Subordinação do Sistema Tributário ao Quadro Jurídico da Pessoa Humana

AutorDaniel Castro Gomes da Costa
Páginas79-105

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O homem é o indivíduo em si considerado, é a pessoa que possui corpo e alma, é o ser que se diferencia dos animais pela consciência e capacidade de transformar a natureza para adaptála às próprias necessidades, é o ser que tem discernimento do tempo, do espaço e participa do ciclo da vida: nascer, crescer, amadurecer e morrer.

Diogo Leite de Campos1afiança que "a pessoa é um ser original, não participante em qualquer unicidade ontológica, anterior a todos os outros, o Estado e a Sociedade aqui compreendidos - e nesta medida anterior a si própria - como quem não se pode estabelecer uma relação de "sujeitoobjecto", mas uma relação unicamente de "estar com" e de respeito".

Desde os primórdios, os homens não vivem sozinhos. A sua existência depende essencialmente de outro homem. O "Eu" depende do "Tu". E, para a existência em comum do "Eu" e do "Tu" surge o "Nós". O indivíduo abre as relações com os outros e com o outro, sem perder sua singularidade. A pessoa "em si" e "para si" transcende para "ser para o outro" e "ser com os outros", visando, destarte, à totalidade do ser2.

Nessa interrelação de pessoas individualmente consideradas, desde o "per si" até o "ser com os outros", os direitos da personalidade já existiam, corporificado no respeito do direito de outrem pelo respeito que exigia para si. A base da organização social e do direito estava fulcrado

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na moral cristã. A pessoa humana já existia, o valor infinito da pessoa decorria da máxima de que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus, ou seja, todos são iguais3.

A mencionada ideia de subordinação do quatro normativo à pessoa humana, centrada na igualdade e na dignidade da pessoa humana, é anterior e superior à sociedade. O "outro" era visto como limite do "eu". A solidariedade do "eu" com o "outro" era imprescindível à realização humana e à salvação espiritual. O juízo era universal, um dependia do outro para ser salvo. Raras eram as normas criadas pelos indivíduos. Todas eram anteriores e determinadas pela própria natureza humana, as posteriores eram de origem religiosa, somadas aos usos e costumes impostos pela sociedade (modelos de comportamento). Desse modo, assentavase na ideia de direito natural uma ordem justa determinada por Deus. Ao direito e aos órgãos da administração da justiça apenas eram encaminhados casos isolados4.

Entretanto, o homem superou a natureza, assumiu sua liberdade e passou a ser o senhor da criação da história, do direito, da sociedade e a partir de tais ideias surgiram novos conceitos, ligados à relação social entre as pessoas, como a preocupação com o direito, justiça. Nessa ocasião, a dignidade humana veio como reforço da proteção humana, seja em relação aos outros, seja em relação ao Estado.5O ambiente políticosocial abriu duas vias, a do individualismo do legislador e a transformação do direito em mero produto da vontade desvinculada do legislador coletivo. O ser humano passa a se preocupar com sua alma individual, seguindo seu caminho solitário.

Validamente, a sociedade passou a transcender o indivíduo, havendo abandono do fundamento da vontade coletiva, a vontade geral passa a transcender as vontades individuais. O homem passa a ser quantida

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de numérica, passa a integrar parte de um conjunto, notado apenas no todo. De tal modo, a liberdade restou transformando no direito de fazer apenas o que a lei permite.

O direito, enquanto fundamento ético da ordem social, parece desaparecer para se transformar em instrumento de ordenação social. A sociedade passa ser um espaço aberto, sem sentido ético, uma ordem jurídica ampla e vulnerável às marginalidades. O sentido e fundamento da lei se perderam, passaram a não mais representar a vontade geral; perdeuse a referência do direito à justiça. O corpo legislativo passou a mostrar diversas faces que não o da vontade geral.6Com efeito, os direitos da personalidade deixam de ser absolutos, individuais, para ser o núcleo do relacionamento social, uma relação de poderesdeveres, direitosobrigações.

Surge aí o estado de direito democrático, no qual a vontade popular se manifesta de formas especiais, e que a lei tenha conteúdo de justiça, porquanto a justiça é inerente à própria ideia de direito. Não acreditar em que o direito traz justiça, reduzindo o direito simplesmente como instrumento da vontade dos mais fortes, dos mais hábeis, está a separarse do próprio fim de democracia, destruindo o próprio sentido social do estado democrático.

Escolas jurídicas e práticas jurisprudenciais transformam em direito a vontade do julgador, postergando a vontade do legislador e, consequentemente, dos cidadãos, aumentando o casuísmo e o arbítrio. Isso porque, atrás da vontade do julgador desenhamse interesses bem concretos de grupos e organizações que põem os órgãos de soberania a seu serviço, tudo em prejuízo da democracia e do direito. Em prejuízo, também, do próprio Estado.

O Estado, ao invés de um conjunto harmônico e hierarquizado de indivíduos, expressão da vontade geral, revela um homem com seu vício, com seu interesse, sua vontade. Atrás de cada balcão e guichê há um Estado diferente, havendo, por conseguinte, crise de valores.

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Nessa perspectiva, como os órgãos representativos da vontade do povo não cumpriam com seus misteres, a sociedade civil sentiu necessidade de intervir no estado de direito democrático e social para participar ativamente no processo de formação de leis e da tomada das decisões políticas, deixando de ser cidadãoabsoluto para ser "Estado dos cidadãos", exigindo a subordinação do quadro normativo aos direitos das pessoas.

Assim, temos que a evolução clama por um estado democrático e social dos cidadãos, governo da coletividade que pressupõe uma democracia participativa, mais vivida pelos cidadãos, aderindo os valores de justiça, da coesão e da solidariedade.

Para que haja essa subordinação do quadro normativo tributário aos direitos da pessoa humana, necessário se faz entender a real acepção de Estado, o que é direito e qual a importância do cidadão nessa relação jurídica de arrecadação de tributos e implementação dos direitos fundamentais, buscando na democracia participativa um Estado centrado na pessoa humana.

3.1. Relação entre Estado e Direito

O Estudo da relação entre Estado e Direito é importante para entender o papel do Estado e do direito dentro de uma sociedade. Quando se fala em Estado, logo vem a ideia de um ente que tem por finalidade organizar a sociedade. E para organizar a sociedade o faz por meio de normas jurídicas organizadas, designadas direito.

O Estado não pode se confundir com o direito. Estado é muito mais que o direito. O Estado é formado por um corpo social que dá dinâmica ao direito e está interligado ao direito, pois é por meio desse que atinge seus fins. Assim, podese dizer que Estado e direito são duas realidades distintas que se completam na interdependência, não sendo possível estabelecer de modo absoluto como acontece tal relação.

São três as teorias que abordam a relação entre Estado e direito: teoria monística, teoria dualística e teoria do paralelismo7.

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A teoria monística, desenvolvida por Rudolf Von Ihering e John Austin e anunciada por Hegel, Hobbers e Jean Dodin, consiste em unir o Estado e direito em uma só realidade, partindo da ideia de que não existe regra jurídica fora do Estado, sendo o Estado a única fonte de direito8.

Já a teoria dualística, idealizada por Gierke e Gurvitch e aperfeiçoada por Léon Duguit, contraria a concepção monística ao admitir a pluralidade das fontes do direito, partindo da ideia de que o direito é um fato social, uma criação da sociedade. Portanto, o Estado criaria tão somente o direito positivo, mas paralelo a ele existem outras normas, como princípios de direito natural, costumes, normas religiosas, dentre outras criadas pela sociedade e que também possuem normatividade9.

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Por fim, a teoria do paralelismo, defendida por Giorgio Del Vecchio, contraria a teoria monística e aperfeiçoa a teoria pluralista, na medida em que reconhece a existência de diversos microssistemas jurídicos, mas aponta que apenas as normas do Estado possuem positividade, pois decorrem da vontade social10.

A partir da teoria do paralelismo, o Professor Miguel Reale desenvolveu a teoria do culturalismo, pela qual se buscou integrar o estudo do Estado e do direito com princípios fundamentais da axiologia, por meio da concepção tridimensional do Estado e do direito11.

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A teoria do paralelismo parte da ideia de que direito é fonte de realidade cultural construída pelo homem, enquanto Estado seria a integração do "ser" e do "dever ser". Há conjugação do fato, valor e norma. O Estado não seria apenas um conjunto de normas, como supõe a teoria monística, nem um conjunto de fato social, como defende a teria dualista, mas uma realidade cultural que integra a natureza social do homem com o ordenamento jurídico.

Diante do que foi exposto, é possível extrair que, na relação entre direito e Estado, há uma estreita relação na ordem social, já que ambos devem concretizar direitos fundamentais e garantir o bem estar social coletivo.

3.2. Estado: Origem, Elementos e Finalidades

O Estado, a princípio, era uma figura abstrata criada pela sociedade, com o objetivo de unificar o desenvolvimento do homem em grupo.

Com efeito, o vocábulo Estado vem do latim "status", que significa ordem. E da palavra...

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