O surgimento do Estado penal não é uma fatalidade

AutorSara Dindo
Páginas242-248

Tradução de José Emílio Medauar Ommati. Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da UFMG; Professor de Teoria da Constituição, Hermenêutica e Argumentação Jurídica e Direito Administrativo I da PUC Minas – Serro; Coordenador do Curso de Direito da PUC Minas – Serro.

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SARAH DINDO1 – Em seu livro As Prisões da Miséria, o senhor descreve a transição, nas sociedades mais desenvolvidas, de uma gestão social ou assistencial da pobreza para uma gestão punitiva que se dá através da polícia e das prisões. De onde vem essa súbita glorificação do “Estado penal” e qual é sua “utilidade”?

LOÏCWACQUANT2 – Poderíamos resumir a mutação política na qual se inscreve essa transição pela fórmula: esfacelamento do Estado econômico, retração do Estado social, reforço do Estado penal, pois essas três transformações estão intimamente relacionadas entre si, e todas as três decorrem, no essencial, da conversão das classes dirigentes para a ideologiaPage 243 neoliberal. Com efeito, aqueles que hoje glorificam o Estado penal, tanto na América quanto na Europa, são os mesmos que antigamente exigiam “menos Estado” em matéria econômica e social e que, de fato, conseguiram reduzir as prerrogativas e exigências da coletividade em face do mercado, isto é, face à ditadura das grandes empresas. Isso pode parecer uma contradição, mas, na realidade, eis aí os dois componentes do novo dispositivo de gestão da miséria que vem se desenvolvendo na era do desemprego de massa e do emprego precário. Esse novo “governo” de insegurança social – para usar as palavras de Michel Foucault – se apóia, por um lado, na disciplina do mercado de trabalho desqualificado e desregulamentado e, por outro, em um aparelho penal intrusivo e onipresente. Mão invisível do mercado e mão de ferro do Estado se conjugam e se completam para tornar mais aceitável o assalariado desorganizado e a insegurança social que isso implica. A prisão se torna um elemento fundamental.

A grande exposição do tema das “violências urbanas” nos discursos e nas políticas dos governos europeus, e, principalmente na França desde o retorno ao poder da esquerda denominada plural, não tem muito a ver com a evolução da delinquência dos “jovens”(seria preciso sempre acrescentar: dos jovens de origem trabalhadora e estrangeira, pois é justamente deles que se trata; a partir desse momento, em muitos países, como na Itália ou na Alemanha, não há mais qualquer pudor em se dizer abertamente “criminalidade dos imigrados”). Ela visa a favorecer a redefinição do perímetro e das modalidades de ação do Estado: de um Estado keynesiano vetor da solidariedade, que tinha como missão contrabalançar os ciclos e os defeitos do mercado, assegurar o “bem-estar” coletivo e reduzir as desigualdades, sucede um Estado darwinista, que erige a competição em fetiche e celebra a responsabilidade individual, cuja contrapartida é a irresponsabilidade coletiva, e que se contenta com suas funções regalistas de manutenção da ordem, elas mesmas hipertrofiadas.

A utilidade do aparelho penal na era pós-keynesiana do emprego de insegurança é, dessa forma, tripla: ela serve para disciplinar os seguimentos da classe operária que reagem ao novo emprego precário dos serviços; neutraliza e isola seus elementos mais disruptivos ou considerados supérfluos em relação às mutações da oferta de emprego; e reafirma a autoridade do Estado no domínio restrito de sua nova competência de atuação.

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S. D. – Como o Estado penal e a política da “tolerância...

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