A (re)construção da identidade do sujeito constitucional trabalhador com deficiência e reabilitado pelo INSS

AutorFausto Siqueira Gaia
CargoMestrando em Direitos e Garantias Constitucionais pela Faculdade de Direito de Vitória. Juiz do Trabalho Substituto do Tribunal Regional do Trabalho da 17a Região. Ex-Juiz do Trabalho Substituto do Tribunal Regional do Trabalho da 5a Região
Páginas59-69

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1. Introdução

A Constituição da República de 1988, em seu art. 3º, elencou, dentre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, a construção de uma sociedade justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização, como forma de redução das desigualdades, bem como a promoção do bem comum, sem qualquer distinção ou discriminação com base em elementos raciais, sociais, etários, dentre outros.

Nesse contexto do novo marco do constitucionalismo brasileiro, foi elevada, com o inciso XXXI do art. 7º da Carta Magna, à categoria de direito fundamental social dos trabalhadores, a proibição de qualquer forma discriminatória, inclusive quanto aos critérios de admissão do trabalhador com de?ciência.

Assim, a inclusão do outro, ou seja, do trabalhador com de?ciência e do reabilitado social, anteriormente alijados da proteção do texto da norma fundamental, demarca a ordem constitucional inaugurada há 25 anos, caracterizada pelo pluralismo e pela democracia inclusiva e solidária.

Não obstante a previsão normativa contida no texto do instrumento de maior hierarquia no ordenamento jurídico pátrio, nos termos da pirâmide kelseniana1, ?agrantes e rotineiros são os descumprimentos e as resistências dos empregadores quanto à admissão em seus quadros de trabalhadores com de?ciência, mesmo após a edição da Lei n. 8.213/91 que, no art. 93, instituiu a política de cotas para provimento de cargos com bene?ciários reabilitados ou pessoas com de?ciência.

Diversos são os argumentos lançados quando há o questionamento pela autoridade ?scalizadora do Ministério do Trabalho das razões para o não cumprimento das cotas de trabalhadores com de?ciência e reabilitados pelo INSS. Dentre eles, ressaltam-se as alegações de que não há na atividade produtiva atividades compatíveis para tais trabalhadores, bem como de que não há candidatos disponíveis com a quali?cação necessária para o cargo.

O referido paradoxo inspirou o presente artigo cientí?co, que tem como objetivo investigar a (re)construção da identidade do sujeito constitucional do trabalhador com de?ciência e reabilitado social pelo INSS à luz da teoria desenvolvida por Michel Rosenfeld2

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e, consequentemente, identi?car, dentro da interpretação do art. 93 da Lei n. 8.213/913, a obrigação do empregador em se adequar para receber dentro dos seus quadros pessoas segregadas do direito fundamental ao trabalho.

Em um primeiro momento, a análise partirá da reconstrução dialética da identidade do sujeito constitucional dos trabalhadores com de?ciência e reabilitados alijados do mercado de trabalho, a partir dos instrumentais apresentados por Rosenfeld4 da negação, da metáfora e da metonímia.

A partir da reconstrução da identidade do sujeito constitucional do trabalhador com de?ciência e do reabilitado pelo INSS a partir de 1988, a análise abarcará a identi?cação de princípios fundamentais, como da isonomia material, da solidariedade social e da função social da empresa — este último como corolário da função social da propriedade positivada no art. 170, III, da Constituição da República — de forma a identi?car, no art. 93 da Lei
n. 8.213/91, uma interpretação inclusiva dos trabalhadores, de modo a atender os objetivos fundamentais da nova ordem constitucional.

2. Reconstruindo a identidade do sujeito trabalhador com deficiência e reabilitado: negação, metáfora e metonímia

A expressão “sujeito constitucional”, como bem adverte Rosenfeld5, apresenta tríplice signi?cação linguística, a partir dos possíveis sentidos que o substantivo da língua inglesa subject pode possuir. O termo subject tanto pode fazer referência ao elemento subjetivo, ou seja, à pessoa destinatária da norma constitucional ou ao próprio titular do poder constituinte, quanto denotar aspecto objetivo, consubstanciado na matéria constitucional.

Diante do variável alcance polissêmico da expressão, no presente trabalho, a expressão “sujeito constitucional” será tratada apenas no viés subjetivo e, ainda assim, restrita à associação da noção de destinatários da norma constitucional.

O conceito de pessoa com deficiência é extraído da Convenção n. 159 da Organização Internacional do Trabalho que, não obstante tenha tido início de vigência no plano inter-nacional em 20 de junho de 1985, somente passou a vigorar no Brasil em 18 de maio de 1991, por meio do Decreto do Poder Executivo
n. 129/1991.

No aspecto subjetivo, esse entendido na perspectiva do destinatário da norma constitucional, considera-se, à luz do art. 1º da Convenção
n. 159 da OIT, como sendo trabalhadores com de?ciência:

(...) todas as pessoas cujas possibilidades de obter e conservar um emprego adequado e de progredir no mesmo ?quem substancialmente reduzidas devido a uma de?ciência de caráter físico ou mental devidamente comprovada.6

Já os trabalhadores reabilitados são de?nidos no art. 31 do Regulamento aprovado pelo Decreto n. 3.298/99, norma interna que consolida as regras e princípios protetivos das pessoas com de?ciência, como sendo aqueles que passaram:

(...) por processo orientado a possibilitar que a pessoa portadora de de?ciência, a partir da identificação de suas potencialidades laborativas, adquira o nível suficiente de desenvolvimento pro?ssional para ingresso e reingresso no mercado de trabalho e participar da vida comunitária.7

O constituinte de 1988, já no preâmbulo da Carta Magna, destacou que o novo paradigma

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do Estado Democrático de Direito instaurado na ordem jurídica brasileira tem de, dentre os seus objetivos, assegurar uma sociedade justa e fraterna sem preconceitos de qualquer ordem, alicerçada no princípio fundamental da igual-dade, dentre outros axiomas.

No que tange ao trabalhador com de?ciência, o constituinte originário elencou, dentre os direitos sociais fundamentais dos trabalhadores, a expressa proibição de utilização de critérios discriminatórios para a admissão, tanto no âmbito da Administração Pública quanto entre os particulares.

A Constituição, como obra em constante transformação e em razão da própria incompletude do seu texto8, decorrente do seu próprio caráter compromissório, deve permanecer sujeita à constante interpretação, até mesmo para garantir a sua duração ao longo do tempo. Salienta, nesse aspecto, Daniel Sarmento9 que a possibilidade de mudança da Constituição é condição sine qua non para a sua própria manutenção.

Nesse sentido, o texto constitucional, que expressamente contempla a proibição de critérios discriminatórios na admissão de trabalhadores de?cientes, deve ser interpretado no sentido de abarcar na norma jurídica, inclusive, a proteção dos trabalhadores reabilitados. Embora o texto constitucional não expressamente mencione tal categoria de obreiros no inciso XXXI do art. 7º, tem-se que o fundamento da norma é o mesmo, qual seja: o de impedir a discriminação do acesso aos postos de trabalho.

Esse é apenas um singelo exemplo acerca da necessidade da constante reinterpretação do texto constitucional, ainda mais se considerar que ao longo dos seus 25 anos de existência diversos são os obstáculos postos por aqueles que ainda resistem à inclusão de trabalhadores de?cientes e reabilitados em seus quadros de pessoal.

Daí a necessidade constante de construção e reconstrução dialética da identidade do sujeito constitucional, que deve se pautar sempre na interpretação inclusiva dos trabalhadores com deficiência e reabilitados, objeto de nosso estudo teórico. Essa atividade construtiva da identidade do sujeito constitucional, como adverte Rosenfeld10, nasce do conflito do “eu” (self) com o “outro”, ou seja, no domínio intersubjetivo, o que na relação de trabalho é representada pelo con?ito ou na relação entre os empregados e dos detentores dos meios de produção.

Sobre a relação do “eu” com o “outro”, Aloísio Krohling11, especi?camente sobre a temática da ética da alteridade, aponta que:

Nenhum homem é uma ilha isolada. O solipsismo do homem solitário abafa a existência que deseja se levantar, sair para fora, se expandir, ser-para-o-outro. Não existe emancipação ou libertação na solidão do eu mesmo. O termo subjetividade em Lévinas perde aquela característica super?cial de subjetivismo e se torna prenhe de alteridade com o encontro de dois sujeitos na relação de intersubjetividade.

Quanto à atividade especí?ca da reconstrução da identidade do sujeito constitucional trabalhador com de?ciência e reabilitado social, aponta Rosenfeld12 que esta “fornece os meios para se realizar a tarefa de justi?cação e torna possível a defesa convincente ou a condenação das construções associadas ao processo da tomada de decisão constitucional”.

Assim, diante da atividade reconstrutiva, é possível tanto uma interpretação constitucional tendente a manter o status quo da nova

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ordem jurídica instalada, ou seja, no sentido de rejeitar escusas quanto à negativa de inclusão do “outro” com de?ciência e reabilitado, quanto a promoção à ruptura hermenêutica, esta representada pela possibilidade de justi?cação fática e normativa para o não cumprimento das cotas inclusivas, ou, como as denomino, “cotas de cidadania”.

Para tanto, Rosenfeld13 apresenta o instrumental básico, consubstanciado na negação, metáfora e metonímia:

A negação, a metáfora e a metonímia combinam-se para selecionar, descartar e organizar os elementos pertinentes com vistas a produzir um discurso constitucional no e pelo qual o sujeito constitucional possa fundar a sua identidade. A negação é crucial na medida em que o sujeito...

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