Teoria geral do controle de convencionalidade no direito brasileiro

AutorValerio de Oliveira Mazzuoli
CargoMestre em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade Estadual Paulista (UNESP) &#x2013;<i> campus</i> de Franca. Professor de Direito Internacional P&uacute;blico e Direitos Humanos na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).
Páginas235-275

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Introdução

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O tema deste ensaio é inédito no Brasil. Seu aparecimento se deu entre nós a partir da entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004. Mas até o presente momento – passados mais de quatro anos dessa alteração constitucional – nenhum jurista pátrio chegou a desenvolvê-lo. Sequer um autor brasileiro (constitucionalista ou internacionalista) percebeu, até o presente momento, a amplitude e a importância dessa nova temática, capaz de modificar todo o sistema de controle no direito brasileiro. Versamos ineditamente o assunto no Capítulo II, Seção II, da nossa Tese de Doutorado na UFRGS,2 cuja síntese vem agora estampada nas linhas que seguem.

A novidade que este estudo apresenta diz respeito à possibilidade de se proceder à compatibilização vertical das leis (ou dos atos normativos do Poder Público) não só tendo como parâmetro de controle a Constituição, mas também os tratados internacionais (notadamente os de direitos humanos, mas não só eles) ratificados pelo governo e em vigor no país.

1 O controle de convencionalidade brasileiro e a teoria da dupla compatibilidade vertical material

É bem sabido que a Emenda Constitucional nº 45/04, que acrescentou o § 3º ao art. 5º da Constituição, trouxe a possibilidade dos tratados internacionais de direitos humanos serem aprovados com um quorum qualificado, a fim de passarem (desde que ratificados e em vigor no plano internacional) de um status materialmente constitucional para a condição (formal) de tratados “equivalentes às emendas constitucionais”.3 Tal acréscimo constitucional trouxe ao direito brasileiro um novo tipo de controle à produção normativa doméstica, até hoje desconhecido entre nós: o controle de convencionalidade das leis. À medida que os tratados de direitos humanos ou são materialmente constitucionais (art. 5º, § 2º) ou material e formalmente constitucionais (art. 5º, § 3º),4 é lícito entender que, paraPage 237além do clássico “controle de constitucionalidade”, deve ainda existir (doravante) um “controle de convencionalidade” das leis, que é a compatibilização da produção normativa doméstica com os tratados de direitos humanos ratificados pelo governo e em vigor no país.

Em outras palavras, se os tratados de direitos humanos têm “status de norma constitucional”, nos termos do art. 5º, § 2º da Constituição, ou se são “equivalentes às emendas constitucionais”, posto que aprovados pela maioria qualificada prevista no art. 5º, § 3º da mesma Carta, significa que podem eles ser paradigma de controle das normas infraconstitucionais no Brasil.5 Ocorre que os tratados internacionais comuns (que versam temas alheios aos direitos humanos) também têm status superior ao das leis internas.6 Se bem que não equiparados às normas constitucionais, os instrumentos convencionais comuns têm status supralegal no Brasil, posto não poderem ser revogados por lei interna posterior, como estão a demonstrar vários dispositivos da própria legislação infraconstitucional brasileira, dentre eles o art. 98 do Código Tributário Nacional.7Neste último caso, tais tratados (comuns) também servem de paradigma ao controle das normas infraconstitucionais, posto estarem situados acima delas, com a única diferença (em relação aos tratados de direitos humanos) que não servirão de paradigma do controle de convencionalidade (expressão reservada aos tratados com nível constitucional), mas do controle de legalidade das normas infraconstitucionais.

Isto tudo somado demonstra que, doravante, todas as normas infraconstitucionais que vierem a ser produzidas no país devem, para a análise de sua compatibilidade com o sistema do atual Estado Constitucional e Humanista de Direito, passar por dois níveis de aprovação: (1) a Constituição e os tratados de direitos humanos (material ou formalmente constitucionais) ratificados pelo Estado; e (2) os tratados internacionais comuns também ratificados e em vigor no país. No primeiro caso, tem-se o controle de convencionalidade das leis; e no segundo, o seu controle de legalidade.

Este estudo tem por finalidade analisar esta nova teoria, segundo a qual as normas domésticas também se sujeitam a um controle de convencionalidade (compatibilidade vertical do direito doméstico com os tratados de direitos humanosPage 238em vigor no país) e de legalidade (compatibilidade vertical do direito doméstico com os tratados comuns em vigor no país), para além do clássico e já bem conhecido controle de constitucionalidade. Frise-se que ênfase especial será dada ao primeiro novo tipo de controle referido: o controle de convencionalidade das leis.

A primeira ideia a fixar-se, para o correto entendimento do que doravante será exposto, é a de que a compatibilidade da lei com o texto constitucional não mais lhe garante validade no plano do direito interno. Para tal, deve a lei ser compatível com a Constituição e com os tratados internacionais (de direitos humanos e comuns) ratificados pelo governo. Caso a norma esteja de acordo com a Constituição, mas não com eventual tratado já ratificado e em vigor no plano interno, poderá ela ser até considerada vigente (pois, repita-se, está de acordo com o texto constitucional e não poderia ser de outra forma) – e ainda continuará perambulando nos compêndios legislativos publicados –, mas não poderá ser tida como válida, por não ter passado imune a um dos limites verticais materiais agora existentes: os tratados internacionais em vigor no plano interno. Ou seja, a incompatibilidade da produção normativa doméstica com os tratados internacionais em vigor no plano interno (ainda que tudo seja compatível com a Constituição) torna inválidas8 as normas jurídicas de direito interno.

Como se sabe, a dogmática positivista clássica confundia vigência com a validade da norma jurídica. Kelsen já dizia que uma norma vigente é válida e aceitava o mesmo reverso, de que uma norma válida é também vigente: em certo momento falava em “uma ‘norma válida’ (‘vigente’)” e, em outro, na “vigência (validade) de uma norma”.9 Porém, na perspectiva do Estado Constitucional e Humanista de Direito esse panorama muda, e nem toda norma vigente deverá ser tida como válida. Não são poucos os autores atuais que rechaçam a concepção positivista legalista de vigência e validade das normas jurídicas (v. infra).10

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De nossa parte, também entendemos que não se poderá mais confundir vigência com validade (e a conseqüente eficácia) das normas jurídicas. Devemos seguir, a partir de agora, a lição de Ferrajoli, que bem diferencia ambas as situações.1112 Para Ferrajoli, a identificação da validade de uma norma com a sua existência (determinada pelo fato de se pertencer a certo ordenamento e estar conforme as normas que regulam sua produção) é fruto “de uma simplificação, que deriva, por sua vez, de uma incompreensão da complexidade da legalidade no Estado constitucional de direito que se acaba de ilustrar”.13 Com efeito, continua Ferrajoli, “o sistema das normas sobre a produção de normas – habitualmente estabelecido, em nossos ordenamentos, com nível constitucional – não se compõe somente de normas formais sobre a competência ou sobre os procedimentos de formação das leis”, incluindo também “normas substanciais, como o princípio da igualdade e os direitos fundamentais, que de modo diverso limitam e vinculam o poder legislativo, excluindo ou impondo-lhe determinados conteúdos”, o que faz com que “uma norma – por exemplo, uma lei que viola o princípio constitucional da igualdade – por mais que tenha existência formal ou vigência, possa muito bem ser inválida e, como tal, suscetível de anulação por contrastar com uma norma substancial sobre sua produção”.14

Com efeito, a existência de normas inválidas, ainda segundo Ferrajoli, “pode ser facilmente explicada distinguindo-se duas dimensões da regularidade ou legitimidade das normas: a que se pode chamar ‘vigência’ ou ‘existência’, que faz referência à forma dos atos normativos e que depende da conformidade ou correspondência com as normas formais sobre sua formação; e a ‘validade’ propriamente dita ou, em se tratando de leis, a ‘constitucionalidade’ [e, podemos acrescentar, também a ‘convencionalidade’], que, pelo contrário, têm que ver com seu significado ou conteúdo e que depende da coerência com as normas substanciais sobre sua produção”.15 Nesse sentido, a vigência de determinada norma guardaria relação com a forma dos atos normativos, enquanto que a suaPage 240validade seria uma questão de coerência ou de compatibilidade das normas produzidas pelo direito doméstico com aquelas de caráter substancial (a Constituição e/ou os tratados internacionais em vigor no país) sobre sua produção.16

Em nosso país, é certo que toda lei vigora formalmente até que não seja revogada por outra ou até alcançar o seu termo final de vigência (no caso das leis excepcionais ou temporárias). A vigência pressupõe a publicação da lei na imprensa oficial e seu eventual período de vacatio legis; se não houver vacatio, segue-se a regra do art. 1º da LICC da entrada em vigor após quarenta e cinco dias. Então, tendo sido aprovada pelo Parlamento e sancionada pelo Presidente da República (com promulgação e publicação posteriores) a lei é vigente17 (ou seja, existente18) em território nacional (podendo ter que respeitar, repita-se, eventual período de vacatio legis),19 o que não significa que...

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