A teoria geral das obrigações na sistemática brasileira

AutorGisele Leite
CargoMestre em Direito (UFRJ) Doutora em Direito (USP)
Páginas36-41

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Dever jurídico é conceito amplo onde se encontra inserido o conceito de obrigação. Francisco Amaral ensina que o dever jurídico se contrapõe ao direito subjetivo, sendo o primeiro constituído de uma situação passiva que se caracteriza pela necessidade de o devedor observar certo comportamento compatível com o interesse do titular do direito subjetivo.

O dever jurídico é comando imposto pelo direito objetivo e dirigido a todas as pessoas para observarem certa conduta, sob pena de receberem uma sanção pelo não cumprimento do comportamento prescrito pela norma jurídica.

O dever jurídico abrange não apenas o direito obrigacional ou de direito pessoal, mas também aqueles de natureza real, relacionados com o direito das coisas1, o direito de família, sucessões, o direito de empresa e os direitos de personalidade.

Pela doutrina tradicional a obrigação2 é uma relação jurídica, do lado passivo do direito subjetivo, consistindo no dever jurídico de observar certo comportamento exigível pelo titular deste. E que tem como característica ser transitória, o que às vezes não é observado no dever jurídico.

A relação jurídica obrigacional não é integrada por qualquer espécie de direito subjetivo. Somente aqueles dotados de conteúdo econômico (direitos de crédito3), passíveis de circulação jurídica, poderão participar de relações obrigacionais, o que descarta, de plano, os direitos da personalidade.

Como bem ressaltam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, no mundo contemporâneo a estrutura da obrigação apresenta-se marcada por grandes desigualdades sociais e jurídicas, tendo o direito o primado de lutar e garantir o império da igualdade e da dignidade humana, além de servir de mecanismo para a efetivação dos direitos sociais já previstos constitucionalmente.

Também as relações obrigações não fogem à incidência da legali-dade constitucional, exigindo-se que estejam sintonizadas com a valorização da cidadania. Portanto, a obrigação é vista como um processo, ou seja, uma série de atividades exigidas de ambas as partes para a consecução de uma finalidade, que é o adimplemento, evitando-se os danos de uma parte à outra nessa trajetória, de forma que o cumprimento se faça da forma mais satisfatória ao credor e ao mesmo tempo menos onerosa ao devedor.

Desta forma, nessa ótica dinâ-mica da obrigação há o reconhecimento e imposição de outros deveres às partes, além daqueles tradicionalmente descritos pela vontade e com o fito de permitir que a relação alcance seu término natural e normal, preservando-se a liber-dade dos parceiros, impedindo-se, assim, que no curso da relação jurídico um sujeito seja reificado pela superioridade econômica do outro.

Portanto, o conceito da obrigação como um processo enfatiza a noção de pluralidade, aduzindo à dinâmica da relação jurídica e ins-

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tituindo a relação de cooperação entre as partes.

O direito das obrigações exerce notável influência na vida econô-mica, principalmente em face da alta frequência das relações jurídicas obrigacionais no mundo consumerista.

É através das relações obrigacionais que se estrutura o regime econômico, retratando a estrutura econômica social e traduzindo as projeções da autonomia privada na esfera patrimonial.

Com razão lecionou Josserand4 ao aludir que a teoria das obrigações situa-se na base, não somente do direito civil, mas de todo o direito, não sendo exagero afirmar que o conceito de obrigação constitui a armadura e o substractum do direito, e mesmo, de um modo mais geral, de todas as ciências sociais (In: Josserand, Louis, Cours de droit civil positif français, v. 2, p. 2).

Os direitos obrigacionais ou ius ad rem diferem em linhas gerais dos direitos reais ou ius in rem, vejamos:
a) quanto ao objeto, posto que exijam o cumprimento de determinada prestação, ao passo que estes incidam sobre uma coisa;
b) quanto ao sujeito, porque o sujeito passivo é determinado ou determinável, enquanto nos direitos reais é indeterminado (são todas as pessoas do universo que devem abster-se de molestar o titular). De acordo com a escola clássica, o direito real não apresenta apenas dois elementos: de um lado, uma pessoa, sujeito ativo de um direito, e de outro, uma coisa, objeto desse direito.

Para a teoria personalista e anticlássica, o direito real não passa de uma obrigação passiva universal. Coube a Planiol opor-se à bizarra concepção e sustentou a inviabilidade da afirmação que concebia uma relação entre a pessoa e coisa.

A relação jurídica é sempre entre duas pessoas, entre dois sujeitos, o ativo e o passivo. Desta forma, nunca poderia haver entre pessoa e coisa. Foi também Planiol que alertou que no direito real há uma obrigação passiva universal, uma obrigação de abstenção de todas as pessoas.

Assim, analisando a relação jurídica em si, o poder jurídico é exercitável diretamente contra os bens e coisas em geral, independentemente da participação de um sujeito passivo.

No fundo, a abstenção coletiva5 não representa a verdadeira essência do direito real, senão apenas uma simples consequência do poder direto e imediato do titular do direito sobre a coisa;
c) quanto à duração, posto que sejam transitórios e se extinguem pelo cumprimento ou por outros meios, enquanto que os direitos reais são perpétuos, não se extinguindo pelo não uso, mas somente nos casos expressos em lei (desapropriação, usucapião em favor de terceiro etc.);
d) quanto à formação, posto que possam resultar da vontade das partes, sendo ilimitado o número de contratos inominados (numerus apertus) ao passo que os direitos reais só podem ser criados por lei, tendo seu número limitado e regulado por esta, daí, chamá-los de numerus clausus;
e) quanto ao exercício, porque exigem uma figura intermediária, que é o devedor, ao passo que os direitos reais são exercidos diretamente sobre a coisa sem necessi-dade da existência de um sujeito passivo, que pode existir apenas potencialmente;
f) quanto à ação, que é dirigida somente contra quem figure na relação jurídica como sujeito passivo (ação pessoal), ao passo que a ação real pode ser exercida contra quem quer que detenha a coisa.

É certo, porém, que por vezes os direitos de crédito tenham certos atributos próprios e peculiares dos direitos reais, como acontece com certos direitos obrigacionais que facultam o gozo da coisa, os chamados direitos pessoais de gozo: os direitos do locatário e os do comodatário, por exemplo.

Assim, de um lado a lei atribui eficácia real a certos contratos, que normalmente são constitutivos de simples direitos de crédito, conforme estabelece o direito do promitente comprador ou o direito de preferência presente no contrato de locação e deferido ao locatário.

Ônus jurídico é definido pela necessidade de observar deter-minado comportamento para a obtenção ou conservação de uma vantagem para o próprio sujeito e não para a satisfação de interesses alheios.

Um típico exemplo é o ônus processual presente no art. 333, I, do CPC, de provar o que se alega.

Então, a obrigação visa obter comportamento para satisfazer interesse do titular do direito subjetivo, ao passo que o ônus satisfaz o próprio interesse do agente. A lei não o impõe, apenas faculta.

Segundo Orlando Gomes, o ônus jurídico é a necessidade de agir de certo modo para a tutela de interesses próprios. O não atendimento do ônus gera consequências apenas para a parte que não o atendeu. Outro exemplo: levar um imóvel a registro.

Direito potestativo6 é o poder que a pessoa tem de influir na esfera jurídica de outrem, sem que este possa fazer algo para não se sujeitar.

Na obrigação a sanção é estabelecida para a tutela de interesse alheio, já na sujeição quem não

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observar o comportamento deter-minado (não se cogita em sanção) suporta os efeitos da vontade do titular do direito.

Exemplificando: quem ajusta contrato por prazo indeterminado está sujeito a vê-lo denunciado a qualquer momento pelo outro contratante; quem recebe o mandato se subordina à vontade do mandante de cassar a outorga a qualquer momento; o condômino
se sujeita à pretensão de divisão de
qualquer dos outros comunheiros.

O estado de sujeição, por sua vez, constitui um poder jurídico do titular do direito (por isso é denominado potestativo) não havendo correspondência a qualquer outro dever.

Resumindo, diferem substancialmente entre si os direitos subjetivos dos chamados direitos potestativos, eis que àqueles contrapõe-se um dever enquanto a estes correspondem apenas ao estado de sujeição.

A propósito, a prescrição está relacionada com os direitos subjetivos, logo está relacionada também com o dever, com a obrigação e a correspondente responsabilidade7. Desta forma, atinge as ações condenatórias (tais como ações de cobrança e de reparação civil).

Atinge, pois, a pretensão condenatória e executória. Por outro lado, a decadência está relacionada com os direitos potestativos, e nesses casos, haverá estado de sujeição. Por essa razão, relaciona-se às ações constitutivas positivas e negativas (um bom...

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