Terceirização: o perverso discurso do mal menor

AutorValdete Souto Severo
CargoJuíza do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região. Especialista em Processo Civil pela UNISINOS
Páginas170-188

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1. Introdução: compreendendo a terceirização e a atualidade da discussão acerca da necessidade ou não de regulamentá-la

O tema da terceirização retornou ao cenário político, quando a atual composição da Câmara dos Deputados - a mais conservadora desde 1964, segundo o DIAP1 - desarquivou projeto proposto pelo Deputado Sandro Mabel em 2004, que "regulamenta" e amplia as hipóteses de terceirização nas relações de trabalho. O projeto, em realidade, tramitou em 2011 e 2013 e apenas não foi aprovado em razão da forte reação de setores organizados da sociedade, como a magistratura do trabalho e o Movimento de Humanos Direitos2.

Segundo o DIEESE, existiam cerca de 12,7 milhões de trabalhadores terceirizados em 20103, número que certamente já aumentou e que seguramente não contempla as crianças e adolescentes que também trabalham informalmente como terceirizados ou mesmo os trabalhadores que, em tal condição, estão sujeitos à situação de escravidão. São números modestos, portanto.

A terceirização não é algo novo. Ao contrário do que nos dizem, Marx já referia-se à prática comum de introdução de "atravessadores" na relação entre capital e trabalho, denunciando a precarização e a maximização da exploração do trabalho, que provoca. Atualmente, a terceirização é dei nida como uma técnica empresarial que promove o "enxugamento" da empresa, mediante o repasse de parte das atividades. Segundo o senso comum, trata-se de um caminho sem volta. Na realidade, porém, a terceirização é uma máscara. O vínculo de trabalho segue sendo exatamente o mesmo. As fórmulas (tomador dos serviços; empresa cliente; prestadora; terceirizados) não conseguem alterar essa realidade: a empresa prestadora (melhor seria dizer empresa loca-dora) não passa de uma "intrusa na relação de emprego, mera intermediária da mão de obra, enquanto a suposta "tomadora" é o verdadeiro empregador, que aparece "mascarado de ‘empresa cliente’"4.

O metabolismo da sociedade capitalista consiste na produção - circulação - produção de mercadorias, num círculo perene, cujo objetivo central é a acumulação. O volume da acumulação do capital, sua possibilidade de reprodução e expansão, está diretamente relacionado ao grau de exploração da força de trabalho e à força produtiva do trabalho, ou seja, à reunião dos trabalhadores para que, somando esforços, produzam mais e melhor do que fariam individualmente. Em outras palavras, o trabalho coletivo torna-se importante para potencializar a acumulação de capital justamente porque se trata de um conjunto de forças de trabalho exploradas pelo mesmo capital, que lucra mais com a conjunção dessas forças individuais dos trabalhadores, do que

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se explorasse cada um deles, individualmente. Pois bem, o fenômeno da terceirização não elimina o trabalho coletivo.

A força produtiva social continua sendo explorada de forma conjunta, embora pulverizada em vários ambientes, sob contornos jurídicos diversos. A terceirização corresponde, portanto, a uma forma complexa de cooperação, que reorganiza o trabalho coletivo, sem mudar-lhe as características5. Dentro do processo de trabalho, sequer se sustenta a divisão em atividade-i m ou atividade-meio, que o projeto de lei discute, na medida em que é justamente a congregação de todas as atividades necessárias à consecução do empreendimento que o torna não apenas viável, mas lucrativo. Tanto a limpeza e a conservação, quanto a vigilância, a montagem, a sistematização tecnológica: todas as tarefas que se fazem necessárias à realização de um produto ou serviço formam a empresa.

Marx observou, já em meados do século XIX, que ao estabelecer um local para o trabalho já foi possível pensar a interposição de sujeitos, ora para lucrar com o capitalista, ora para ser explorado com o trabalhador. O fracionamento das atividades, especialmente com a introdução das máquinas no ambiente de trabalho, facilitou a exploração da força de trabalho mais barata (feminina e infantil), a ampliação da quantidade produzida em detrimento da qualidade e a alteração da própria coni guração da exploração capitalista. O trabalho domiciliar "se converteu no departamento externo da fábrica, da manufatura ou da grande loja"6.

Em outra obra, concluída em 1866, Marx já se referia à transferência da função despótica de supervisão direta e contínua dos trabalhadores para "uma espécie particular de assalariados":

Do mesmo modo que o exército necessita de oi ciais militares, uma massa de trabalhadores que coopera sob o comando do mesmo capital necessita de oi ciais (dirigentes, gerentes) e suboi ciais (...) que exerçam o comando durante o processo de trabalho em nome do capital (...) O capitalista não é capitalista por ser diretor da indústria; ao contrário, ele se torna chefe da indústria por ser capitalista.7

É claro que hoje o quadro não é exatamente o mesmo, pois a história se repete num movimento contínuo de recuos e evoluções, sem jamais se repetir integralmente. Hoje, a presença de atravessadores na exploração da força de trabalho é bem mais complexa. Em Brasília, num estudo de campo recente que i zemos em nome do grupo de pesquisa Trabalho e Capital, da USP, pudemos entrevistar pessoas que trabalham há muitos anos no Ministério da Justiça, no STF ou no TST, como terceirizados. Já "passaram" por várias prestadoras de serviços. Essas pessoas estão há anos sem tirar férias, porque quando muda a empresa presta-dora, "zera" o contrato. A remuneração volta a ser a inicial e o tempo de serviço volta a ser contado do início. O resultado desse trabalho está no vídeo "Terceirizado, um trabalhador brasileiro", disponível na internet8.

O fato é que a prática da locação de força de trabalho foi coibida, tanto em nível mundial quanto no Brasil, em razão dos efeitos perversos que gera, não apenas para o trabalhador, mas para a própria comunidade9.

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A volta do atravessador na relação entre capital e trabalho no Brasil é identificada com Decreto n. 200, de 1967, que estabelece a "descentralização" como princípio, a ser executado da Administração Federal para a órbita privada, mediante contratos ou concessões10.

Portanto, já na década de 1960 verificou-se o repasse de atividades para terceiros, afetando de forma especial alguns setores que, não por acaso, constituíam-se como categorias proi ssionais organizadas, como é o caso dos servidores públicos e dos bancários.

O Poder Judiciário Trabalhista resistiu a essas involuções. Em 1986, o TST consolidou jurisprudência acolhendo apenas de forma excepcional a terceirização, nas hipóteses expressamente previstas em lei (Enunciado n. 256). Em 1993, porém, esse entendimento foi alterado, permitindo a terceirização sem qualquer autorização legal, em atividades de conservação e limpeza e nos serviços especializados ligados à atividade-meio11.

A súmula admitiu a "quebra" da espinha dorsal do Direito do Trabalho, na medida em que regulou a interposição de terceiro numa relação social que é claramente formada por duas partes: o capital e o trabalho. Desse momento em diante, os metalúrgicos, os professores, os vendedores, os motoristas, os instaladores, os comerciários, e tantas outras categorias proi ssionais organizadas, foram sendo predatoriamente desarticuladas, perderam direitos e identidade de classe.

A distinção arbitrária, criada pela Súmula n. 331 do TST, entre atividade-meio e atividade-i m, além de não ter amparo no ordenamento jurídico, mal esconde os seguintes fatos: a) a terceirização já invadiu as chamadas "atividades-fim", havendo decisões que chancelam a contratação de terceirizado para prestar serviços de motorista em empresa de transporte, professor em escola, vendedor em loja, apenas para citar alguns exemplos; b) a terceirização na atividade-meio é igualmente nociva e precarizante, pois os efeitos individuais e sociais desse repasse de força de trabalho em nada se alteram, numa e noutra modalidade de terceirização; c) seguir considerando o critério ilegal da Súmula n. 331, quando diferencia atividade-meio e atividade-i m, implica chancelar a intermediação de força de trabalho e todos os seus efeitos deletérios, justamente para os trabalhadores que mais sofrem com esse processo de precarização, notadamente os empregados em serviço de limpeza e conservação, telemarketing e segurança.

A partir de então, estava iniciado o movimento que culmina hoje na tentativa de regulamentação e ampliação dessa forma de intermediação de força de trabalho. O que precisamos perceber é que o desarquivamento do projeto de lei sobre a terceirização não aparece como algo isolado no cenário político. Ao contrário, é acompanhado de decisões recentemente proferidas pelo STF, ampliando as possibilidades

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de atravessamento da força de trabalho, como a ADI n. 192312, ou sobrestando o andamento de demandas que discutem terceirização na atividade-i m, como na liminar proferida no ARE n. 791.93213.

O próprio governo federal, embora eleito em razão da promessa de garantir as conquistas históricas dos trabalhadores, apresenta como um de seus primeiros atos a edição de duas medidas provisórias (664 e 665) que retiram direitos trabalhistas.

O Congresso, por sua vez, revela sua ânsia neoliberal, aprovando projetos como o PL n. 3.842/2012 que altera o conceito de trabalho em condição análoga à de escravo (retirando as expressões "jornadas exaustivas" e "condições degradantes de trabalho") e...

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