Soberania Nacional, Normas da FIFA e Juridicidade das Janelas de Transferência

AutorTheophilo Antonio Miguel Filho
Ocupação do AutorDoutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Páginas257-268

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Ver nota 1

1. Apresentação

O propósito do presente trabalho é analisar se a normatividade oriunda de organizações internacionais de direito privado às quais a República Federativa do Brasil tenha aderido colide com a ordem positiva doméstica. Para tanto, imperioso se faz analisar a vexata quaestio sob a ótica evolutiva do outrora absoluto e isolacionista conceito de soberania, submetido, ao longo dos tempos, a um processo de erosão acarretado pela inexorável globalização e imperiosa necessidade de cooperação internacional, destinadas a contextualizar os Estados modernos dentro da sociedade internacional.

2. A personalidade jurídica de direito público estatal

Consubstancia-se o Estado na sociedade política, jurídica e soberanamente organizada, cuja finalidade é regular globalmente as relações sociais de um determinado povo, localizado em um território delimitado, e submetido a um poder.

Trata-se de ente dotado de personalidade jurídica de direito público - interno e externo -, que lhe é conferida pela Constituição2, destarte, suscetível de aquisição de direitos e obrigações perante a ordem jurídica.3

Conforme Carlos Ari Sundfeld4, "o Estado é titular de direitos (direito de propriedade sobre o prédio público, direito de punir os indivíduos etc.) e de deveres (dever de pagar os vencimentos de seus funcionários, dever de respeitar a liberdade dos indivíduos etc.). Logo, o Estado é um centro unificador de direitos e deveres. Perante o Direito, é uma pessoa".

Consequência de um Estado de Direito5, onde elabora e edita a ordem jurídica positiva e a ela se submete, relaciona-se com outras pessoas, engendrando o surgimento de relações jurídicas, direitos e obrigações perante a órbita interna e internacional. Portanto, pratica atos jurídicos.

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3. Classificação dos atos jurídicos estatais

Classificam-se esses atos estatais em legislativo, judicial e administrativo, exteriorizando-se, respectivamente, por intermédio da lei, da sentença e do ato administrativo propriamente dito. Podem estes últimos decorrer do jure imperii, quando o Poder Público age investido de suas prerrogativas próprias de autoridade, ou do jure gestionis, quando se despoja de suas prerrogativas, equiparando-se ao particular.6

O ato administrativo concebe, também, a distinção em unilateral e bilateral, conforme exija para o aperfeiçoamento a concorrência da manifestação volitiva da Administração Pública e do particular.

4. Órbitas de atuação estatal

Ente personificado que é, capaz de contrair direitos e obrigações perante terceiros, ora age no plano interno, editando norma de caráter impessoal, genérico e abstrato (função legiferante), administrando a res pública (função administrativa) e dizendo o direito aplicável ao caso concreto com o escopo de atuação do mesmo e caráter substitutivo à vontade das partes (função jurisdicional); ora no internacional, mantendo relações com Estados estrangeiros, declarando guerra e celebrando a paz, exercendo a soberania, daí defluindo sua personalidade jurídica de direito público interno e externo, exercida pelo Chefe de Governo e Chefe de Estado, conforme se depreende, respectivamente, da análise do art. 21, incisos III a XXV e I e II, da Constituição da República.

As relações mantidas com Estados estrangeiros competem ao Chefe do Executivo por intermédio da celebração de tratados, convenções e atos internacionais, conforme asseveram os incisos VII e VIII do art. 84 da Constituição da República, e regem-se pelos princípios da independência nacional, prevalência dos direitos humanos, autodeterminação dos povos, não intervenção, igualdade entre os Estados, defesa da paz, solução pacífica dos conflitos, repúdio ao

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terrorismo e ao racismo, cooperação entre os povos para o progresso da humanidade e concessão de asilo político, todos insculpidos no caput do art. 4º da Carta Constitucional.7

É cediço que, segundo concepção doutrinária dualista,8 posição à qual teria o ordenamento constitucional pátrio se filiado, sob a ótica do Supremo Tribunal Federal,9 a despeito de respeitáveis divergências doutrinárias, ao celebrar um tratado, o Estado assume perante a comunidade internacional uma obrigação de fazer, qual seja, a de transportar, por intermédio de mecanismos próprios previstos no texto constitucional, o conteúdo da norma jurídica internacional para o Direito Interno. É o que se convencionou denominar processo de integração normativa, consubstanciado na prática de um ato subjetivamente complexo, resultante da conjugação de duas vontades homogeneamente direcionadas ao mesmo escopo: a congressual, quando aprova por intermédio de um decreto legislativo (art. 49, inciso I, da Constituição da República), e a presidencial, que promulga por meio de decreto (art. 84, inciso VIII, do mesmo diploma).

Daí exsurgem importantes consequências, decorrentes da incorporação, para a soberania interna e para os órgãos estatais que exercem o poder político, mormente no tocante ao surgimento de aparente conflito de normas jurídicas, superável pela aplicação de critérios estabelecidos - cronológico, especialidade e hierárquico.

Em um mundo globalizado, a celebração de tratados internacionais de cooperação e integração é cada vez mais frequente, com importantes reflexos no exercício da soberania estatal.

Em relação à República Federativa do Brasil, esta preocupação resta explicitada perante norma programática insculpida no art. 217 da Constituição da República, inserida na Seção III do Capítulo III, que trata do Desporto. Em nível infraconstitucional, a matéria é disciplinada pela Lei n. 9.615, de 24 de março de 1998.

5. A evolução do clássico conceito de soberania

É cediço que, analiticamente, o conceito de Estado pressupõe a existência de um povo, localizado em um território delimitado, submetido a um governo que desempenhe o poder político, exercendo, soberanamente, no plano interno, as funções legiferante, administrativa e jurisdicional, ao passo que no plano internacional relaciona-se com a comunidade internacional, contraindo direitos e obrigações por intermédio da celebração de tratados, acordos e atos internacionais, norteados pelos princípios insculpidos perante o art. 4º da Constituição da República.

Assim, é o elemento soberania que vem sendo modernamente interpretado, em ambos os aspectos interno e internacional, à luz de novas concepções, exsurgindo daí o Estado Constitucional cooperativo, que se encontra albergado perante o inciso IX do art. 4º da Constituição da República.

Compreendia-se por soberania uma qualidade do poder, que viabilizava a existência independente de um Estado no plano político. Evolutivamente, o conceito passou a designar o Estado que se encontra direta e imediatamente subordinado à ordem jurídica internacional.

Trata-se de um conceito jurídico indeterminado, tal qual o de ordem pública e de bons costumes.

Sob a denominação de independência, já era identificada nas cidades-estado gregas, que tinham finalidade autárquica, vale dizer, buscavam a auto-suficiência.

A noção de soberania não se desenvolveu no supranacional estado romano, acarretando o quase desaparecimento do Direito Internacional Público, que necessita de uma pluralidade de Estados para sobreviver.

Esboça-se o teor jurídico da soberania na Idade Média. Antes do século XIII, designava-se a autoridade suprema e a recusa de toda a ingerência de um superior do nível de uma potência reconhecida legítima como autoritas, e potestas o poder público.

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Etimologicamente, soberania provém do latim superanu, grau supremo da hierarquia política, que traduz a concepção de primazia e superioridade.

Distinguindo o contrato, que obriga ambos os polos da relação jurídica, da lei, proveniente do exercício da soberania, por destinar-se, compulsoriamente a todos os súditos, Jean Bodin10 define a soberania, em 1576, na obra Os seis livros da República, como o poder absoluto e perpétuo de uma República, limitada, apenas, pelo direito natural e pelo direito das gentes.

A consolidação do Estado moderno e a transformação da sociedade internacional em interestatal são atribuídas ao absolutismo, responsável, também, pela constituição da burocracia e da força bélica, que fortalecem o poder central, detentor do monopólio do poder para as relações internacionais. Logo, a formação da sociedade internacional evoluiu do conceito de soberania, que com ela interage.

A fim de resguardar e evitar a imposição de vontade de uma monarquia às demais, surge, no século XVIII, a política europeia de equilíbrio do poder, a partir do Tratado de Utrecht (1713). Celebra-se, destarte, um acordo entre a soberania e o princípio do interesse coletivo, que não objetiva a obtenção da paz, mas impede que o domínio por uma potência acarrete o desaparecimento da soberania dos demais Estados. Exsurge o princípio da não intervenção em misteres da política interna dos demais.

Com o desaparecimento da monarquia em decorrência da Revolução Francesa, discute-se, na França, se o indivíduo é detentor de parcela da soberania - soberania popular - ou se a mesma é de titularidade da nação como um todo - soberania nacional -, embora no plano internacional seu conceito tenha permanecido intacto.

Os grandes problemas europeus passam a ser solucionados pela pentarquia, integrada por França, Inglaterra, Áustria, Prússia e Rússia, instituída em 1818 a partir do Congresso de Viena, após a queda de Napoleão Bonaparte.

A deliberação do Congresso de Troppau (1820) no sentido de não reconhecer na Europa um governo oriundo...

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