Quem tem documentos sobre a ditadura? Uma análise da legislação e das iniciativas governamentais

AutorVitor Amorim de Angelo
CargoDoutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais/Mestrado da Universidade Vila Velha (ES)
Páginas199-234
Artigos
Política & Sociedade - Florianópolis - Volume 11 - Nº 21 - julho de 2012
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Quem tem documentos sobre a ditadura?
Uma análise da legislação e das iniciativas
governamentais1
Vitor Amorim de Angelo2
Resumo
Partindo da campanha publicitária do Centro de Referência das Lutas
Políticas no Brasil (1964-1985), nosso objetivo neste trabalho é discutir o
posicionamento do governo federal em relação aos arquivos da ditadura
militar. Para tanto, recuperamos o longo debate iniciado no mandato de
FHC em torno da divulgação dos documentos sigilosos produzidos pela
ditadura. A reconstrução desse debate e a análise crítica da campanha
publicitária nos permitiu apontar os limites e as contradições da atuação
do governo brasileiro nessa questão.
Palavras-chave: Ditadura. Documentos. Campanha publicitária.
1. Introdução
No final de 2009, as principais emissoras de rádio e televisão
do país, além de jornais e revistas de grande circulação, come-
çaram a divulgar a campanha publicitária do Centro de Referência
das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985), também conhecido como
1 Uma versão preliminar deste trabalho foi apresentada no 7º Encontro da Associação
Brasileira de Ciência Política, realizado em Recife (PE) entre 4 e 7 de agosto de 2010.
Agradeço às considerações feitas naquela oportunidade pelo debatedor da sessão,
professor Dr. Luiz Cláudio Lourenço. Agradeço também aos pareceristas anônimos de
Política & Sociedade pelas sugestões.
2 Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos. Professor do Pro-
grama de Pós-Graduação em Ciências Sociais/Mestrado da Universidade Vila Velha (ES).
E-mail: vitor.angelo@uvv.br
http://dx.doi.org/10.5007/21757984.2012v11n21p199
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Memórias Reveladas. A campanha, com duração aproximada de dois
meses, foi um apelo do governo federal à sociedade para obter do-
cumentos produzidos ao longo da ditadura militar, especialmente
aqueles que pudessem contribuir para a localização dos mais de
140 desaparecidos políticos do país. Contudo, a despeito de sua evi-
dente qualidade, a campanha revelou — ou encobriu, a depender
do ponto de vista — as limitações e contradições da atuação do
governo brasileiro nesse tema.
Transcorridos alguns dias desde o início de sua veiculação
na mídia, poucos foram os especialistas daquele período que se ar-
voraram a criticar a campanha. Alguns, talvez, por atuarem como
conselheiros e assessores do projeto Memórias Revelados. Outros,
por julgarem mais conveniente apoiar uma campanha reconhecida-
mente de utilidade pública. Um terceiro grupo, comparando o então
governo Luís Inácio Lula da Silva aos anteriores, pode ter concluído
que, apesar das contradições, íamos bem melhor naquele momento
do que antes na questão do acesso aos arquivos da ditadura.
Um exemplo da boa receptividade no meio intelectual pode
ser conferido na edição do mês de outubro de 2009 da revista Pes-
quisa FAPESP, publicada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Es-
tado de São Paulo. A reportagem de quatro páginas afirmava que
“uma revolução está acontecendo nos arquivos públicos de todo o
país desde maio deste ano [2009]” (Pesquisa FAPESP, n. 164, p. 86),
em referência ao Banco de Dados Memórias Reveladas3, que dispo-
nibiliza informações e documentos relativos ao período da ditadura
militar para consultas on-line. A matéria era extremamente elogiosa
à iniciativa governamental, destacando, obviamente, a participação
da FAPESP no financiamento da segunda etapa do projeto de digita-
lização de documentos. Não havia, entretanto, nenhuma menção à
campanha publicitária ao longo de toda a reportagem.
Em geral, a abertura dos arquivos da ditadura é vista como
uma medida essencial para as pesquisas a respeito daquele período
histórico. É evidente que a disponibilização de novas fontes pode
3 O banco de dados está disponível em: . Acesso em: 1º ago. 2010.
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redirecionar a produção acadêmica, invalidar teses aparentemente
sólidas e contribuir para uma reconstrução mais completa dos anos
de chumbo. Faz parte, sobretudo, do direito à memória, seja dos
atingidos pela repressão ou da sociedade como um todo4. Por ou-
tro lado, nota-se certo clima de euforia entre alguns pesquisadores,
como se as fontes, por si só, pudessem dizer coisas novas. Esquecem
que um corpo documental mais amplo não garante automaticamen-
te pesquisas de maior qualidade a não ser que as perguntas corretas
sejam feitas aos documentos5. Além do mais, não obstante o ethos
racionalizante que caracterizou a repressão durante a ditadura, o
que poderia favorecer a descoberta de novas informações, é presu-
mível que não sejam encontradas revelações estarrecedoras como,
às vezes, alguns setores da sociedade parecem crer6.
Há também um componente pessoal na questão dos arqui-
vos da ditadura. Muitas famílias buscam informações que possam
levá-las a encontrar seus parentes desaparecidos durante o período
militar. Esse foi o sentido mais evidente da campanha do Memórias
Reveladas, que veiculou slogans como “ainda existem mais de 140
desaparecidos políticos no Brasil; ajude a encontrá-los” e “seus fa-
miliares ainda não tiveram o direito de enterrar seus corpos”7. A
própria idéia de que alguém possa simplesmente desaparecer, aliás,
é típica dos anos de extrema repressão que marcaram os sucessivos
governos militares. Para fugir das forças de segurança, militantes
da esquerda armada frequentemente entraram na clandestinidade
4 Na França, o direito à memória tem sido frequentemente associado ao chamado dever de
memória (devoir de mémoire), com repercussão, inclusive, na esfera judicial. Uma análise
esclarecedora sobre a relação entre história, memória e direito naquele país e um contra-
ponto com o caso brasileiro podem ser vistos em Heymann (2007).
5 Para a visão de um conhecido historiador sobre a relação entre o pesquisador e suas
fontes, ver Bloch (2001).
6 Com isso, porém, não queremos afirmar que: (1) não haja documentos a serem revelados,
que (2) documentos com informações tidas como bombásticas não poderiam surgir nem
tampouco que (3) existam documentos mais importantes do que outros em razão desta
ou daquela informação neles contida.
7 As informações relativas à campanha utilizadas ao longo do texto estão disponíveis no site
oficial do Memórias Reveladas: .br>. Acesso
em: 1º ago. 2010.

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