Tributação e solidariedade no estado brasileiro

AutorPaulo Sergio Rosso
CargoProcurador do Estado do Paraná, Mestre em Ciência Jurídica pela UENP, Professor de Direito Tributário.
Páginas2-12

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Introdução

O artigo 3º, inc. I, da Constituição brasileira (BRASIL, 2008, on line) posiciona o princípio da solidariedade entre um dos objetivos da sociedade: “construir uma sociedade justa, livre e solidária”. Tomando o princípio da solidariedade social como ponto de partida, que implicações sua presença no ordenamento pátrio há de provocar sobre o Direito Tributário? E como o sistema tributário adotado pela Constituição brasileira pode refletir, em seus fundamentos, o princípio da solidariedade?

Não se pode pensar na construção de uma sociedade solidária sem a solução do problema atinente à distribuição de renda que, como é sabido, encontra no Brasil um dos seus piores exemplos já que, historicamente, o país apresenta abismos sociais chocantes, apresentando regiões altamente desenvolvidas, que rivalizam com os países ricos, e outras de pobreza extrema, semelhantes àqueles encontradiços em pobres regiões africanas.

O presente artigo pretende destacar o papel – pouco lembrado – do Direito Tributário em seu aspecto modificador da realidade. O princípio da solidariedade vem sendo destacado como um fator de justificação da própria tributação, relegando ao limbo das teorias ultrapassadas as concepções de que o tributo nasceria do poder estatal ou do benefício ocasionado pelo Estado aos cidadãos. Pretende-se posicionar a questão da tributação analisada sob seu aspecto distribuidor de renda. Por isso, questiona o papel do próprio sistema tributário e, por consequência, a atual visão do Direito Tributário em seu caráter prospectivo, de modificação do status quo. Tece, também, um breve histórico do Estado fiscal, demonstrando que a visão da tributação integrada aos objetivos fundamentais da Constituição é uma decorrência do aprimoramento do próprio Estado.

1 A redistribuição de riquezas

Toda sociedade organizada tem sempre uma questão a solucionar: de que forma os recursos produzidos e arrecadados pelo poder central serão redistribuídos.

O sistema de redistribuição de bens abrange o sistema arrecadatório, desempenhado principalmente pela tributação, o sistema financeiro, que dispõe como tais recursos serão canalizados dentro do Estado, e o sistema distribuidor, que diz como os recursos retornarão à sociedade. Muito comum é que a classe detentora do poder decida não distribuir e aplicar os recursos arrecadados na própria estrutura burocrática; ou, ainda mais usual, é redistribuir os bens de forma a manter as desigualdades. Em suma, “quem detém o poder decide se e como deve ocorrer a redistribuição dos bens circulantes”.2 (FAEDDA, 2007, on line, versão nossa).

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Segundo Faedda (2007, on line, versão nossa): “Os sistemas redistributivos permitem a um poder central acumular bens e reutilizá-los de modo estratégico: eis porque quando nasce uma economia redistributiva se tem o pressuposto para o desenvolvimento de classes sociais e de um Estado”.3

Muito embora participe apenas da primeira fase desse sistema redistributivo (arrecadação) o tributo exerce importantíssima função redistributiva porque o simples fato de se decidir sobre quem incidirão os tributos já implica em redistribuição: incidindo sobre a sociedade em geral, uniformemente, a implicação será de concentração de renda; recaindo mais severamente sobre os ricos do que sobre os pobres, a tendência será de redistribuição, salvo se o retorno dos recursos, no terceiro instante, da aplicação, se der em favor da mesma classe dominante.

Lobo Torres (2005, p. 348) distingue entre os princípios da distribuição e da redistribuição de rendas. Este último teria natureza orçamentária:

Leva em conta simultaneamente as vertentes da receita e da despesa, ao fito de transferir renda dos mais ricos para os pobres e miseráveis. Opera sob a consideração da justiça por transferência, particular subprincípio da justiça distributiva.

Já o princípio da distribuição de rendas não se ocupa com as transferências, mas com a tributação de acordo com a capacidade do contribuinte e sua justiça:

John Rawls observa que o princípio da distribuição de rendas, subordinado ao ramo das finanças públicas que Musgrave chama de distributivo (distribution branch), atua mediante a tributação e os ajustes na propriedade; ao dispor sobre o imposto de heranças e ao estabelecer restrições ao direito de doar, não tem por objetivo coletar tributos para o governo, mas corrigir a distribuição de riquezas e prevenir as concentrações de poder que prejudiquem o “justo valor da liberdade política e a igualdade de oportunidade”. (LOBO TORRES, 2005, p. 348).

O que importa fixar, por ora, é que o sistema tributário está incluso no sistema redistributivo que é, talvez, a principal função do Estado.

Nas sociedades antigas o chefe acumulava bens mediante a coleta de tributos e dessa forma passava a ser possuidor de um privilégio que também seria um dever moral, qual seja, redistribuir os bens aos súditos. (FAEDDA, 2007, on line).

No Estado moderno ocidental, essa situação não foi modificada, muito embora não se encontre mais uma pessoa natural que seja a responsável pela redistribuição; esta função foi delegada a um ente criado pelo intelecto humano: o Estado.

Porém, seria um equívoco afirmar que as preocupações com a justiça na redistribuição de recursos seja uma característica típica do ideal de Estado democrático.

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Note-se que mesmo no Islamismo, onde não há uma contundente divisão entre Estado e religião, o conceito de redistribuição está presente:

esse [o direito islâmico] prevê um tipo de imposto, a zekaa, qual seja, a décima sobre o bruto, recolhida sobre os bens em geral que resulta uma verdadeira esmola legal, que a própria lei destina aos pobres, aos soldados da guerra santa, à libertação dos escravos e dos devedores.4 (FAEDDA, 2007, on line, versão nossa).

Na história e em sociedades muito diferentes das atuais, a preocupação em garantir um mínimo de recursos para as classes carentes já estava presente, como ocorria, por exemplo, entre os astecas. Nos primórdios de sua organização social, os soberanos tinham o dever de zelar pelos pobres, viúvas e órfãos. Na ocasião de sua investidura, os sacerdotes relembravam ao soberano seu dever de distribuir alimentos aos idosos. À época dos festejos em honra à deusa Xilonen estes recebiam vestidos e víveres. (FAEDDA, 2007, on line)

Nas civilizações clássicas como na Grécia e na Roma antiga os tributos quase sempre recaíam sobre o povo, os camponeses, os estrangeiros e os comerciantes. Justiça social, na época, dizia respeito apenas às classes importantes.

No período feudal, em que as terras do reino estavam nas mãos de reis, nobres e Igreja, estes as arrendavam a pobres camponeses que, em troca, deviam trabalhar parte da semana para o senhor feudal. O rei dependia muito dos barões feudais, em especial porque eles arrecadavam os tributos; tal direito – de tributar – era adquirido pelos nobres que pagavam ao monarca pelo direito de seu exercício. Pela tributação, o camponês adquiria o direito de explorar a terra (PEREIRA, 1999, p. 7-8). A nobreza estava dispensada de pagar tributos, posto que, de acordo com o pensamento medieval, já prestava grandes favores ao reino ao fornecer exércitos para sua defesa. Da mesma forma, o clero não pagava tributos por desempenhar missão espiritual e educativa, esta limitada aos jovens da nobreza. (PEREIRA, 1999, p. 9).

O antigo regime francês, afrontado pela Revolução de 1789, caracterizava-se por ser altamente discriminatório em termos tributários, conforme jocosamente explana Nogueira (1997, p. 72):

A nobreza não estava sujeita a impostos porque – tal a fundamentação política e filosófica então imperante –...

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