A terceirização e a perspectiva de uma 'regulamentação'

AutorMaria do Perpétuo Socorro Wanderley de Castro
Ocupação do AutorProfessora
Páginas127-176

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6.1. Antecedentes da súmula n 331 do tribunal superior do trabalho

Os direitos sociais trabalhistas sofreram forte impacto com a globalização e modificação do processo produtivo, haja vista a alteração das estruturas sociais e econômicas que daí decorreram. A terceirização se apresenta como um fenômeno integrante do movimento de flexibilização das relações de trabalho, e não tem, ainda, no Brasil, regulamentação legal, por meio da qual sejam estabelecidos ou assegurados os direitos dos trabalhadores, que são em número cada vez maior nela envolvidos.

A ausência de regulação tornou essa forma de contratação um tema aberto, pois não se pode resumir à existência das normas trabalhistas para disciplinar o contrato de trabalho, a normatização dessa relação, que trouxe alteração de um conceito central no contrato de trabalho, a subordinação. A questão passou a ser enfrentada na jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho: primeiro, no Enunciado n. 256, que vedava, na prática, a terceirização, o que, depois, foi revisto com o Enunciado n. 331 em 1993.

Em 1986, ao editar o Enunciado n. 256,1 o Tribunal Superior do Trabalho adotou entendimento sobre a terceirização, afirmando a consideração estrita

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das hipóteses reguladas em lei, e da ilegalidade de contratação em outras atividades. Esse verbete surgiu do Incidente de Uniformização de Jurisprudência no RR-3442/84, e os fundamentos adotados na decisão consistiram em que a ordem econômica e social tem o objetivo de realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social, segundo a valorização do trabalho como condição de dignidade da pessoa humana e a expansão das oportunidades de emprego. Foram destacados que a contratação de mão de obra permanente vai de encontro aos direitos básicos que visam a evitar o enriquecimento sem causa à custa do hipossuficiente, e que a prestadora de serviços, como apenas repassa o salário ao empregado, sem se apropriar ou beneficiar do resultado do trabalho, ou mesmo assumir os riscos da atividade econômica para a qual concorre o serviço desenvolvido, não se coaduna com a ordem jurídico trabalhista.2O Enunciado n. 256 foi uma diretriz restritiva à terceirização, pois nele a contratação de prestação de serviços surgia como exceção. Todavia, no entendimento de Sérgio Pinto Martins,3 as hipóteses arroladas nessa Súmula eram meramente exemplificativas, por não haver norma legal proibindo o trabalho de empresas prestadoras de serviços e em razão do princípio da igualdade, pois, tendo sido consideradas regulares a prestação de serviços temporários e de vigilância, também o seria a prestação de serviços de limpeza.

A revisão do entendimento expresso no verbete ocorreu em 1993, com a adoção do Enunciado n. 331, no qual foi incorporado o verbete anterior, contudo, havendo a inflexão da orientação ali presente.

Segundo Zéu Palmeira Sobrinho,4 esse verbete que é hoje a Súmula n. 331, TST concorreu para a disseminação da prática da terceirização, pois admitiu sua adoção nos serviços vinculados à atividade-meio da empresa. Assim, instalou-se a discussão e distinção entre “atividade-meio” e “atividade-fim”,5 a qual é vulnerável, pela impossibilidade de uma clara e precisa distinção entre os atos desti-

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nados a uma e outra, pois alguns atos simples, embora diferentes, são necessários à produção, e muitas atividades, como a manutenção de máquinas, constituem antecedentes lógicos do processo produtivo. Esse aspecto suscita dificuldades, que são enfatizadas em opiniões como a de Palmeira,6 ao apontar a dificuldade da separação entre meio e fim dentro da fragmentação de atos do trabalhador inerentes ao momento da produção, e de Luiz Carlos Amorim Robortella7 ao sustentar o cabimento da terceirização em qualquer ciclo do processo produtivo, argumentando que a mudança das técnicas de produção pode tornar acessória uma atividade que antes era principal e integrante da finalidade central da empresa.

Essa distinção, tão questionada, encontra seu fundamento no toyotismo e na teoria do foco, por ele adotada, em razão da qual a empresa central ou principal concentra suas funções naquilo que é a expressão nuclear de sua atividade, horizontalizando entre outras empresas as outras atividades, tidas por periféricas ou auxiliares, as quais, por sua vez, são principais para essas empresas horizontalizadas.

Com a análise e a cristalização de entendimento da Corte Superior sobre o procedimento da terceirização, houve o reconhecimento de sua validade, sob determinado parâmetro, o que conferiu não apenas visibilidade jurídica à prática administrativa, como aquietou as indagações sobre a regularidade de sua adoção e traçou uma linha demarcatória para os procedimentos legais e ilegais.8

6.2. O papel político da súmula n 331 Do tribunal superior do trabalho
6.2.1. O ativismo judicial

Importa, na abordagem do tema da judicialização da terceirização, tratar do conceito de ativismo judicial, distinguindo-o de juridicização da política. Esta corresponde à expansão do Poder Judiciário ou dos meios judiciais, especialmente quanto ao poder de revisão judiciária das ações do Legislativo e do Executivo;9 o outro é o reconhecimento do papel de destaque do Poder Judiciário na implementação dos valores da Constituição.10 Ambos têm como ponto de partida a reflexão sobre o Estado e a força da Constituição.

O neoconstitucionalismo, como um conjunto de transformações ocorridas no Estado com a afirmação da força normativa da Constituição e a concentração da ordem jurídica no Direito Constitucional, ingressou no Brasil com a Constituição

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da República de 1988. De início, firmou-se a tese do constitucionalismo brasileiro de efetividade que foi seguida pela do pós-positivismo constitucional cujas teorias jurídicas estavam expostas nas obras-marco “Curso de Direito Constitucional”, de Paulo Bonavides na 5. ed. e “A Ordem Econômica na Constituição de 1988”, de Eros Roberto Grau.11As novas ideias tiveram grande repercussão na jurisprudência brasileira, especialmente do Supremo Tribunal Federal, levando, entre outros exemplos, à alteração do entendimento da Corte sobre os direitos sociais e os efeitos do mandado de injunção e à formulação de sentenças normativas e aditivas.12Um dos traços que caracterizam o neoconstitucionalismo é o foco no Poder Judiciário, o que tornou o juiz seu grande protagonista.13 Isso ocorreu em países centrais e periféricos, introduzindo uma nova lógica democrática. No Brasil, a Constituição de 1998, alinhada a esse movimento em que a igualdade e a dignidade da pessoa humana se tornam centrais e são valores que pautam as esferas da vida social, fez surgir novos direitos e novos titulares deles; isso se refletiu também em judicialização da sociedade brasileira.

Anteriormente, a Justiça do Trabalho já tinha esse perfil, mas a nova filosofia constitucional impôs uma renovação, ao solidificar sua função de escoadouro das pretensões dos grupos afetados pelas reformas da legislação trabalhista e pelas relações de produção em anomia. A proteção dos direitos dos trabalhadores passa a ser demandada com base em princípios constitucionais.14No entender de Luis Roberto Barroso,15 a ascensão institucional do Poder Judiciário é importante, pois os juízes e tribunais passam a desempenhar um papel político que acarreta a modificação substantiva da relação entre a sociedade e as instituições judiciárias.

Trata-se, para Gisele Cittadino,16 de um tipo inédito de espaço público, pois a juridificação, tendo como base o compromisso com os valores democráticos e

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os princípios e objetivos da República, representa uma forma de os cidadãos, de o homem comum participar do processo político lançando-o mais além da produção legislativa para mirar sua efetivação e a transformação da sociedade. No ponto, acrescenta-se que Daniel Sarmento17 adverte que a ênfase no espaço judicial pode resultar no apagamento de outras esferas, na definição do sentido da Constituição, inclusive a esfera pública informal e a mobilização social. A ideia de o Judiciário constituir um novo espaço público mostra-se adequada à sociedade brasileira, pelo desencanto de que ela padece ante o descumprimento das promessas democráticas e da concretização dos direitos, notadamente econômicos e sociais, estabelecidos na Constituição de 1988, e não regulamentados.

A contestação do viés judicialista18 imputa à juridicização, um caráter anti-democrático, porque os juízes não são eleitos pelo povo, mas a abertura existente em normas constitucionais importantes confere ao juiz, na interpretação delas, uma participação no processo de sua criação. O tema gera um debate universal, diz Luis Roberto Barroso,19 que aponta a pertinência da consideração da existência de outros princípios, além do princípio majoritário, pois a lógica democrática se inspira em valores e o Judiciário pode promovê-los e resguardá-los, assegurando, também, a estabilidade institucional.

Contrariamente ao ativismo judicial, é também invocado o princípio da separação dos poderes. Todavia, não se pode atribuir um caráter de absoluta distinção e de...

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