunstâncias interditem esta opção, escolhem o sistema de repartição simples, no qual os rendimentos dos aposentados são parcialmente cobertos pelos trabalhadores em atividade (DELGADO, 2001).

Na origem dos modernos sistemas contributivos de proteção social, especialmente quando simultânea à própria afirmação do Estado Nacional, há uma convergência entre os titulares do poder de Estado e a burocracia previdenciária. A ambos importa um sistema que participa na geração de um fundo que serve à montagem da máquina do Estado e à alavancagem da acumulação. Entretanto, com o amadurecimento dos sistemas previdenciários, a passagem da capitalização coletiva à repartição simples, as mudanças na estrutura demográfica e no ciclo de vida das pessoas, tende-se a desfazer a convergência. Reforça-se entre os titulares do poder de Estado a percepção de que a previdência contribui para o deficit público, favorecendo ações de retração das políticas sociais, contra as disposições da burocracia de manter o aparato que lhe dá suporte (DELGADO, 2001 e 2004).

A implantação de políticas sociais mais extensas é favorecida pela presença de uma identidade política dos trabalhadores, que acentua o peso desses na cena política nacional. Os EUA assistiram, nos anos 1930, à emergência das políticas sociais modernas numa situação política democrática, sob o governo de Roosevelt, em meio ao recrudescimento da ação protecionista do Estado e numa configuração de mercado que potencializava a dimensão estrutural do poder dos trabalhadores. A ausência de organizações que lhes conferissem

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uma identidade relevante na cena política estadunidense contribuiu, entretanto, para que o Estado de Bem-Estar Social dos EUA, de caráter liberal e residual, permanecesse pequeno e inconcluso (SWAAN, 1988; ESPING-ANDERSEN, 1990). Na Alemanha, sob o regime de Bismarck, numa economia fechada e dentro de uma configuração de...

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