Elementos para uma sociologia da diversificação do campo jurídico brasileiro pós-redemocratização

AutorFabiano Engelmann
Páginas100-115

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Introdução

Este artigo* pretende propor um esquema de análise que contribua para melhor apreensão dos padrões de estruturação do campo jurídico brasileiro, que se configurou a partir da redemocratização política do país. Para a construção desse referencial de análise, parte-se da abordagem de três grandes eixos. Um primeiro relaciona a expansão do ensino de pós-graduação em direito e a produção de definições e métodos de interpretação sociais para o conhecimento jurídico. Um segundo eixo analisa a relação dos juristas posicionados nas carreiras de Estado com o mundo político. Finalmente, um terceiro eixo propõe caminhos para a análise dos fenômenos relacionados à tradução de causas políticas para o espaço jurídico, protagonizados pelos advogados de causas coletivas, os cause lawyers.

Nesses termos, pode-se tentar compreender a emergência das condições e possibilidades de uso do direito como instrumento de “transformação social”, em detrimento da tradição de relação dos juristas com a conservação da ordem social. A comparação do caso brasileiro com o europeu e americano também contribui para a construção desse esquema de análise 2 .

O ensino universitário como lugar de produção do “direito alternativo”

A problematização do “social” no âmbito das carreiras jurídicas representa um conjunto de tomadas de posição acerca de definições do direito construídas a partir da apropriação da sociologia e da filosofia do direito. Na fundamentação da doutrina jurídica produzida em torno dessas disciplinas, é protagonizado o debate sobre o direito alternativo ou o uso alternativo do direito. Nesse sentido, a sociologia do direito ou sociologia jurídica, assim como o conjunto de fundamentações filosóficas que põe em jogo as definições de Justiça, Estado e Direito aparecem como recursos dos juristas que se apresentam como críticos dos juristas tradicionais no espaço jurídico. Esses últimos, no campo das batalhas doutrinais, fundamentam suas definições na interpretação do conjunto de repertórios legais codificados, reivindicando a autonomia da ciência jurídica frente à sociologia.

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A origem da expressão “alternativos” no âmbito do judiciário remonta aos movimentos de magistrados ocorridos na Itália e Espanha na década de 1970 3 . No caso italiano, é atribuído às mobilizações articuladas pelas associações de magistrados que surgiram após o período fascista, principalmente no final da década de 1960 (ANDRADE, 1998).

Dentre os principais recursos utilizados para a legitimação dos juristas “críticos” ou “alternativos” no espaço jurídico está a gestão dos títulos acadêmicos de pós-graduação, particularmente de doutorado, no espaço do ensino universitário do direito no Brasil, na década de 90. A relativa escassez de titulação acadêmica dos professores de direito e a ampliação das exigências por parte da política conjuntural do Ministério da Educação para a certificação dos cursos de graduação são fatores a ser considerados na análise da ascensão de agentes marginalizados nesse espaço.

Os juristas com maior titulação acadêmica hegemonizam tanto a direção dos cursos de graduação e principalmente de pós-graduação quanto as comissões e os conselhos de ensino do Ministério da Educação e da Ordem dos Advogados do Brasil. Da mesma forma, as exigências institucionais de mestres e doutores nos cursos de direito também criaram tensionamentos com o padrão do bacharel-professor, invariavelmente oriundo do mundo dos “práticos”, forçando uma profissionalização relativa da atividade docente.

No que tange à produção intelectual, o espaço ocupado por juristas portadores de títulos de doutorado, profissionalizados na atividade docente, está associado à expansão de um conjunto de repertórios e definições da doutrina jurídica e de um determinado tipo de pesquisa acadêmica. Esses juristas profissionalizados no ensino universitário são responsáveis por uma produção intelectual que tem lugar no espaço relativamente autonomizado dos cursos de pós-graduação e se caracteriza por uma relação ambivalente com o mundo dos “práticos”.

A tematização de problemáticas jurídicas, como as questões sociais, que envolvem a interpretação do direito ou os novos direitos públicos, protagonizada nos cursos de pós-graduação, implica novas hierarquizações das disciplinas jurídicas. Temas tradicionalmente dominados, com menor prestígio, adquirem destaque. O uso da “sociologia” cresce como auxiliar interdisciplinar na fundamentação das definições que envolvem temáticas, ligadas aos novos direitos públicos. Essa apropriação das ciências sociais ocorre numa perspectiva mais empírica, por meio da incorporação de instrumentos de pesquisa de campo, ou ideológica, pela utilização de conceitos para a fundamentação da crítica das formas de uso do espaço judicial protagonizada pelos juristas tradicionais.

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Nesses termos, a sociologia do direito que emerge nessas bases legitima uma série de temas relacionados a um perfil de juristas militantes, como os direitos humanos, direitos sociais, acesso à justiça e a criminologia. Num mesmo sentido, propõe redefinições “alternativas” de disciplinas mais tradicionais, como o direito civil ou o processo civil, temáticas de especialização vinculadas aos juristas mais conservadores.

A filosofia do direito legitima-se como modernizadora na fundamentação dessas definições, por meio da formalização e da tradução para a linguagem jurídica das tomadas de posição “críticas” e “sociais” dos juristas. Nesse sentido, o uso de diversos conceitos importados dos mais variados sistemas filosóficos, notadamente os relacionados à hermenêutica, contribui para uma refundação sofisticada dos repertórios de doutrina mobilizáveis nas confrontações entre juristas.

Invariavelmente, o maior investimento intelectual na “sociologia” corresponde ao menor prestígio da disciplina no interior do espaço de concorrência entre juristas. Nesse caso, inserem-se, exemplificativamente, o direito penal e o direito do trabalho, que podem ser tomados como disciplinas que utilizam em maior grau as ciências sociais para sua fundamentação. O objetivo principal da sociologização é a aproximação do direito com a realidade dos grupos socialmente dominados, redefinindo os critérios de decisão num sentido “social” ou “crítico”, em relação aos usos protagonizados pelos segmentos tradicionais.

Segundo Dezalay et al. (1989), para o caso americano, as lutas doutrinárias englobam conflitos entre grupos que se formam no interior do espaço jurídico. A relativa autonomização do palco dessas lutas num espaço universitário mantém uma relação dúbia com o mundo “prático”, como no caso do movimento de contestação da tradição jurídica americana, legal realists, já no final da década de 40.

O mesmo autor demonstra como a “sociologia do direito” americana comporta, num primeiro momento, a crítica ao direito positivo e ao formalismo e, posteriormente, constitui -se como uma aposta profissional. No universo das tomadas de posição, a sociologia aparece como importação de conceitos e métodos das ciências sociais para as práticas jurídicas, legitimando uma metodologia crítica na interpretação das normas. Nesse sentido, constitui uma oposição legítima que domina o debate entre os “formalistas” ou positivistas (ligados à tradição) e os “críticos”. Desse modo, opõem-se os que afirmam a “autonomia absoluta da forma jurídica em relação ao mundo social” e os que “concebem o direito como um reflexo ou utensílio ao serviço dos dominantes” (BOURDIEU, 1986, 12).

Esse fenômeno, no caso americano, envolve também o movimento law and society, em certa medida, sucessor dos juristas críticos, legal realists .

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O movimento Direito e Sociedade emergiu no fim dos anos 60, sendo responsável por um conjunto de reflexões críticas acerca do espaço das faculdades de direito tradicionais nos Estados Unidos. Nesse movimento, liderado por professores de direito, entrou em jogo também a autonomização relativa do espaço do ensino universitário em relação ao mundo das carreiras práticas.

Vauchez (2001 b) acentua que o sucesso dessas empresas científicas de crítica do direito e de trabalhos sociojurídicos esteve estreitamente vinculado à criação de um mercado da pesquisa sociojurídica, a partir de 1950. As pesquisas, nesse caso, foram financiadas por fundações privadas e agências governamentais, particularmente nas temáticas do “acesso à justiça” e da “guerra contra a pobreza”.

No caso brasileiro e no caso francês 4 , a sociologia jurídica e a sociologia do direito, além de fundamentar a crítica da tradição jurídica, servem para a tradução de temas sociais para o espaço judicial. Isso ocorre tanto no interior dos cursos de pós-graduação quanto na expansão do uso dos conhecimentos relacionados a essas disciplinas em outras esferas sociais. Dentre os casos representativos desses usos, está a mobilização do espaço judicial por diversas modalidades de movimentos sociais e ONGs, envolvendo a mise en forme jurídica de causas “políticas” e “sociais”.

Dentre os mais representativos, pode-se citar o “movimento do direito alternativo”, que surge a partir da mobilização de um grupo de magistrados e das redes de advogados que atuam em causas coletivas, estreitamente vinculados a movimentos sociais e ONGs. Notadamente, esse último caso refere-se à advocacia praticada pelas ONGs de defesa de direitos humanos, direitos ambientais, direitos da infância e da adolescência e direitos da mulher e ao movimento dos trabalhadores Sem-terra.

Também se pode destacar um conjunto de estudos que tratam das crises do direito. Elas aparecem em posicionamentos preocupados com a “mediocridade do ensino jurídico” 5 e com a...

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