Término do contrato por ato culposo do empregado: dispensa por justa causa

AutorMauricio Godinho Delgado
Páginas1318-1352

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I Introdução

A importante tipologia que divide as modalidades de término do contrato de trabalho em resilição contratual, resolução contratual e rescisão contratual, reservando para um quarto grupo inominado os demais tipos existentes de ruptura do pacto laborativo1, encontra em dois dos tipos de resolução alguns dos meios mais relevantes de terminação de tal contrato: a ruptura por ato culposo do empregado (dispensa por justa causa) e a ruptura por ato culposo do empregador (também chamada despedida indireta).

O presente capítulo será dedicado à terminação do contrato em face de conduta culposa do empregado, também conhecida pelo epíteto de justa causa obreira.

No seu estudo serão examinados, inicialmente, os sistemas principais de estruturação jurídica de ilícitos trabalhistas e respectivas penalidades, com o correspondente enquadramento do modelo brasileiro. Em seguida, a análise do contraponto entre justa causa e falta grave, que transparece no texto normativo da CLT. Mais à frente, a importante investigação acerca dos critérios de aplicação de penalidades prevalecentes no Direito do Trabalho do país. Por fim, será feita a análise das infrações tipificadas que existem no ramo justrabalhista pátrio, acompanhada do exame das punições lícitas e ilícitas, segundo o Direito brasileiro.

II Caracterização das infrações trabalhistas: sistemas pertinentes

O Direito do Trabalho procura caracterizar as infrações viabilizadoras da aplicação de punições no âmbito da relação de emprego. Tal caracterização, contudo, não se submete a um critério uniforme, segundo as diversas ordens jurídicas.

Conforme já antecipado no Capítulo XX, item V, deste Curso, existem, essencialmente, dois critérios principais de caracterização de infrações

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trabalhistas nas ordens jurídicas ocidentais de maior relevo: o critério genérico e o critério taxativo, este conhecido também como de tipicidade legal. É claro que no plano concreto das ordens jurídicas podem ocorrer formas de combinação dos dois critérios: ilustrativamente, a lei tipifica algumas infrações mas também admite outras condutas não tipificadas como ensejadoras da punição trabalhista.

O critério taxativo (ou de tipicidade legal) faz com que a legislação preveja, de modo expresso, os tipos jurídicos de infrações trabalhistas. Por tal critério, a ordem jurídica realiza previsão exaustiva e formalística das infrações, fiel ao princípio de que inexistiriam ilícitos trabalhistas além daqueles expressamente fixados em lei. Por esse critério, o Direito do Trabalho incorporaria o princípio penal clássico de que não há infração sem previsão legal anterior expressa.

Observe-se, contudo, que a tipificação trabalhista — mesmo à luz do critério taxativo — não chega a ser, em todas as hipóteses legais, tão rigorosa quanto à característica do Direito Penal. A infração corresponde a um tipo legal preestabelecido, mas esse tipo legal não tem, sempre, seus traços e contornos rigidamente fixados pela lei. A tipificação trabalhista pode ser, desse modo, significativamente mais flexível e plástica do que a configurada no Direito Penal. Um exemplo dessa plasticidade é dado pela justa causa prevista no art. 482, “b”, CLT, isto é, mau procedimento. Ora, a plasticidade e imprecisão desse tipo legal trabalhista deixa-o muito distante do rigor formal exigido por um tipo legal penalístico.

O critério genérico faz com que a legislação não preveja, de modo expresso, os tipos jurídicos de infrações trabalhistas; em síntese, a ordem jurídica não realiza previsão exaustiva e formalística das ilicitudes. Ao contrário, o Direito apenas menciona como infração trabalhista aquela conduta que, por sua natureza ou características próprias ou mesmo circunstanciais, venha a romper com a confiança essencial à preservação do vínculo empregatício. Por esse critério, portanto, é mais larga a margem de aferição de ocorrência de infrações no contexto da relação de emprego.

O jurista Amauri Mascaro Nascimento, ilustrando oportunamente o critério genérico, cita o conceito de justa causa inserido na Lei do Contrato de Trabalho portuguesa então vigente, elaborado em conformidade com o mencionado critério: “considera-se justa causa o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.”2

Não se pode sustentar, em princípio, existência de efetiva superioridade teórica e empírica de um critério de política normativa sobre outro. Ambos, na verdade, são compatíveis com uma apreensão democrática do tema do

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poder disciplinar. Contudo, o critério genérico — se não associado a um sistema intraempresarial de controle do exercício do poder disciplinar, com comissões obreiras e sindicais de acompanhamento e avaliação constantes — talvez conduza, com maior frequência, à geração de situações de incerteza e arbitrariedade. De todo modo, é critério que está distante da prática justrabalhista no Brasil.

A ordem jurídica brasileira inspira-se, inequivocamente, no critério taxativo. Nessa linha, a legislação trabalhista prevê, de modo expresso, as figuras de infrações trabalhistas. Realiza previsão exaustiva, fiel ao princípio de que inexistiriam infrações além daquelas formalmente fixadas em lei.

III Justa causa e falta grave: conceito e diferenciação

Para o Direito brasileiro, justa causa é o motivo relevante, previsto legalmente, que autoriza a resolução do contrato de trabalho por culpa do sujeito comitente da infração — no caso, o empregado. Trata-se, pois, da conduta tipificada em lei que autoriza a resolução do contrato de trabalho por culpa do trabalhador.

É evidente que infrações contratuais podem ser cometidas tanto pelo empregado (tipos jurídicos do art. 482, CLT, por exemplo), como pelo empregador (por exemplo, tipos jurídicos do art. 483, CLT). No primeiro caso, o cometimento dá ensejo à dispensa do obreiro por justa causa; no segundo caso, autoriza a ruptura contratual por transgressão do empregador (rescisão indireta).

Aos tipos legais de infrações obreiras, com seus requisitos objetivos, subjetivos e circunstanciais (a serem examinados no item seguinte deste capítulo), a ordem jurídica denomina, portanto, justa causa.

A CLT, tratando das infrações cometidas pelo trabalhador, refere-se ainda à noção de falta grave. Estipula que esta é constituída pela “prática de qualquer dos fatos a que se refere o art. 482, quando por sua repetição ou natureza representem séria violação dos deveres e obrigações do empregado” (art. 493, CLT). A referência consta do capítulo celetista que trata da estabilidade decenal no emprego (por exemplo, arts. 492, 493, 494, 495, 499, § 1º, todos da CLT). O art. 499, ilustrativamente, refere-se à falta grave em um de seus parágrafos (§ 1º), quando trata do estável decenal, mencionando, ao revés, a expressão justa causa quando se reporta ao empregado não estável (art. 499, § 2º, CLT).

A mesma CLT, ao se referir à estabilidade provisória do dirigente sindical, autoriza seu afastamento se o obreiro protegido “cometer falta grave devidamente apurada nos termos desta Consolidação” (art. 543, § 3º, CLT; grifos acrescidos). Também a Constituição da República, ao mencionar essa mesma

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garantia do dirigente sindical, utiliza-se da expressão falta grave: “salvo se cometer falta grave nos termos da lei” (art. 8º, VIII, in fine; grifos acrescidos).

Parece claro, portanto, que a falta grave corresponde à justa causa que tenha de ser apurada formalisticamente, por meio de ação judicial de inquérito, nos moldes do art. 494, caput, in fine, e arts. 853 a 855 da CLT. Do ponto de vista formal, pelo menos, há clara diferença entre justa causa e falta grave.

Do ponto de vista subjetivo, também há distinção entre as figuras. É que a falta grave é própria ao empregado estável e àqueles empregados que tenham estabilidades provisórias mais acentuadas, cuja resolução contratual somente possa ser feita por meio de inquérito judicial, em que se apure seu comportamento culposo, como se passa com o dirigente de entidades sindicais.

Contudo, do ponto de vista material, grassa divergência sobre haver efetiva diferenciação entre falta grave e justa causa. Pela ausência de substantiva distinção, há, por exemplo, o entendimento de Délio Maranhão, que insistia na equivalência entre as duas expressões: “a justa causa, por definição, é a falta grave”3. Na mesma linha, Eduardo Gabriel Saad4.

Wagner Giglio, embora admitindo que, na “prática forense, justa causa e falta grave são utilizadas indiscriminadamente como expressões sinônimas”, entende que a distinção feita pela lei “impõe ao intérprete diferenciar os conceitos: falta grave é a justa causa que, por sua natureza ou repetição, autoriza o despedimento do empregado estável (CLT, art. 493)”5.

A diferenciação material, substantiva, se houver, é apenas de intensidade: pretende a ordem jurídica que a justa causa apta a resolver, culposamente, o contrato de trabalho do empregado estável ou do dirigente sindical, seja intensamente grave, quer por sua natureza, quer por sua repetição. É o que pensa Dorval Lacerda, segundo referência feita por Valentin Carrion: “para a resolução do contrato do estável exige-se falta grave, ou seja, uma justa causa de superior intensidade”6.

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IV Infrações obreiras: critérios de aplicação de...

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