A terceirização: relações de trabalho e a dicotomia atividade-meio e atividade-fim

AutorMaria do Perpétuo Socorro Wanderley de Castro
Ocupação do AutorDesembargadora Federal do Trabalho, TRT 21 (em convocação extraordinária ao Tribunal Superior do Trabalho, 2014).
Páginas129-139

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1. Introdução

A terceirização, como fenômeno de gestão das empresas, surge com a intensificação da expansão do mercado. Sua introdução nas empresas acarretou o surgimento da atribuição a outras empresas, da realização de algumas atividades, por meio de contratos celebrados entre elas. Esse procedimento, por sua vez, se tornou um fenômeno do Direito do Trabalho, pois ocorreu uma alteração das relações de trabalho, retirando-lhes a nitidez e clareza diante da fragmentação e instabilidade dos vínculos trabalhistas porque destinados à execução de contratos que a empregadora firmava com outras empresas. Surgem os contratos trabalhistas de curta duração e de proteção social mínima. Na busca de estabelecer os contornos desse procedimento e de seus efeitos nas relações de trabalho, foi erigida a distinção entre atividade-fim e atividade-meio cuja elaboração e contornos foram dados eminentemente pela jurisprudência. No momento em que são debatidos os limites da terceirização e está em tramitação um projeto de lei que propõe a terceirização ampla, em qualquer setor das empresas, é importante refletir sobre a extensão desse fenômeno e suas consequências na proteção dos direitos sociais.

2. A terceirização: fato da gestão e fenômeno do Direito do Trabalho

A globalização, ao trazer a intensificação da expansão do mercado, concentrou seu poder no viés econômico, no mercado. Disso advieram mudanças políticas, econômicas e sociais que, no campo das relações trabalhistas, implicaram a proposta de alteração das relações de trabalho, retirando a nitidez e clareza do seu conteúdo definido no Direito do Trabalho Clássico para dar lugar a formas imprecisas de trabalho, além de modelos atípicos de contrato de trabalho. O agigantamento do significado do mercado acentuou o foco sobre a empresa e a produtividade, ao mesmo tempo em que relegava o trabalhador dos mais variados segmentos e categorias profissionais à precarie-dade da proteção social, embora a esse papel coadjuvante tenha sido dada a denominação ilusória de colaborador.

Ligada ao toyotismo e fundada na economia e no mercado, essa ordem laboral trouxe a relativização das relações e de seus sujeitos, sob o signo da fragmentação e da multiplicidade.

O Estado de Bem-Estar diminui seu papel e se torna residual e limitado a garantir aos cidadãos direitos sociais de intensidade protetora mínima, em termos quantitativos e qualitativos, o que afeta a cidadania social dentro do Estado Social1.

Seguindo essas modificações, um outro Direito do Trabalho passou a ser configurado no qual se destaca a perversa divisão entre os cada vez menos frequentes contratos com uma carga de proteção social para os trabalhadores e os contratos em que há proteção mínima.

A flexibilização laboral representa a mudança do centro protetor institucional e do fundamento do Direito do Trabalho para nele entronizar o mercado, a economia e os empregadores que se tornam politicamente mais fortes, em um contexto de desemprego massivo2. É a negação do princípio de que o trabalho não é mercadoria, princípio fundante do Direito do Trabalho. Como destaca Fábio Túlio Barroso3, para a filosofia neoliberal os princípios do Direito do Trabalho estão ultrapassados e o trabalho não difere de outras mercadorias, tratado segundo os princípios da autonomia da vontade e da liberdade contratual.

Esse foi o caminho trilhado para instalar contratos trabalhistas de curta duração e contratos civis em que o objeto é a prestação de serviços, entrelançando na relação Direito do Trabalho e Direito Civil mediante a técnica de gestão administrativa da terceirização, que serão examinadas, a seguir.

No Brasil, no momento inicial, ocorre a previsão da contratação do trabalho temporário, dada pela Lei n. 6.019, de 3 de janeiro de 1974, que atrelava essa modalidade a necessidades transitórias ou fatos temporários, no âmbito da empresa. Antes dela e com a finalidade de atender à necessidade de segurança em instituições bancárias, fora editado o Decreto-lei n. 1.034, de 21 de outubro de 1969, que, por sua vez, deu início às empresas de segurança e vigilância patrimonial.

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A intensificação das mudanças se situa, porém, a partir dos anos 90, quando as empresas adotaram um conjunto de inovações administrativas para enfrentarem a concorrência e reforçarem seu desempenho econômico. Como registra Barroso4, pouco a pouco, criaram-se novas espécies de contratos, na tendência de desfigurar a regra de permanência dos contratos de trabalho, que levara à construção da estabilidade. Com a instituição do regime do FGTS, desde 1967 a estabilidade no emprego e, portanto, a manutenção do seu contrato de trabalho com a empresa, fora fragilizada, e sua extinção como instituto de aplicação geral, ocorreu em 1988, quando a Constituição da República estabeleceu, no art. 7º, III, o fundo de garantia do tempo de serviço como direito dos trabalhadores.

O padrão de transitoriedade que passou a caracterizar a sociedade também foi instaurado no mundo do trabalho, mediante as relações trabalhistas temporárias. São modelos que fragmentam o trabalho e os trabalhadores, uma vez que eles podem ser contratados sob diferentes formas e distribuídos em diferentes momentos, segundo as necessidades da empresa. Essas mudanças na legislação trabalhista brasileira com a criação de situações paralelas tem sua feição mais visível e clara, na terceirização dos serviços, na qual se tem um trabalho precário, e um trabalhador periférico, de pouca qualificação ou multifuncional5.

Para Catharino6, a terceirização, entre as sequelas do neoliberalismo, é o fenômeno que dele recebeu menor influência, por ser muito antigo, na história do Direito do Trabalho, localizando-se em institutos tradicionais como a subempreitada e o trabalho a domicílio. No entanto, ela se apresentou no cenário das relações trabalhistas como um fenômeno novo porque, no toyotismo, lhe foi conferido um papel relevante.

Como estrutura da prática funcional, a flexibilidade laboral pode adotar o modelo da flexibilidade interna ou da flexibilidade externa. Na flexibilidade externa, inserem-se os procedimentos que afetam indiretamente a configuração da relação de emprego, mediante a adoção de contratos comerciais e civis e de subcontratos, dentre outros. Como explica Barroso7, a flexibilização, nesses contratos, leva à descaracterização do modelo-padrão de relação de trabalho e instaura relações indiretas de trabalho, mediante as subcontratações e a intermediação de empresas. Na flexibilidade interna, são contados os trabalhadores terceirizados que, sendo empregados de outras empresas, as empresas de prestação de serviços ou as empresas de trabalho temporário, passam a trabalhar dentro da empresa contratante, na terceirizante.

Há, dessa maneira, uma relação triangular, em que figuram a empresa e a prestadora de serviços, ligadas por um contrato civil, ou administrativo, e o trabalhador vinculado por um contrato trabalhista à prestadora de serviços. Mesmo com a distinção da natureza dos contratos, pode-se ver que o trabalhador é o elo entre eles, pois é para o serviço que ele executa que se volta a finalidade do ajuste empresarial. Esse ajuste pode adotar a fórmula direta, em que o trabalhador constitui uma empresa, entre as quais as empresas de prestação de serviços intelectuais, para prestar serviços que já executava no âmbito da contratante, ou para estabelecer um contrato civil com uma empresa; ou a fórmula indireta, em que há contratação de uma empresa terceirizante, à qual se vinculam formal-mente os trabalhadores.

A terceirização é um dos procedimentos mais evidentes da transformação havida nas relações de produção com a introdução do conceito da empresa em rede; ela insere também a modificação do Direito do Trabalho, por meio da flexibilização que, por sua vez, surgira para a reestruturação das relações de trabalho.

No contrato de trabalho temporário, expressão inicial de terceirização, tem-se um contrato previsto em lei trabalhista, na qual também são definidos os direitos desses trabalhadores, enquanto, nos novos casos, é adotado um contrato de direito civil, a prestação de serviços que se passa exclusivamente entre as empresas. Por meio desse procedimento, a empresa transfere parte de sua atividade produtiva, como setores ou seções, a outras empresas, suas parceiras, ou leva para suas dependências para, ali, prestarem certos serviços, trabalhadores vinculados a outras empresas.

A terceirização ocorre, portanto, sob duas modalidades: externa e interna e, como forma contratual de realização dos serviços destinados à empresa, se apresenta, ora como meio destinado à obtenção de serviços periféricos que contribuem para a atividade, ora como meio identificado com as atividades da empresa correspondendo à realização de seus fins. Daí, a distinção entre atividades-fim e atividades-meio de que se cuidará a seguir.

3. A terceirização entre atividade-fim e atividade-meio

O aspecto mais debatido na terceirização é a distinção entre atividade-fim e atividade-meio, porque tem como

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consequência os limites dessa contratação, refletidos na licitude ou ilicitude do procedimento. Essa distinção foi eriçada a partir do texto da Súmula n. 331, cujo item III se refere à terceirizaçãoem atividade-meio: III - Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei n. 7.102, de 20.6.1983) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta.

A terceirização teve como marco legislativo inicial a Lei n. 6.019, de...

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