O Estado Social e sua Evolução Rumo à Democracia Participativa

AutorFernando Basto Ferraz - Elizabeth Alice Barbosa Silva de Araujo - William Paiva Marques Júnior
Páginas187-199

Page 187

Dentre todas as idades de crise por que já passou o pensamento político, nenhum talvez se compare em extensão e profundidade com a que ora atravessamos, debaixo de visível sentimento de angústia e incerteza.

Os que vivem à poca do liberalismo - os nossos ditosos antepassados - podiam romanticamente considerar o problema do Estado com a presunção otimista da haver criado um mundo melhor e mais sólido, baseado na utopia revolucionária dos direitos do homem.

O Estado liberal humanizou a ideia estatal, democratizando-se teoricamente, pela primeira vez, na Idade Moderna. Estado de uma classe - a burguesia - viu-se ele, porém, condenado à morte desde que começou o declínio do capitalismo.

Ao redor do mesmo, acendeu-se a luta a que assistimos.

Aqui, o advento da quarta classe, a ofensiva do Estado socialista contra o Estado burguês, feita com as armas da dialética marxista.

Ali, a diligência da teoria democrática por evitar que a transição conduza necessariamente àquele resultado, ou seja, ao Estado da última classe - o proletariado - como já acontece em vasta área de países socialistas do Oriente e, sim, ao Estado de todas as classes, como pretende ser o Estado democrático do Ocidente; ditado pelas mudanças inevitáveis do capitalismo e pelo imperativo da justiça social, que obriga ao abandono das antigas posições doutrinárias do liberalismo. O conflito essencial se trava, pois, a esta altura, entre o Estado socialista e o Estado social das democracias ocidentais.

O que temos em vista, aliás, estudar, não é esse embate ideológico, de suma importância para os destinos políticos do gênero humano, mas os aspectos fundamentais e não menos relevantes que acompanham a ruptura definitiva do Estado liberal e sua substituição pelo Estado Social.

Page 188

Com este, deu-se o esgalhamento de rumos. Uns quiseram fazê-lo totalitário: os da direita, em harmonia com o capitalismo, malsucedidos; os da direita, mediante abolição do sistema capitalista, ainda em fraco combate. Outros, os do lado de cá, desejosos de conservá-lo democrático, amparado na ideia de conciliação de personalidade com a justiça social.

Examinaremos, assim, nas páginas que se seguem, o que ficou do antigo Estado liberal, tão incompreendido por quantos, afoitamente e desprovidos de serenidade, se cingem a uma rejeição superficial e liminar de todos os seus princípios.

O capítulo acerca de Kant se justifica pela primeira repercussão de seu pensamento social político, nomeadamente na esfera do direito.

A filosofia kantista, em matéria política, é o coroamento doutrinário do liberalismo e se enquadra, indiscutivelmente, na fase já adiantada desse movimento. Exprime a maturidade por ele alcançada em fins do século XVIII, quando impetuosos e triunfante, graças à ação revolucionária - seguro já pelas energias arregimentadas para conter a reação medieval da nobreza decadente, e não menos seguro em arrostar a reação absolutista das realezas ocidentais -, podia adormecer tranquilo quanto ao socialismo, que ainda lhe não batia às portas, e cujos vagidos remotos vinham de longe, quase imperceptíveis, quebrar-se, por muitos anos, em protestos inocentes nos esquemas pomposos da utopia.

Sob a mesma inspiração, estudamos aspectos da influência de Rousseau, Hegel e Marx, que formam os elos da grande cadeia social, responsáveis pelas mais célebres precipitações doutrinárias, que conduziram, na Idade Contemporânea, à superação final daquilo que, correspondendo aos começos da Revolução Industrial, foi a estrutura primária da ordem capitalista, no seio do qual se gerou o antigo liberalismo da burguesia.

Quando se chega ao Estado social, já ficou para trás toda uma concepção de vida, com as tradições de um passado morto e irrecuperável.

O Estado social é, sob certo aspecto, decorrência do dirigismo que a tecnologia e o adiantamento das ideias de colaboração humana e social impuseram ao século.

De um lado, os povos que veem nele o instrumento de sua maioridade política, social e econômica. De outro, a escolha hamletiana entre a planificação livre e a planificação completa.

Mas planificação livre, planificação da liberdade? Não haverá aí contradição?

Quando se responde precisamente a essa indagação, é que o liberalismo se enrijece na sua fúria antissocial, nas objeções às medidas híbridas, que impermeabilizam algumas zonas da sociedade à plena realização da livre iniciativa.

Karl Mannheim debateu esse problema vital para a democracia moderna. E esse problema, a nosso ver, se resolve no Estado Social.

Distinguimos em nosso estudo duas modalidades principais de Estado social: o Estado social do marxismo, onde o dirigismo é imposto e se forma de cima para baixo, com a supressão da infraestrutura capitalista, e a consequente apropriação social dos meios de produção - doravante pertencentes à coletividade, eliminando-se, desta forma, a contradição, apontada por Engelis no Anti-Duehring entre a produção social e a apropriação privada, típica da economia lucrativa do capitalismo - e o Estado social das democracias, que admite a mesma ideia de dirigismo, com a diferença apenas de que aqui se trata de um dirigismo consentido, de baixo para cima, que conserva invictas as bases do capitalismo.

Todas as variações na relação trabalho-capital são superestruturais nessa última forma, pois não alteram substancialmente o sistema capitalista.

Inspirado na filosofia de Kant ser-nos-ia lícito, ademais, formular outro conceito do Estado Social contemporâneo. Caberia, nesse caso, ao estudioso aprofundar a filosofia formalista de Stammler e, em harmonia, com a linha do pensamento neokantiano, construir uma Benegriff do Estado Social, que abrangesse variações empíricas, históricas, culturais políticas dos mais distintos matizes.

O dirigismo, conceito político formal, não comporia acaso, sob esse ponto de vista, a essência do Estado social? Por esse caminho, acabaríamos na mesma conclusão que Stammler com o direito natural: um Estado social de conteúdo variável.

A saída pelo formalismo concilia, pois, a discrepância estrutural que torna irredutível o Estado social das democracias ocidentais com o Estado social dos países populares de inspiração ou organização bolchevista.

Mas não é a interpretação formalista o que buscamos. Daí por que, ao inscrevermos, no pórtico deste trabalho, uma das máximas do renovador da Teoria Geral do Estado - Geok Jellinek - o fizemos na certeza de que ela exprime e consagra substan-

Page 189

cialmente a verdade mais simples e elementar da ciência política: o dissídio milenar entre o indivíduo e o social, que chega aos nossos dias com toda a intensidade trágica de uma luta indecisa.

Pouco importa que sociólogos da estirpe de um Alfred Weber, que conta, aliás, com muitos adeptos, queiram dissimilar a agudeza desse choque ou encobrir a face dessa realidade irremissivelmente do indivíduo para os grupos sociais intermediários - desde o sindicato à escola, cada vez mais fluentes - ou então para o Estado, com o qual referidos grupos se defrontam numa pugna desesperadora de afirmação e controle.

Não negamos a importância dessas formações sociais interpostas. Estado social - o mais familiarizado com a presença de tais núcleos - ora os vê a serviço do Estado, que é o caso frequente na amarga realidade contemporâneos, ora inclinados para a ideia individual da personalidade.

Essa ideia é aquela que o Estado social e o democrático do Ocidente forceja por salvar. E para salvá-la incompatibilizou-se necessária e definitivamente com o antigo individualismo do laisses faire, laissez passer.

O Estado Social do moderno constitucionalismo europeu e americano emprega assim, nos países de sua órbita, como último recurso, técnica de compromisso, que, embora consagre modificações secundárias e progressistas, deixa, contudo, conforme vimos, intacta, em grande parte, a infraestrutura econômica, isto é, o sistema capitalista.

Instrumento, por conseguinte, da sobrevivência burguesa, postulando justiça para todas as classes, com cujos interesses, intenta conciliar-se, o Estado social, a despeito da impiedosa crítica marxista e do colapso do Estado liberal, constitui a palavra de esperança com que acenam estadistas e teóricos do Ocidente, na ocasião em que os elementos da tempestade social, de há muito acumulados no horizonte político das massas proletarizadas, ameaçam desabar sobre a ordem social vigente, impondo-lhe o dilema de renovar-se ou destruir-se.

Nele vemos a única saída honrosa e humana que ainda resta para a crise política e social dos povos que habitam a grande bacia atlântica.

No estudo oportuníssimo de lenta evolução, como a que vai do Estado liberal ao Estado social, se desenha, ademais, com assombrosa nitidez - urge repeti-lo - o embate da democracia moderna pela superação da antítese clássica indivíduo-sociedade.

Todas essas razões nos convencem, pois, de havermos versado, neste ensaio político, um tema de nossos dias.

II1

  1. Do século XVIII ao século xx, o mundo atravessou duas grandes revoluções - a da liberdade e a da igualdade - seguidas de mais duas, que se desenrolam debaixo de nossas vistas e que estalaram durante as últimas décadas. Uma é a revolução da fraternidade, tendo por objetivo o Homem concreto, a ambiência planetária, o sistema ecológico, a pátria universo. A outra é a revolução do Estado social em sua fase mais recente de concretização constitucional, tanto da liberdade como da igualdade.

    Se as duas primeiras tiveram como palco o chamado Primeiro Mundo, a terceira e quarta têm por cenário mais vasto para definir a importância e a profundidade de seus efeitos libertários aquelas faixas continentais onde demoram os povos subdesenvolvidos.

    Aí, o atraso, a fome, a doença, o desemprego, a indigência, o analfabetismo, o medo, a insegurança e o sofrimento acometem milhões de pessoas, vítimas da violência social e das opressões do neocolonialismo capitalista, bem como da corrupção dos poderes públicos. Impetram essas massas e esses povos uma solução...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT