Tentativas de fragilização do ministério público mediante a representação de interesses privatísticos junto ao parlamento

AutorCarolina Mercante
CargoProcuradora do Trabalho em São Paulo
Páginas325-346

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Introdução

Quando se observam a amplitude de atribuições, os instrumentos de investigação e ação e a autonomia do Ministério Público brasileiro em relação aos Poderes da República, constata-se a sua pujança institucional. Ao Ministério Público (MP), respeitadas as ramificações temáticas, foram conferidas a exclusividade de propositura da ação penal pública, a fiscalização do cumprimento da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis1.

Todavia, esse vigor organizacional se consolidou na história recente do país, em especial, nos anos de 1980, tendo como seu ponto culminante a promulgação da Constituição da República de 1988 (CR/1988), posteriormente, complementada pelos estatutos que regem o Ministério Público dos Estados e o Ministério Público da União2. Antes disso, a atuação ministerial era consideravelmente fragilizada pela falta de unidade, forte vinculação ao Poder Executivo, ausência de mecanismos que proporcionassem a tutela coletiva e pela ambiguidade funcional, haja vista a possibilidade de cumulação, nos casos previstos em lei, da advocacia privada ou pública com os misteres de promotores e procuradores.

Essa transformação orgânica decorreu não apenas do lobby das lideranças internas do Ministério Público junto aos parlamentares, mas também das articulações dos movimentos sociais vivenciadas no período de abertura democrática. Tais mudanças no perfil do Ministério Público tiveram impactos positivos na atuação de seus membros, que passaram a combater a improbidade administrativa, o trabalho em condições degradantes, a exploração do trabalho infantil, as fraudes trabalhistas, o crime organizado, tendo, ainda, os membros do MP iniciado uma aguerrida defesa dos direitos das minorias, da proteção ao meio ambiente, da qualidade na prestação dos serviços públicos essenciais, da transparência e moralidade nas disputas eleitorais, entre outros interesses transindividuais. Nesse aspecto, as inovações constitucionais e legais concernentes às regras que orientam a atuação do MP demonstram a influência das características da Instituição na transformação da realidade social. Assim, é possível se afirmar que, a depender de como a Instituição é moldada, o grau de concretização de direitos fundamentais e de participação democrática varia.

Diante da importância da forma e conteúdo do Ministério Público no que se refere aos rumos da democracia brasileira, optou-se por considerá-lo, neste artigo, como uma instituição com princípios unificadores e finalidades

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próprias e não meramente como um somatório de agentes públicos que atuam isoladamente na defesa de interesses sociais. Essa opção metodológica não ignora o fato de que o MP é uma instituição complexa, composta por membros com independência funcional, com diferentes visões jurídicas, atuando em temas distintos e em diversas localidades, cada uma com as suas peculiaridades regionais. Contudo, sob a ótica neoinstitucionalista3, verifica-se que os elos que unem os agentes ministeriais, tanto em razão da trajetória da Instituição, como por seus princípios e objetivos expressos na CR/1988, constroem uma 'filosofia' típica do Ministério Público, que o diferencia de outras instituições e legitima a sua existência.

Feitas essas considerações, esclarece-se que este artigo analisará os poderes investigatórios do MP, privilegiando uma abordagem interdisciplinar, na tentativa de realizar uma leitura do ordenamento jurídico integrada aos arranjos políticos desenvolvidos no meio social. Para tanto, na primeira seção, serão mencionados eventos históricos que auxiliam a compreensão da evolução do Ministério Público no país. Já na segunda seção, serão indicados os principais estatutos legais, decisões de tribunais superiores e projetos legislativos, restringindo-se esses últimos aos projetos que, em nossa visão, revelam-se prejudiciais às atividades do órgão ministerial.

Com esse diálogo entre a história e o presente do Ministério Público, almeja-se sensibilizar o leitor para os avanços conquistados pelo povo para que a Instituição em tela se tornasse um dos canais de acesso ao sistema de Justiça4 e alertá-lo quanto aos riscos de retrocesso.

I A recente reconfiguração institucional do ministério público

A Constituição da República de 1988 (CR/1988), além de não mais vincular o Ministério Público ao Poder Executivo, deu-lhe autonomia

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administrativa e financeira, incumbindo-lhe da defesa de direitos de ampla repercussão social. Para isso, muniu-lhe com instrumentos como o inquérito civil e a ação civil pública. Ademais, explicitou as prerrogativas de seus membros, como a vitaliciedade, a independência funcional e a irredutibilidade remuneratória, bem como lhes impôs vedações como a de exercer a advocacia e a de participar de sociedade comercial.

Todavia, nem todos os preceitos da CR/1988 relativos ao MP foram inéditos, uma vez que alguns aspectos já estavam disciplinados na legislação federal e em normas estaduais. Além disso, a luta dos membros do MP pela ampliação dos poderes do Órgão começou bem antes da Assembleia Nacional Constituinte5, embora tenha se intensificado nesse período.

Segundo o relato de Plínio de Arruda Sampaio, no início dos anos de 1940, seu pai, o Dr. João Baptista de Arruda Sampaio, que era promotor público na Cidade de São Paulo, foi removido compulsoriamente de comarca, o que motivou alguns promotores a fundarem a Associação do Ministério Público em São Paulo. A partir de então, começaram a adquirir um senso de dignidade quanto às suas funções, conscientizando-se de que não deveriam ser meros instrumentos do Governo, mas, sim, fiscais e executores da lei. Na percepção de Plínio:

O Ministério Público era uma espécie de um apêndice do Executivo, assim como o delegado de Polícia era um agente direto do chefe de Polícia e, portanto, do Chefe de Governo. O Promotor Público não era propriamente um agente direto, tão direto, ele tinha um status um pouquinho mais elevado. Mas no fundo, ele dependia do procurador--geral, homem de confiança do governador. De modo que, naqueles tempos a remoção de um promotor era uma coisa simples de ser feita. A minha primeira memória vem precisamente daí, marcada por um grande traumatismo na minha casa. Meu pai era promotor em São Paulo quando o filho de um "figurão", amigo do governador, atropelou uma pessoa. Fizeram um inquérito, veio para o meu pai, e o procurador-geral sugeriu que ele não denunciasse. Porém, o papai denunciou com todo o rigor da lei, sendo, em consequência, removido no dia seguinte, para Tatuí.6

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Observa-se que, na Constituição de 1934, havia uma seção específica sobre o Ministério Público, o qual era classificado como um dos "órgãos de cooperação nas atividades governamentais". A Constituição estabelecia que o Ministério Público na União, Distrito Federal e Territórios seria organizado por lei federal e, nos Estados, por leis estaduais. Também previa que o Procurador-Geral da República (PGR), que não precisava ser integrante da carreira, seria nomeado pelo Presidente da República, sendo demissível ad nutum. Contudo, um avanço da Constituição de 1934 foi a previsão de nomeação dos membros do Ministério Público Federal mediante concurso, sendo que esses somente perderiam os cargos, nos termos da lei, por sentença judiciária, ou processo administrativo, no qual lhes fosse assegurada ampla defesa.

Já a Constituição de 1937, elaborada durante a ditadura estado--novista, não mais reservava ao Ministério Público um capítulo específico. Vale destacar que a Constituição manteve a nomeação e demissão ad nutum do PGR pelo Presidente da República. Ademais, a Constituição estabelecia que a lei poderia cometer ao Ministério Público dos Estados a função de representar em Juízo a Fazenda Federal. Acerca desse período constitucional, Roberto Marcondes, fazendo alusão à obra de Carlos Roberto Jatahy, salienta que "nos Estados onde a democracia não floresce e onde não se privilegiam os direitos fundamentais do homem, o Ministério Público não tem contornos constitucionais fortes"7.

Com a promulgação da Constituição de 1946, símbolo da superação do período autoritário getulista, o Ministério Público volta a ter um título próprio. Apontam-se como inovações dessa Constituição a previsão de que os membros do MP apenas poderiam ser removidos mediante representação motivada do Chefe do Ministério Público, com fundamento em conveniência do serviço e também a previsão de que, nos Estados, deveria ser observado o princípio de promoção de entrância a entrância. Por outro lado, a Constituição ainda mantinha a possibilidade de demissão ad nutum do PGR e a representação da União por Procuradores da República, podendo a lei cometer esse encargo, nas Comarcas de interior, ao Ministério Público local.

A Constituição de 1967, em sua redação originária, inseriu o Ministério Público no âmbito do Poder Judiciário. Com a Emenda Constitucional n. 1,

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de 1969, o Ministério Público foi recolocado no capítulo referente ao Poder Executivo. Cumpre frisar que, nos anos mais rígidos do regime militar, iniciado com o golpe de 1964, a atuação do Ministério Público foi, sem dúvida, limitada e atrelada aos mandamentos governamentais, sendo os procuradores gerais agentes subservientes do Estado de exceção.

No fim dos anos de 1970, época em que, por conjunturas políticas e econômicas, a ditadura militar começou a mostrar sinais de enfraquecimento8, foi publicada a Emenda Constitucional n. 7, de 1977, que previa a edição de lei complementar a fim de estabelecer...

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