O silêncio de um olhar para dentro: as novas relações sociais no contexto de um novo mundo do trabalho

AutorMoacyr Araújo Côrtes
CargoGraduando do Curso de Direito da Universidade Federal da Bahia ? UFBA
Páginas53-70

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1. Introdução

Vivenciamos tempos difíceis perante o Direito do Trabalho brasileiro. Nuvens carregadas em forças ideológicas diversas se avolumam e recobrem a realidade de exploração e opressão, impelindo a apegos de representações distorcidas do que seria uma fotografia leal das necessidades sociais. Como num nimbo, a passividade extravasa em torrentes silenciosas de múltiplos enfrentamentos entre as classes dos trabalhadores e a do empresariado, carregando em sua substância as disputas pelos espaços onde se faz o trabalho contemporâneo, desde o legislativo até as ruas. Formam-se, com isso, verdadeiros alagadiços que acabam por conjecturar premeditadamente a sustentação da poderosa mesquinhez dos interesses do capital à base do afogamento das garantias e direitos individuais e coletivos duramente conquistados.

Liquefeitos nas vestes da pós-modernidade, destes conflitos extravasa a energia sobre eles empregada, propagando-se em sucessivas ondas de retrocessos e avanços que, por vezes, permitem um novo suspiro, assim como uma longa e duradoura asfixia social. E meio que silenciosamente percebemos a ronda dos olhares mais aguçados que, nesse ambiente nebuloso, atuam como lanternas que tentam entender, esmiuçar, e iluminar as novas artimanhas, peripécias e expectativas perante os lados categóricos. A realidade, por sua vez, passa a ser “esclarecida”, e nos encontramos em meio a uma louca sinergia de conjunção, perante a qual se edificam as reinvenções e reincorporações da antiquíssima lógica de acúmulo sob as novas vestes da competitividade, da qualidade, e eficiência, como também em “inovadoras” formas gestão da força do trabalho, ampliação da produtividade, alteração no relacionamento das empresas e organização da produção.

Pautando-se por uma “nova” perspectiva a reestruturação torna-se desmedida; reestruturam-se as formas de produção, reestruturam-se as ideias de racionalização e redução de custos das empresas, reestruturam-se os fundamentos da alta lucratividade, reestruturam-se as instituições estatais para incorporarem esse processo político e ideológico, reestrutura-se, enfim, a vida das pessoas, tudo o que então concatenado à lógica destrutiva do mercado, na qual o capital vale sempre, e a força humana de trabalho só conta enquanto parcela imprescindível para a reprodução deste mesmo capital. E assim, um voraz receituário empresarial se faz presente, espalha-se esvoaçante pelo mundo, empunhando uma lança de duas pontas, com a qual, por um lado, digladia-se pela expansão e, por outro, principia por novas formas de administração e gerenciamento do que já se tem assegurado, cominando numa única sangria: a da precarização das formas de trabalho.

É sobre esse cenário de ameaçadoras realidades, ilustradas em palavras simbólicas, que se pretende principiar numa análise que possa contribuir para um mínimo de entendimento diante de um novo mundo do trabalho. Um mundo do trabalho em plena transformação, no qual o franco processo de reestruturação da produção e dos modelos que a representa passa a interferir em variadas esferas sociais, principalmente no Direito que a sustenta e lhe oferece um arcabouço de falsas legitimações. Por isso, afirma-se importante trazer à tona as percepções e representações forjadas dentro desse processo produtivo, a fim de se desenvolver uma análise sobre a realidade vivenciada por sujeitos diversos. Para tanto, serão analisadas em capítulos algumas novas facetas jurídico-sociais que em seu em conjunto corroboram com a visão exposta nesta iniciação.

2. Afetações de uma nova reestruturação produtiva

O itinerário histórico de efervescência da segunda metade do século XIX agitou profundamente o desenvolvimento do mundo do trabalho, marcando o estabelecimento da II Revolução Industrial com os seus modelos procedimentais básicos propugnados por Taylor e o empresário Ford. Neste percurso

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histórico, postulava-se a maior precisão das ferramentas e máquinas, a uniformidade do ritmo de trabalho e a padronização extensiva da produção, impelindo a reinações de padrões organizacionais nos quais o trabalhador assumiria a função precípua de instrumento do sistema produtivo. Estes modelos, o taylorista e o fordismo, serviram de sustentáculo para o pensar ostensivo sobre o labor na indústria, no sentido de entendê-lo, esmiuçá-lo e dividi-lo sistematicamente ao seu limite possível, de cadenciá-lo à execução constante pela direção do empregador e subordinação do empregado, e conduzi-lo ao gerenciamento da produção em larga escala dentro de um mercado em pleno crescimento.

A ideia era a de maior sistematização das atividades laborais e a utilização de uma metodologia diferenciada que propunha transformar o disciplinamento nas fábricas para torná-lo menos físico e, por outro lado, impor uma racionalização alienante que dificultasse a resistência individual e recrudescesse a coletiva. Para tanto, sistemas verticalizados foram implementados, o domínio crescente sobre as etapas do ciclo produtivo era a ordem expressa, funcionava-se rigidamente, seguindo metas traçadas de cima para baixo, sem espaço para grandes mudanças. Numa economia de escala vivenciava-se uma época de estabilidade e garantia da produção homogênea. E, no itinerário duma produção em massa, exigia-se o mesmo comportamento dos seus operários, das associações de classe, e do próprio Direito do Trabalho que caminhava em franca expansão, regido pela ampliação político-ideológica e o poder de regulamentação concomitante do chamado Estado de “Bem-Estar Social”. Uma época em que “O emprego (...), passa a despontar como principal veículo de inserção do trabalhador na arena socioeconômica capitalista, visando propiciar-lhe um patamar consistente de afirmação individual, familiar, social, econômica e, até mesmo, ética”1.

Muito embora tal estabilidade aos olhos leigos parecesse eterna, logo ao fim dos anos 60 esse modelo começou a dar alarmantes sinais de esgotamento. Percebeu-se a conjunção de diversos fatores de âmbito interno às indústrias, assim como de âmbito social que infiamaram ao estabelecimento de um forte período de recessão, a exemplo da crise econômica no início dos anos 70 advinda das constantes altas dos preços do petróleo (crise do petróleo), das progressivas inovações tecnológicas que não alcançava a todos, das modificações radicais na organização da produção e a necessária competitividade com países orientais, da necessidade do combate ao desemprego2.

Somando-se a isso, têm-se dois fenômenos que se articularam, inicialmente nos países mais avançados e depois se alastrando por todo o mundo, para potencializar a crise: a onda de rebeliões da classe trabalhadora, que desejava maior cota na riqueza construída durante as décadas anteriores, questionando o poder diretivo, e exigindo maior cogestão, assim como a queda vertiginosa nas taxas de lucros, provocada pela defasagem entre a produção crescente e o consumo que diminuía3.

Como alternativa viável à mantença na lucratividade dos negócios, começava a emergir um novo modelo da produção capitalista, caracterizado pela acumulação flexível e desregulamentada (ou regulamentada prol empresariado)4. Um modelo no qual os processos de trabalho modificavam-se em inovações tecnológicas e fiexibilidades, tanto em seus produtos que passariam a ser confeccionados e disponibilizados na medida da demanda de mercado (evitando dispêndios

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com excedentes), quanto no entendimento dos novos padrões de consumo diminutos, assinalando novas formas de comércio, da prestação de serviços, novos mecanismos de disputa de mercados e, de maneira precípua, novas formas de organização desse trabalho. E assim, remodelavam as indústrias a seguirem um diferenciado conceito de administração horizontal do processo produtivo, orientada à qualidade em todos os sentidos organizacionais — Qualidade Total no planejamento, na organização, e no controle da atividade produtiva. Um modelo de produção fiexível, apoiado na transferência de etapas de produção às “empresas parceiras”, com a formação de grandes grupos econômicos.

Ganha notoriedade e ocidentalização o modelo japonês de organização fabril, também conhecido como Toyotismo, que fora pensado para implementar novas técnicas de administração, principalmente a supressão da burocracia corporativa desnecessária (downsizing), o salário individualizado por produtivi-dade, a manutenção de um fiuxo contínuo de produtos com vistas à eliminação de estoques (kan-ban) e a produção em tempo real (just-in-time)5. Os capitalistas à frente deste processo de mudança garantiam a prioridade da redução de custos, pensavam a todo o instante a produtividade do trabalhador, defendiam a competitividade, conduziam à fiexibilização em lugar da rigidez, alienavam para a neutralização dos conflitos, fazendo o mundo do trabalho transformar-se drasticamente. Não foi por acaso que a mencionada redução de gastos atingiu em cheio a mão de obra assalariada, sempre com a finalidade da elevação dos lucros. Os idealizadores deste projeto, e quem os adotou, acordaram pela lógica do crescente excedente de trabalhadores desempregados, comprimindo os salários sempre para baixo e tornando esteexército de reserva” maior e cada vez mais dócil.

Em consequência, espalha-se entre os próprios trabalhadores o temor real constante (de sobrevivência), que incentiva a competitividade e o aumento da produtividade, de modo a criar uma nítida pressão psicológica à concorrência individual entre eles, quebrantando o senso de coletivismo associativo. Seguindo tal parâmetro destrutivo, as empresas implementam em larga escala a proposta da terceirização, reaproveitando parte dos...

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