A Execução do Trabalho sob a Ótica dos Direitos Humanos Fundamentais

AutorRenato de Almeida Oliveira Muçouçah
Ocupação do AutorProfessor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia (UFU)
Páginas37-82

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1. Direitos humanos fundamentais
1.1. Denominação e conteúdo

Definir direitos fundamentais, já adianta Robert Alexy24, não é tarefa das mais fáceis e, menos ainda, daquelas que logrem eficácia. Há diversas teorias que podem dizê-los, explicar-lhes o conteúdo, o que não deixa de tornar quase impossível a conceituação deste enunciado de uma maneira generalizante, de molde a abarcar concomitantemente todas as dimensões desses direitos. Haveria a possibilidade de definir genericamente direitos fundamentais como sendo aqueles que primam pela dignidade da pessoa humana. Mas um conceito tal, certamente, padeceria por sua elevada abstração.

Não se poderá dizer, entretanto, serem apenas os direitos fundamentais aqueles que potencializam a realização da dignidade da pessoa humana. A razão da assertiva consiste em ser esse um valor, maior até mesmo que a finalidade do elenco dos direitos já citados, constituindo-se, na verdade, num princípio não circunscrito apenas à ordem jurídica, como também à ordem política, econômica, social, cultural. A dignidade da pessoa humana transcende, portanto, o plano jurídico-normativo: é o valor supremo da democracia25.

Por outro lado, a adoção de diversas teorias possíveis concernentes à significação dos direitos fundamentais poderia pecar, por absoluto casuísmo, ao desfile descritivo

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de funções, aspectos e fins dos direitos fundamentais sem, contudo, teorizá-los. Pode-se utilizar dos abstratos conceitos das diversas teorias sobre direitos fundamentais no pêndulo nem sempre linear da composição dos interesses, na discrepância de interpretações quanto a uma dada situação fática sem que, de modo algum, isto possa constituir-se num sistema.

A concepção de direitos humanos, ao menos em princípio, leva em conta justamente o paradigma da pessoa humana. Afinal, “a pessoa reúne em si a totalidade dos valores, ela é o supremo critério axiológico. [...] As ações ou omissões humanas são julgadas, eticamente, em função desse critério supremo de valores”26.

E como a cultura humana se modifica ao longo da História, também os valores, a ética e o correspondente direito. A pessoa humana é o modelo e o fundamento dos direitos humanos fundamentais, mas esse modelo de pessoa, a toda evidência, é historicamente mutável e reflete, por conseguinte, as necessidades de seu tempo.

A celeuma que sobrevive nos contornos do conceito de direitos fundamentais existe, de per si, já no tocante à nomenclatura adotada: afinal, tratam-se de direitos humanos, direitos fundamentais ou direitos humanos fundamentais? Ou haveria, ainda, outras distinções e nomenclaturas possíveis?

Jorge Miranda27 esclarece que a expressão direitos fundamentais remonta à Constituição de Weimar, e antecipa sua preferência por tal denominação. O autor lusitano afirma que há de fato direitos do homem, independentes de positivação. No entanto, os direitos fundamentais revelam-se esses mesmos direitos, mas positivados na ordem jurídica, mormente no plano da Constituição. Ademais, tais direitos transcendem o plano do direito natural, a que a expressão “direitos do homem”, ou “direitos humanos”, parece inclinar. Há direitos fundamentais do trabalhador, direitos conferidos a instituições, entes coletivos, enfim, que ultrapassariam nitidamente as barreiras da clássica teoria difundida por Puffendorf. Esses direitos exercem um papel dinamizador sobre a organização social, política, econômica e cultural e, destas, também recebe influências. Tudo isso desvincularia, segundo o citado autor, ambas as expressões.

No plano internacional, porém, prevalece o termo direitos humanos, demonstrando ficar mais clara a preocupação com o ser humano individualmente considerado, constituindo uma espécie de “mínimo ético” a ser seguido pelos Estados. De fato, a afirmação encontra respaldo não apenas na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, como também na francesa Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, embora ambas possuam propósitos bastante distintos em termos históricos. Em que pese esta Declaração setecentista ser apenas francesa, oriunda de uma Revolução, a sua marca é nitidamente voltada ao caráter abstrato e generalizante que, afinal, funda a palavra homem (e não francês,

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simplesmente). Nesse terreno, distingue-se do norte-americano Bill of Rights, que delimitou a própria independência das colônias em detrimento de um ideal libertário dirigido a todos os povos28. Portanto, a expressão direitos humanos, ou direitos do homem, encontra-se firmada no cenário internacional desde há muito, o que parece embasar a afirmação do ilustre autor das terras de além-mar.

No entanto, a razão não parece assistir, ao menos em completude, a quem pense encontrar-se o termo direitos humanos vinculado ao ideário jusnaturalista. É o positivista Norberto Bobbio que corrobora tal tese quando versa sobre o fundamento dos direitos humanos. Deve-se buscar o fundamento de algo, salienta o autor italiano, deduzindo-o de um dado objetivo humano, ou considerando as suas evidências, ou no consenso estabelecido. Ora, a natureza humana não pode ser considerada um dado necessariamente objetivo, posto que valores relacionados a ela, no curso da história, foram interpretados de maneiras as mais diversas. Também no mesmo diapasão, tudo o que parece evidente, à luz dos tempos, poderá não mais sê-lo. Para Bobbio, “a liberdade e a igualdade dos homens não são um dado de fato, mas um ideal a perseguir; não são uma existência, mas um valor; não são um ser, mas um dever-ser”29.

Um valor que atinge pela primeira vez o consenso internacional é, justamente, a proteção aos direitos humanos. Isto em 1948, quando da Declaração Universal dos Direitos do Homem, restou sobejamente demonstrado: por meio de seus representantes a maior parcela da população mundial, independentemente dos credos religiosos aos quais pertenciam, firmaram um consenso, um mínimo ético a ser seguido por todos os povos, na tendência de universalização que, afinal, marca a expressão direitos humanos. Celso Lafer30 explica que desde o seiscentista Grócio as tendências jusnaturalistas tentam desvincular razões transcendentes, como a crença em Deus, do conceito de razão humana, expressão que fundaria a possibilidade internacional do reconhecimento dos direitos humanos. Seguramente o jusnaturalismo contribuiu com a formação e a afirmação desses direitos, em que pesem as procedências da crítica apresentada por Bobbio.

Antônio Enrique Pérez-Luño define os direitos humanos como “un conjunto de facultades e instituciones que, en cada momento histórico, concretan las exigencias de la dignidad, la libertad y la igualdad humanas”31. O próprio autor adverte que se pode oferecer algumas objeções a tal definição, pois é evidente que direitos humanos apenas podem referir-se a necessidades também humanas. Tratar-se-ia, pois, de uma definição tautológica. No entanto, a pertinência da expressão necessidades

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humanas explica-se por razões históricas, que contribuem para a significação destes direitos. Há menos de dois séculos sequer se imaginava direitos humanos de natureza social e econômica, o que acentua o alargamento da concepção do que vem a ser estritamente necessário para a pessoa humana. Por isto, a citada definição reforça esse sentido.

Por outro lado, ainda segundo Pérez-Luño, citar dignidade, liberdade e igualdade na definição do que são direitos humanos poderia conferir um caráter teleológico a esse conceito32. De fato, os homens não são, por natureza, livres ou iguais; eles assim se tornam em razão, geralmente, do mundo construído — ou, em específico, do mundo das leis, mediando o Poder e a sociedade de maneira não só vertical como, também, em uma espécie de teia de relações. E Miguel Reale33demonstra como as teses do jusnaturalismo e do juspositivismo, ora apontando como explicação o sujeito, ora o fato, constituem-se em arcabouço insuficiente para a explicação do direito e em nosso sentir, também, dos direitos humanos. Toda forma de conhecimento está ligada à maneira como o sujeito consegue enxergar e apreender o objeto, sendo esta sua visão condicionada por fatores históricos e sociais pertinentes ao momento cultural do apreensor e do apreendido. A visão positivista e a naturalista, portanto, contribuíram para explicar, mas não explicaram, em definitivo, os direitos humanos e, menos ainda, sua nomenclatura.

É nesse sentido que procede a observação, em outra obra, do jurista Antonio--Enrique Pérez-Luño34, quando estabelece muito claramente que juspositivismo e jusnaturalismo se complementam no delinear dos direitos humanos: foi a associação entre o ideário humanista trazido pela segunda vertente, aliada às técnicas de positivação da primeira, que propiciaram a amplitude dos direitos humanos no plano internacional. Nesse particular é que a expressão...

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