A tese de hans kelsen, a norma fundamental e o conceito de justiça

AutorGisele Leite
CargoMestre em Direito (UFRJ) Doutora em Direito (USP)
Páginas26-34

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Ver Nota1

Além do interesse no estudo da história das ideias, é o fato de que sua obra continua mesmo até hoje a ser muito importante para as cruciais questões da teoria do direito, permanecendo como fonte quase inesgotável de polêmicas, controvérsias e desafios. Os diversos matizes filosóficos da doutrina jurídica reconhecem que Kelsen buscou um conceito universalmente aceito do direito e independente da conjuntura em que fosse aplicado. E tal objetivo foi em grande parte alcançado.

A Teoria Pura do Direito deitou suas raízes na filosofia de Im-manuel Kant e não em princípios metafísicos da doutrina jurídica, sendo focada na Crítica da Razão Pura e, mais, precisamente, na lógica transcendental. Suas origens kantianas estão reconhecidamente confessas no capítulo III, que se refere à categoria do dever, considerado como categoria da lógica transcendental.

Nesse particular, estabeleceu um paralelo entre a imputação e a causalidade, sendo esta uma categoria transcendental, um princípio gnosiológico que permite compre-ender a realidade virtual.

Kelsen, rejeitando a inspiração kantiana da doutrina do direito natural, afirmou que a teoria pura do direito refere-se ao direito positivo2, vendo no “dever”, de Sollen, uma categoria lógica das ciências normativas.

Na edição de 1960 de sua obra, Kelsen se dirigiu à aplicação da teoria do conhecimento de Kant, concebendo a norma fundamental como condição lógico-transcen-dental de validade da ordem jurídica.

Estão presentes as influências do neokantismo3, havendo Renato Treves afirmado que tal influência teria terminado em torno de 1940. Ao reelaborar a teoria pura do direito em sua derradeira versão, veio Kelsen incorporar as construções de teoria geral do direito e do Estado tendo conservado os princípios da lógica transcendental principalmente quando determinou o objeto de estudo ou conhecimento e ainda afirmou o fundamento de validade da norma jurídica.

Suas contribuições4 foram de amplo espectro, e pretendeu fundar a verdadeira ciência do direito, procurando atender aos questionamentos: “o que é” e “como é” o direito. Buscou estabelecer a teoria do conhecimento jurídico traçando-a bem delimitada pelo direito positivo que é o direito posto.

O objeto da ciência do direito5 positivo é conceituado como sistema de normas e para tanto recorreu ao postulado metodológico da pureza. Tal método de pureza utilizado por Kelsen fora criticado, tendo sido acusado de tentar indevidamente purificar o direito, isolando-o dos fatos morais, políticos e sociais.

No entanto, Kelsen reconheceu que o direito tem relações estreitas com outras ciências. Mas a teoria pura do direito não tratou de fenômenos prévios ao estabelecimento

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da norma jurídica, e a fixação de seu conteúdo ocupa-se da norma posta (positiva).

Não pretendeu purificar o direito, nem mesmo supôs que a ciência jurídica seja uma ciência matemática, posto que, como ciência social aplicada, não seja definitivamente uma ciência exata. O próprio Kelsen tratou das aproximações e distinções entre direito e moral, registrou também a relação entre a justiça e o direito.

Apontou a equivocada identificação que se faz entre a ciência e o seu objeto. E, ainda a equivocada sinonímia de direito e ciência jurídica6.

Na teoria pura do direito, o objeto do conhecimento7 jurídico é o direito que representa um sistema de normas que regem a conduta humana. As normas jurídicas adquirem sentido objetivo de “dever ser”, o que põe em relevo seu caráter de imperativo, tanto de imposição como proibição apesar de existirem também outras funções deônticas.

A norma como “dever ser” provém da influência da teoria dos imperativos de Kant presente na sua obra Fundamentos da Metafísica dos Costumes. O “dever ser” mostra uma relação de uma lei objetiva da razão com a vontade.

Na doutrina kantiana, os imperativos categóricos impõem “dever ser” incondicional simbolizando a conduta devida, independentemente de qualquer condição, enquanto que os imperativos hipotéticos impõem um imperativo condicional dependente de uma hipótese previamente concebida, exemplificando na proposição: “se A é, deve ser B”, “na qual A é a condição de cuja realização depende da exigência do ‘dever’ simbolizado por B”.

Desta forma, Kelsen ao conceber a norma como um “dever ser” que tem sua origem em um ato de vontade remonta às bases kantianas. Mas o “dever ser” não tem sentido axiológico, não se vincula a qualquer pretensão de ordenar a ação de ser racional movido pela representação do dever, e não envolve a ideia abstrata e transcendente do dever. É somente um significado lógico8.

“Ser” e “dever ser” são dois conceitos puramente formais, duas formas que podem tomar todo e qualquer conteúdo, mas precisam de certo conteúdo para ter portadores de sentido.

Entre o “ser” e o “dever” há o irredutível dualismo que explicita que um “dever ser” não pode se reduzir a um “ser”, assim como um “ser” não pode se reduzir a um “dever ser”.

De um “ser” não se deduz um “dever ser”, assim como do “dever ser” não se deduz um “ser”. Enfim, o “ser” não se converte em “dever ser” e nem este em “ser”. Tal dualismo exposto por Kant fixou as fronteiras bem demarcadas entre o mundo da natureza e o mundo da razão, onde impera a causalidade, e da liberdade9, onde os seres racionais podem agir pela representação do dever.

Apesar de “ser” e “dever ser” serem formas distintas e irredutíveis, na doutrina de Kelsen, as relações entre estes aparecem na gênese das normas que integram o sistema jurídico, nas relações existentes entre a natureza e o direito, entre o ato e o significado, entre a vontade e a norma.

Os atos adentram ao domínio do direito e adquirem qualidade de jurídicos; neles existem elementos da natureza (do mundo do ser) que podem ser captados pelo sensorial e outros elementos que não podem ser captados.

O que confere o sentido jurídico aos atos e fatos não é o seu ser natural, é uma norma jurídica, que os qualifica e que funciona como esquema de interpretação com relação a eles. A norma jurídica que empresta sentido jurídico aos fatos de natureza, dentre os quais os atos humanos, é também, por sua vez, o sentido de um ato externalizado no reino do “ser”, no mundo da natureza. Reconhece-se que o reino do ser representa o suporte para o significado, para o reino do dever ser.

O ato propulsor da norma é ato de vontade intencionalmente dirigido à conduta de outrem, devendo haver o sentido objetivo e subjetivo. Mas a norma não é fruto do ato de vontade, embora esta seja imprescindível para sua criação e positivação.

Lembremos que o ato de vontade está no plano do “ser”, sendo fático no mundo da natureza. Kelsen refutava as críticas que lhe fizeram quando apontaram que a norma, em sua teoria, é a vontade do Estado, salientando que é errôneo encarar a norma como “vontade” ou “comando” do legislador ou do Estado10.

A norma não pode ser caracterizada como vontade nem psíquica e nem despsicologizada, posto que não esteja no plano do “ser”, mas é sentido de um ato de vontade que se interpreta como dever ser.

Kelsen definiu in litteris: “Norma é o sentido de um ato através do qual uma conduta é prescrita, permitida ou, especialmente facultada, no sentido de adjudicada à competência de alguém.”

Tal concepção ainda dá destaque à norma, que é o sentido do ato, e não o próprio ato, que agrega a função da norma jurídica de prescrição que engloba a imposição e a proibição de funções de permissão, de autorização e, ainda, a derrogação que implica a abolição de validade de uma norma por outra norma.

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São funções deônticas que se compreendem como “dever ser”; e não se refere ao futuro, não é temporal. A gênese da norma pela correlação entre o ato de vontade e o sentido objetivo do “dever ser” que lhe é conferido por uma norma válida do sistema se processa em diversas instâncias competentes para criar as normas gerais e as normas individuais.

Na dinâmica do direito sempre em constante formação, todo processo de criação da norma é, simultaneamente, um processo de aplicação de normas. Todo processo de aplicação da norma é simultaneamente a criação da norma11.

Exceto em dois casos extremos, o da pressuposição da norma fundamental e o da execução do ato coercitivo, todo ato jurídico é, simultaneamente, aplicação de uma norma superior e produção de uma norma inferior, regulada por aquela.

O direito, segundo Kelsen é uma ordem normativa da conduta humana, um sistema de normas que regulam o comportamento humano.

As normas jurídicas que compõem essa ordem não surgem de fontes e de instâncias estranhas12 ao próprio sistema jurídico, mas se formam mediante o processo por ele mesmo regulado. Assim, o direito é a sua própria fonte, enquanto regula o seu permanente processo de autoprodução.

A norma jurídica13 só existe no sistema e a identificação feita por Kelsen entre a validade e a existência da norma jurídica se explica exatamente porque só adquire sentido dentro do sistema que a regula.

Existiram várias propostas doutrinárias preocupadas em distinguir as normas religiosas das normas morais, das normas convencionais e baseadas em critérios que se tornaram clássicos, firmados em dualismos antinômicos14, como os da autonomia e heteronomia, da interioridade e exterioridade, da unilateralidade e bilateralidade, da faculdade e coercibilidade.

E, com fulcro em tais critérios, buscava as classificações que nenhuma proposta se revelava satisfatória. Norberto Bobbio15 destacou que, ao contrário da doutrina tradicional que caracterizava a ordem jurídica como o sistema normativo composto de normas jurídicas, definindo o ordenamento pela natureza das normas, a perspectiva consagrou que as normas são jurídicas porque fazem parte do ordenamento jurídico.

Bobbio ainda sustentou que a classificação do ordenamento jurídico como objeto autônomo de estudo é recente e, em sua metáfora, apontou que se realçava mais o estudo das normas (consideravam-se as árvores, mas não a floresta).

A partir do...

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