Sistema de garantias salariais

AutorMauricio Godinho Delgado
Páginas862-952

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I Introdução

A ordem justrabalhista estabelece um sistema largo de proteções ao conjunto de parcelas devidas ao trabalhador no contexto da relação de emprego. Essa proteção larga, embora tenha se concentrado, inicialmente, em especial em torno das parcelas salariais, em vista de seu caráter alimentício, passou, entretanto, muitas vezes, a alcançar também, praticamente, as distintas verbas oriundas do contrato empregatício. O sistema de garantias salariais, portanto, hoje, de maneira geral estende-se às distintas parcelas trabalhistas, embora seu núcleo básico evidentemente concentre-se ainda no salário.

Tal larga proteção manifesta-se nos princípios justrabalhistas, alguns inclusive absorvidos pela legislação heterônoma estatal, conferindo, em seu conjunto, a marca distintiva do Direito do Trabalho perante outros ramos jurídicos privados próximos: trata-se dos princípios e normas que asseguram a imperatividade de quase todas as normas juslaborais (art. 9º, CLT), que asseguram a indisponibilidade dos direitos trabalhistas (arts. , 444 e 468, CLT), e que vedam até mesmo transações bilaterais, quando lesivas ao obreiro (art. 468, CLT).

Em paralelo a essas garantias mais amplas, o Direito do Trabalho construiu um bloco sofisticado de outras garantias salariais. Ilustrativamente, há proteções no tocante ao valor do salário e no que tange também a eventuais abusos do empregador; há proteções ainda quanto ao avanço dos credores do empregador sobre o patrimônio deste, garantidor final de suas dívidas trabalhistas; finalmente, há proteções jurídicas contra os próprios credores do empregado. À exceção do primeiro grupo de proteções (incidentes sobre o valor do salário), entretanto, todas as demais tendem, hoje, a suplantar as fronteiras das estritas verbas salariais, alcançando outras parcelas trabalhistas de natureza diversa.

O Direito do Trabalho das últimas décadas, influenciado pelo advento da Constituição de 1988, tem ainda descortinado um novo largo campo de proteções: as que se voltam contra discriminações no âmbito da relação de emprego. É bem verdade que normas justrabalhistas antigas já previam o combate à discriminação de salários no contexto interno da empresa, através do instituto da equiparação salarial. Contudo, hoje, no caso brasileiro, após

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a Constituição de 1988, têm se alargado significativamente os temas postos em conexão com as ideias antidiscriminatórias, gerando um campo de estudo novo e relevante no atual Direito do Trabalho1.

II Proteções jurídicas quanto ao valor do salário

A proteção que a ordem justrabalhista brasileira defere ao valor do salário manifesta-se, essencialmente, através de três ideias e mecanismos combinados: a noção de irredutibilidade do valor salarial; os mecanismos de correção salarial automática; a determinação de existência de um patamar mínimo de valor salarial no conjunto do mercado, além de certas categorias e profissões determinadas. Esses mecanismos e idéias serão, logo a seguir, examinados.

Deve-se ressaltar, porém, que a proteção estruturada pela ordem jurídica não se estendeu, contudo, ainda, à ideia de suficiência real do salário percebido pelo obreiro. É que a noção de suficiência tradicionalmente acatada no Direito brasileiro é quase que meramente formal. O art. 76 da CLT a ela reportava-se, ao tratar do salário mínimo (contraprestação mínima “capaz de satisfazer...”, dizia a CLT). A Constituição de 1988 ampliou o rol de necessidades aventadas pelo texto celetista, ao estatuir que o salário mínimo deveria ser capaz de atender às necessidades vitais básicas do empregado e de sua família “com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social” (art. 7º, IV, CF/88).

A doutrina e jurisprudência dominantes, contudo, têm compreendido que semelhantes regras (inclusive a constitucional vigorante) jamais ensejaram direito subjetivo ao empregado no sentido de ver, efetivamente, seu salário mínimo garantindo-lhe o atendimento àquelas necessidades básicas (como já examinado no Capítulo XXI deste Curso). Noutras palavras, entre as garantias fixadas pela ordem jurídica brasileira não se entende haver, ainda, segundo a visão interpretativa até hoje dominante, a garantia da real suficiência do salário.

Não obstante o caráter abstrato e frágil, no plano do Direito, da ideia da suficiência do salário, o legislador brasileiro do século XXI decidiu conferir certa efetividade ao papel civilizatório do salário mínimo, como patamar econômico básico de aferição do valor trabalho na economia e na sociedade. Nesse contexto, passou a lhe conceder reajustamentos anuais sequencialmente superiores aos índices inflacionários — à diferença da linha desvalorizadora da parcela que fora percebida no período anterior. Com isso, passou a propiciar, em alguma medida, certa consistência econômica à ideia da suficiência do salário, sem embargo do conteúdo ainda meramente abstrato que essa ideia ostenta no plano jurídico.

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1. Irredutibilidade Salarial

A primeira linha de proteção ao valor do salário manifesta-se pela garantia de irredutibilidade do salário. Essa garantia traduz, no plano salarial, a incorporação, pelo Direito do Trabalho, do princípio geral da inalterabilidade dos contratos (pacta sunt servanda), oriundo do tronco civilista primitivo.

É bem verdade que a CLT não estabelecia texto explícito nessa linha. Contudo, a irredutibilidade sempre foi inferida não só do princípio geral pacta sunt servanda, como também do critério normativo vedatório de alterações prejudiciais ao empregado, insculpido no art. 468 da CLT. Mais do que isso, o próprio Direito do Trabalho evoluiu na direção de emoldurar princípio específico nesta área, o da inalterabilidade contratual lesiva2.

A Constituição de 1988, finalmente, incorporou, de modo expresso, o princípio da irredutibilidade (art. 7º, VI), atenuando-o com uma ressalva: “salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo”.

A ordem justrabalhista, entretanto, não tem conferido a semelhante garantia toda a amplitude possível. Ao contrário, como se sabe, prevalece, ainda hoje, a pacífica interpretação jurisprudencial e doutrinária de que a regra da irredutibilidade salarial restringe-se, exclusivamente, à noção do valor nominal do salário obreiro (art. 468, CLT, combinado com art. 7º, VI, CF/88). Interpreta-se ainda hoje, portanto, que a regra não assegura percepção ao salário real pelo obreiro ao longo do contrato. Tal regra asseguraria apenas a garantia de percepção do mesmo patamar de salário nominal anteriormente ajustado entre as partes, sem viabilidade à sua diminuição nominal. Noutras palavras, a ordem jurídica heterônoma estatal, nesse quadro hermenêutico, teria restringido a presente proteção ao critério estritamente formal de aferição do valor do salário.

É bem verdade que a jurisprudência trabalhista tradicionalmente entende que nada impede que uma norma coletiva autônoma negociada ou até mesmo a vontade contratual (unilateral do empregador ou bilateral das partes) estipule dispositivo mais favorável ao trabalhador do que o oriundo da legislação pública. Assim, não seria ilegal, por exemplo, preceito normativo de diploma coletivo negociado ou cláusula obrigacional que fixasse o piso salarial do contrato em um certo montante de salários mínimos, assegurando, desse modo, um critério de preservação contínua do valor real do salário efetivo do obreiro. Nessa linha, a propósito, tem prevalecido o entendimento jurisprudencial e doutrinário trabalhistas de que a vedação constitucional de vinculação, “para qualquer fim”, do salário mínimo (art. 7º, IV, CF/88) dirigir-se-ia às fronteiras exteriores ao Direito do Trabalho, não inviabilizando a indexação do salário contratual ao salário mínimo. É que a intenção do

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Texto Magno teria sido a de preservar a desassociação do salário mínimo legal como medida indexadora de preços e valores no conjunto do mercado e da economia, como meio de propiciar sua contínua valorização ao longo do tempo. Tal intenção não se frustraria, evidentemente, pela utilização do salário mínimo como elemento de cálculo da própria verba salarial trabalhista.

A respeito do presente tema, entretanto, cabe registrar que o STF, cerca de 20 anos depois da vigência da Constituição da República, editou a Súmula Vinculante n. 4, de 2008, no seguinte sentido: “Salvo nos casos previstos na...

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