Banco do Sul: a Proposta, o Contexto, as Interrogações e os Desafios

AutorCarlos Eduardo Carvalho/Allan Batista Gabriel/Carolina Silva Pedroso/Gabriel Yuji Kobayashi Kaneko
CargoProfessor do Departamento de Economia e do curso de Relações Internacionais/Graduando em Relações Internacionais/Graduanda em Relações Internacionais/Graduado em Relações Internacionais
Páginas113-135

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Introdução

O processo de criação do Banco do Sul ganhou dinamismo surpreendente em 2007, culminando com a assinatura festiva da Ata de Fundação em Buenos Aires em 9 de dezembro, véspera da posse de Cristina Kirchner na Presidência da Argentina. Algumas questões sobre a natureza do Banco tinham sido encaminhadas ao longo do ano, com a definição do perfil de Banco de Desenvolvimento, defendida pelo Brasil.

A rapidez do avanço da proposta em 2007 pareceu desmentir o ceticismo inicial, mas o processo entrou em marcha bem mais lenta em 2008, diminuindo a presença do Banco do Sul nas declarações dos governos, à medida que as negociações enfrentaram temas complexos, ligados à estrutura de capital e aos mecanismos decisórios e de governança.

No primeiro semestre de 2009 veio afinal à luz a proposta de estatuto, ainda a ser aprovada pelos Presidentes e pelos Legislativos dos países envolvidos, mas persistem muitas dúvidas sobre o perfil e o alcance do Banco. Não se sabe, por exemplo, como a nova instituição poderá ganhar força com capital reduzido e mecanismo decisório difícil, diante das consideráveis diferenças entre os governos envolvidos, tanto em questões políticas como no tratamento de temas econômicos cruciais. Acrescente-se que, nas declarações e documentos sobre o novo Banco, não há referências às instituições financeiras regionais já existentes, apesar de estarem voltadas para papéis semelhantes aos atribuídos ao Banco e de reunirem considerável experiência na área.

Ainda assim, a aceitação da proposta e a tramitação rápida sugerem a presença de processos profundos e complexos a impulsionar a iniciativa. Uma indicação óbvia neste sentido é o quadro econômico peculiar configurado a partir de 2002-2003 na América Latina, com posição cambial superavitária e forte acumulação de reservas externas, ao lado do desgaste das políticas ditas neoliberais e da hostilidade da região ao FMI e às agências multilaterais. No plano político, a busca de unidade regional ganhou dinâmica própria e vem se sobrepondo às diferenças acentuadas entre os governos em temas cruciais, como as relações com o sistema financeiro internacional. Não se sabe como os desdobramentos da crise financeira mundial influenciarão este quadro e como os países envolvidos tratarão o Banco do Sul no contexto internacional delineado pela crise.

Este trabalho analisa a criação do Banco do Sul, partindo da singularidade do processo em curso, em que os elementos originais do quadro sul-americano atual recomendam cautela na avaliação de sua natureza e de suas perspectivas. O tema é discutido em três seções, além desta Introdução. A primeira apresenta um histórico da proposta e das negociações e expõe os entendimentos diferenciados a ela atribuídos pelos governos envolvidos, a partir da análise de declarações públicas e dos documentos oficiais disponíveis. A segunda traz um painel das instituições existentes na região, com a natureza de sua atividade e os montantes operados, de forma a situar o quadro financeiro e institucional que cercará o Banco na sua área de atuação. A terceira seção discute o contexto singular em que surgiu a proposta e destaca os desafios colocados pelo quadro político da América do Sul, em especial para a governança do novo Banco, com um painel de soluções adotadas em organizações semelhantes em outras regiões. Segue-se uma seção de comentários finais.

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A proposta e seus significados
As origens e o desenvolvimento da proposta

A proposta de criação do Banco do Sul foi lançada por Hugo Chávez, que declarou ter se inspirado no relatório da Comissão Sul,1 criada em 1987 por dirigentes políticos e intelectuais para analisar e propor soluções para problemas dos países em desenvolvimento. A criação do Banco do Sul foi incluída na campanha eleitoral de 1999 (MCELHINNY, 2007), mas só foi encaminhada em 2004 (MARTÍNEZ VIAL, 2007), anunciada pelo discurso do Ministro das Relações Exteriores da Venezuela, Jesús Arnaldo Pérez, na UNCTAD XI:

Seguimos convencidos de la necesidad de crear un ‘Banco del Sur’ en donde pudiéramos centralizar nuestras reservas, permitiendo un acceso menos costoso para aquellos países hermanos que las necesitan. Y, sobre todo, para aliviarles del peso de las estrictas políticas de ajuste que nos imponen el Banco Mundial o el Fondo Monetario Internacional a través de sus cláusulas de condicionalidad. De esa forma, podríamos frenar la terrible sangría de nuestros recursos financieros hacia el Norte cuando son tan necesarios aquí, en el Sur (UNCTAD, 2004).

As negociações foram conduzidas em dois âmbitos. As reuniões técnicas multilaterais debateram aspectos técnico-operacionais (governabilidade, estrutura de capital), sem divulgação das atas. As reuniões ministeriais produziram Declarações, a serem assinadas pelos presidentes.

Em 21.2.07, Hugo Chávez e Néstor Kirchner assinaram o primeiro memorando de entendimento, fixando o prazo de 120 dias para a constituição do Banco. Bolívia e Equador tornaram-se membros e outros países permaneceram reticentes.

O Brasil aderiu ao projeto em maio e, em negociações bilaterais, convenceu os demais países a retomarem as negociações a partir do estágio inicial.2 Para o Presidente Lula:

É preciso definir, antes de qualquer coisa, o que é esse Banco do Sul: se tem finalidade semelhante à do FMI, do Banco Mundial, do BNDES. Primeiro é preciso definir para quê nós queremos um banco, qual a sua finalidade, para depois saber se compensa participar ou não.3

A Declaração de Quito, em 3.5.07, convidou todos os países da UNASUL e a Declaração de Assunção (22.5.07) aprovou a participação igualitária dos países. Também em Assunção, reunião paralela dos ministros do Mercosul incorporou o Banco à agenda do bloco e o Uruguai ratificou em junho.

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O passo definitivo veio em 8.10.07, quando sete países assinaram a Ata Fundacional, a Declaração do Rio de Janeiro. A Ata marcou a assinatura dos presidentes para
3.11.07, adiada posteriormente para 9.12.07, véspera da posse de Cristina Kirchner. Reunidos em Buenos Aires, em clima de empolgação, os presidentes assinaram o nascimento do Banco do Sul. No dia seguinte, o presidente do Uruguai assinou a Ata e a Colômbia confirmou sua participação. Decidiu-se que o Banco teria sede em Caracas, com duas subsedes, em Buenos Aires e La Paz.

Na sequência, a Cúpula de Montevidéu (15.4.08) estipulou em US$ 20 bilhões o capital autorizado e em US$ 7 bilhões o capital subscrito. A Cúpula Ministerial de Buenos Aires, em junho, fixou o capital inicial em US$ 10 bilhões: Argentina, Brasil e Venezuela, US$ 2 bilhões cada; Uruguai e Equador, US$ 400 milhões cada; Paraguai e Bolívia, US$ 100 milhões cada. Os restantes US$ 3 bilhões ficaram para os demais membros da Unasul: Peru, Colômbia, Chile, Suriname e Guiana, sem data para adesão.

A Cúpula de junho desenhou a estrutura (Conselho de Ministros, Conselho de Administração, Diretório e seu Comitê Executivo, Conselho de Auditoria) e ratificou o princípio de um país, um voto, decisão apoiada pela Venezuela, com resistências da Argentina e do Brasil. Nos Estatutos, aprovados em maio de 2009, a serem ainda submetidos aos governos e Parlamentos, manteve-se o princípio de um voto por país, mas exigido o apoio de 70% do capital subscrito para projetos acima de US$ 70 milhões.

Questões relevantes seguem indefinidas, como as prioridades de atuação: para alguns, o setor de infraestrutura já conta com muitos investimentos multilaterais e o Banco deveria concentrar esforços em segurança alimentar, redução da pobreza, meio ambiente e redução das assimetrias entre os países, ao contrário das instituições financeiras internacionais (ORTIZ E UGARTECHE, 2008). Além disso, a Venezuela seria contrária ao financiamento de projetos de grandes companhias privadas.

Entre os temas sem acordo estariam as isenções fiscais para todas as operações do Banco e questões referentes à participação da sociedade civil em suas atividades.

Os diferentes significados e conteúdos atribuídos à proposta

O andamento das negociações evidenciou importantes diferenças no entendimento dos governos sobre o Banco do Sul, envolvendo a natureza e as atribuições do Banco, suas relações com instituições financeiras multilaterais e mercados financeiros e aspectos importantes de sua atuação.

Uma instituição desse tipo pode ter basicamente os seguintes papéis:

  1. banco de desenvolvimento: financiamento de projetos que requerem recursos em volume superior ao disponível para os sócios; requer aporte capital dos sócios mais ricos e captação de recursos nos mercados financeiros internacionais e junto a governos e outras instituições multilaterais; realiza empréstimos de maturação longa e necessita de capital elevado e captar recursos de longo prazo;

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  2. banco de desenvolvimento social: financiamento de políticas públicas e projetos para cidadãos e empreendimentos de micro e pequeno porte; não requer capital elevado; necessita de grande número de funcionários, com operações pulverizadas e elevado custo de análise e...

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