Situando o tema: Conceitos de 'dumping Social' e de dano Social

AutorJorge Luiz Souto Maior/Ranúlio Mendes Moreira/Valdete Souto Severo
Ocupação do AutorJuiz do Trabalho, titular da 3ªVara do Trabalho de Jundiaí/Juiz do Trabalho do TRT da 18ª Região; Ex-juiz do trabalho do TRT da 3ª Região/Juíza do Trabalho, Mestre em Direitos Fundamentais pela PUC/RS, professora e vice-diretora na FEMARGS/RS
Páginas13-25

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Antes de iniciarmos a tratar dos pressupostos e dos fundamentos que sustentam a teoria que aqui iremos defender — de possibilidade de condenação, de ofício, ao pagamento de indenização por "dumping social", no âmbito de demandas individuais trabalhistas —, cumpre fixar os conceitos dos institutos pertinentes ao tema.

A necessidade dessa verdadeira preliminar à abordagem do tema se dá, por um lado, em razão do expressivo aumento de condenações por dano social, às vezes denominadas indenização por "dumping social", ou indenização suplementar, e, de outro lado, em função de uma resistência conceituai que o tema tem encontrado. Uns negam que a expressão "dumping" possa ser utilizada no contexto interno das relações comerciais de um único país, pois estaria reservada às relações internacionais. Outros asseveram que a expressão "dumping" tem natureza estritamente económica, devendo ser conceituada como a "prática de comércio internacional consistente na venda de mercadorias em praça estrangeira por preço sistematicamente inferior ao do mercado interno ou ao de produtos concorrentes, tendo como fito a eliminação da concorrência"1, o que tornaria impróprio falar em um "dumping" de natureza social, sendo que em decorrência dessa resistência, alguns advogam a utilização da expressão "delinquência patronal".

O instituto da "delinquência patronal" já foi referido, entre outros autores de nomeada, por José Augusto Rodrigues Pinto e Rodrigo Trindade2, sendo que

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este último informa que a expressão foi utilizada pela primeira vez em 19943, em artigo do professor Wilson Ramos Filho.

O Direito Penal, conforme esclarece Wilson Ramos Filho4, citando Baratta, não foi concebido para reprimir os integrantes da elite, e, por certo, o Direito do Trabalho, "o mais capitalista de todos eles"5, também não foi concebido para fundamentar atuações da Justiça do Trabalho para assegurar eficácia máxima da legislação obreira, e, por isso, as condutas "nada corretas" de diversos empregadores escapam não somente às reprimendas da Lei Penal, como também da Trabalhista.

Conforme Ramos Filho, algumas normas penais foram alteradas para considerar certas condutas patronais como delitivas, tais como a submissão do trabalhador a condição análoga à de escravo (art. 149 do CPB) e também a frustração de direito assegurado em legislação trabalhista (art. 203 do CPB), dentre outras que também punem a sonegação, mediante não anotação de CTPS e pagamento de salários "por fora".

De todo modo, na visão de Wilson Ramos Filho, as leis que impõem sanções criminais não foram feitas para os ricos, e no subconsciente coletivo os aplicadores do Direito Penal tendem a somente aceitar como crimes os atos perpetrados pelos pobres.

Neste sentido, o professor Mareio Túlio Viana certa vez disse, em um curso de formação de juizes do Trabalho, na sede do TRT de Minas Gerais, que, se ele (senhor já de idade e com cabelos brancos) entrasse em uma padaria e pedisse ao balconista seis pães, colocasse o embrulho sob o braço e saísse sem pagar, certamente o vendedor, o caixa e até os clientes gritariam: pega ladrão! Pega ladrão! E certamente até encontraria, mesmo junto aos transeuntes, alguém que lhe interceptasse, tomasse a "res furtiva" e o prendesse em flagrante. Mas, acrescentou o grande professor mineiro: se uma empresa, de forma calculada, voluntária e propositada deixasse de pagar as horas extras de seus empregados, certamente ninguém diria "pega o ladrão de horas extras!".

Está corretíssimo o raciocínio do nosso mestre. A pergunta que nos devemos fazer é, por que, afinal, furtar alguns pães é crime e não o é subtrair o fruto do trabalho e do esforço humano?

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Certamente porque as leis não foram feitas por aqueles que têm as horas extras furtadas, mas sim por aqueles que as furtam. Ocorre que o direito é uma construção complexa, que vai além da vontade restrita do legislador — embora no aspecto do Direito Penal, especificamente, a adstrição à lei seja uma característica inarredável, garantia do cidadão. O que nos parece importante destacar é que se faz necessário, urgentemente, reavaliar as práticas trabalhistas, para o fim de perceber que há uma grave violência nos atos de desrespeito deliberado aos direitos sociais, que visam a assegurar uma condição de existência digna aos trabalhadores, cumprindo aos juristas extrair do conjunto normativo, que é pautado pela predominância dos Direitos Humanos, os efeitos punitivos, exemplares, de tais condutas.

Neste sentido, as resistências conceituais, ou, mais propriamente, as intrigas quanto à melhor nomenclatura a ser utilizada, servem apenas para evitar que essa necessária evolução do Direito se produza concretamente.

A respeito das resistências conceituais (e de tantas outras), é interessante notar que o fenómeno social destacado pela teoria do "dumping social", tal qual referido no presente livro, não é desconhecido por ninguém. Em outras palavras, nenhum autor que tenha se posicionado sobre o tema, mesmo apresentando objeções conceituais, negou a existência do fato social e económico consistente na prática reiterada de descumprimento da legislação trabalhista como forma de obter vantagem económica sobre a concorrência.

Além disso, ninguém disse — nem poderia dizer, por certo — que constitui um direito das empresas buscar melhorar seu lucro e vencer a concorrência económica por meio de práticas fraudulentas, notadamente no que se refere aos direitos trabalhistas.

Bem se vê, portanto, que as objeções são muito mais terminológicas do que, propriamente, conceituais, até porque o maior erro que se pode cometer no tema proposto seria o de manter o direito alheio a uma realidade que passou a receber a necessária problematização jurídico-teórica.

O direito é um dado cultural que se constrói evolutivamente na medida das valo rações que se atribuam aos fatos sociais. A partir de uma problematização específica, o conjunto de normas e princípios, qual seja, o direito, é chamado a conferir uma resposta corretiva dos efeitos sociais nefastos identificados.

Na sociedade capitalista, o direito apresenta-se, ademais, como o instrumento regulador necessário para salvaguardar o próprio sistema, que requer padrões claros de conduta económica, e para preservar o ser humano diante desses mesmos interesses económicos tidos como legítimos.

Foi assim, por exemplo, que o tema relativo ao "assédio moral" nas relações de emprego, uma vez identificado por pesquisas médicas, atingindo preocupações psicossociais, passou a integrar o rol dos estudos jurídicos trabalhistas. Hoje, mesmo sem o advento de uma lei específica, ao contrário do que ocorria há dez anos, o assédio moral nas relações de emprego, entendido como a prática reite-

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rada de rebaixamento da condição humana do trabalhador, levando ao abalo de sua autoestima, é um fato social devidamente reprimido pelo direito. Essa situação foi identificada, problematizada e recebeu uma resposta do direito. Recebeu o nome de "assédio moral", mas poderia ter recebido qualquer outro nome, que em nada mudaria a sua essência...

Pois bem, o que se passa com o fato social e económico da prática de algumas empresas de utilizar o descumprimento sistematizado da legislação trabalhista como forma de potencializar lucros e suprimir a concorrência é exatamente a mesma coisa. Percebido o fato, ou problematizada a questão sob o ponto de vista de seus graves efeitos para o próprio propósito constitucional de regulamentar o modo de produção capitalista em consonância com o projeto de consagração do valor social do trabalho e da preservação da dignidade humana, não se pode excluir a incidência do direito sobre o problema, buscando no seu bojo os meios para as correções necessárias.

O nome que se dê ao fato é relevante como facilitador da compreensão da ideia, mas não é a sua essência. Podemos chamar a justa causa do empregador de "rescisão indireta", mas a essência não muda, muito embora, deva-se reconhecer, a expressão mais amena, no caso específico da "rescisão indireta", acabe servindo para dificultar a percepção da delinquência patronal, direcionando-se apenas para o empregado a conotação de ordem moral que a expressão "justa causa" carrega.

Não negamos, por certo, a importância da linguagem. Não é por razão diversa que demos a este estudo o título de Dumping Social nas Relações de Trabalho. Na nossa concepção é, sim, de dumping que estamos tratando e a adoção desse termo tem a relevância de não minimizar o problema, que se daria mediante a utilização de eufemismos.

De todo modo, é necessário pontuar que a eventual divergência quanto ao nome não pode, de modo algum, ser obstáculo à percepção da ideia e mais ainda à visualização do problema social identificado. Em outras palavras, ainda que se tenham bons argumentos para dizer que a expressão "dumping" é restrita às relações económicas e que sirva para relações internacionais, não se pode concluir, a partir da objeção terminológica, que o fenómeno social e económico embutido na problematização, que deu origem à reação jurisprudencial, não existe...

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