Os sessenta anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas: contribuições e perspectivas

AutorDanielle Annoni
CargoDoutora em Direito pela UFSC. Professora dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação da FACINTERPR e UNOESC-SC. Fellow da CAPES na Espanha e Inglaterra no período acadêmico 2003-2004. Autora de várias obras e artigos acerca do direito de acesso à justiça e dos direitos humanos
Páginas19-35

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1. Introdução

A Declaração Universal2 das Nações representa, desde 1948, quando de sua promulgação, um marco na defesa internacional em prol dos direitos humanos. Considerada, primeiramente, como uma carta de princípios meramente declaratória, a Declaração Universal, como é comumente conhecida, foi, com o passar dos anos, conquistando notoriedade e significado para além de um simples texto sugestivo, simbolizando muito mais do que os direitos ali consagrados e atingindo uma representatividade muito maior do que a dada pelos 48 Estados que à época a ratificaram.

Com efeito, ao comemorar 50 anos, ainda na década de 90, foi exaltada pelos mais brilhantes estudiosos das mais diversas áreas do saber, dentre juristas, filósofos, sociólogos, internacionalistas e teólogos, o que reflete seu alcance e impacto nas gerações de pesquisadores do pós-guerra.

Atualmente, nos mais diversos âmbitos acadêmicos, o estudo da Declaração Universal é obrigatório, não somente como instrumento histó- rico de positivação dos direitos humanos no plano internacional, com conseqüente influência na positivação no plano interno dos Estados, mas Page 20 sobretudo como norma imperativa de direito internacional, concebendose como verdadeira regra cogente, a materialização do novo Ius Cogens a conduzir à criação de um novo Ius Gentium.

Neste passo, apesar das críticas ao texto da Declaração Universal, que não consagra plenamente os direitos sociais, econômicos e culturais3, tampouco prevê mecanismos de efetivação dos direitos ou sanções aos seus violadores, a Declaração segue imponente, servindo de modelo não apenas na consolidação dos sistemas regionais de proteção aos direitos humanos, mas também nas reformas legislativas e constitucionais dos Estados ocidentais.

Se este impacto político e idealista da Declaração, algumas vezes deturpado e utilizado como recurso meramente retórico, pode, por um lado, conduzir ao uso indevido do discurso de proteção aos direitos humanos como instrumento de ingerência, sobretudo ideológica, de uns Estados sobre outros, por outro lado, remete ao resgate da humanidade e do sentimento de esperança e solidariedade que moveu os Estados a se unirem após a Segunda Guerra Mundial, sentimento este tão necessário na conquista da paz e na efetivação dos direitos humanos.

Neste espírito, o presente artigo tem o objetivo de analisar o legado da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU no reconhecimento e na positivação dos direitos humanos no plano internacional, bem como sua influência na incorporação pelos Estados dos direitos con-sagrados em seu texto e sua contribuição ao reconhecimento e efetivação dos novos direitos.

2. O Reconhecimento dos Direitos Humanos no Plano Jurídico-Normativo

O processo de evolução dos direitos humanos não é recente. Em ver- dade, ele remonta, como visto, à Antigüidade. No entanto, é somente na segunda metade do século XX, precisamente após a Segunda Guerra Page 21 Mundial, que a preocupação com a proteção dos direitos humanos alcançou status internacional, apesar dos esforços anteriores, sobretudo no campo do Direito Humanitário4. O marco histórico-político-jurídico desse movimento de universalização dos direitos humanos centrou-se na Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) de 1948, que retomou, após um século e meio, as esperanças de elevação do indivíduo, contidas na Declaração Francesa de 1789.

O movimento internacional dos direitos humanos, nascido dos escombros da Segunda Guerra, tinha por lema promover a proteção de qualquer ser humano em qualquer lugar, o que resultou por conferir aos direitos humanos duas características essenciais, quais sejam: a universalidade e a indivisibilidade. Entender que os direitos humanos são universais significa que devem ser respeitados por todo e qualquer Estado ou governo, em meio à diversidade cultural, que não pode ser utilizada como justificativa à sua violação. Entender que esses mesmos direitos são indivisíveis, implica dizer que não são hierarquizáveis, ou seja, não há diferenças entre eles que justifiquem a efetivação de uns em detrimento de outros5.

Essas características trouxeram não apenas mudanças na fundamentação dos direitos humanos, ora entendidos como aqueles inerentes a todo ser humano, mas também nas relações internacionais, inserindo o conceito de cooperação num mundo antes povoado pela idéia de disputa6.

Essa cooperação entre Estados deu origem a diversas organizações internacionais, dentre elas a Organização das Nações Unidas, que abriu caminho para que os Estados assumissem obrigações, no que tange ao Page 22 respeito para com os direitos humanos, também com os nacionais de outros Estados. A partir dessa Carta de Princípios floresceu uma série de Tratados e Convenções Internacionais de proteção aos direitos humanos, conferindo novamente autonomia ao indivíduo e restabelecendo a paz estável7 entre as Nações, requisito fundamental para fazer prosperar o comércio internacional8.

O direito internacional dos direitos humanos deriva, pois, desse movimento de reconhecer, respeitar e garantir direitos específicos aos cidadãos de todo mundo, conferindo obrigações internacionais aos Estados e responsabilizando-os pela sua violação. Nesse contexto, Dunshee Abranches conceituou o Direito Internacional dos Direitos Humanos (IHRL)9 como o conjunto de normas subjetivas e adjetivas do Direito Internacional, que tem por finalidade assegurar ao indivíduo, de qualquer nacionalidade, inclu-sive apátrida, e independente da jurisdição em que se encontre os meios de defesa contra os abusos e desvios de poder praticados por qualquer Estado e a correspondente reparação quando não for possível prevenir a lesão10.

O direito internacional dos direitos humanos, portanto, não se encontra codificado em um único instrumento, e sim, aparece regulado em fontes diversas. Em certas ocasiões, encontra-se em declarações de princípios, sem efeitos vinculatórios, a exemplo da Declaração de Direitos Humanos da ONU. Em outras ocasiões, em convenções internacionais, com caráter sancionatório, que podem ser específicas, versando somente sobre uma matéria, como a Convenção para a Erradicação do Trabalho Infantil da OIT, ou de âmbito geral, visando à proteção de todos os direitos humanos, como a Convenção Européia de Direitos Humanos. Page 23

O âmbito espacial de validade das normas também é distinto, sendo ora de caráter universal, como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966) da ONU, que é válido em todos os continentes, ora para uma região determinada, como a Convenção Americana de Direitos Humanos, com validade somente no território americano.

Certos tratados, por sua vez, regulam um grupo importante de direitos, como os civis e políticos ou os direitos sociais, econômicos e culturais; outros se referem a um determinado direito ou a direitos de uma minoria em particular - como os direitos à não-discriminação e a não ser submetido à tortura, no primeiro caso; e os direitos das mulheres, crianças e adolescentes, idosos, negros, índios, refugiados, no segundo. Contudo, o titular dos direitos é sempre o ser humano.

Dentre os inúmeros instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos, pode-se citar: a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948); a Convenção Européia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, conhecida como Conven-ção Européia de Direitos Humanos (Conselho de Europa, 1950); o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (ONU, 1966); o Pacto In-ternacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ONU, 1966); a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (ONU, 1968); a Convenção Americana de Direitos Humanos (OEA, 1969); a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (ONU, 1979); a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes (ONU, 1984); a Convenção sobre os Direitos das Crian-ças (ONU, 1989), dentre inúmeros outros de alcance regional, como as Convenções aprovadas pela OEA e válidas para o sistema americano, as Convenções e Resoluções do Conselho de Europa, ou as Convenções Africanas e da Liga Árabe.

Em paralelo aos textos de alcance universal e abordagem geral, surgiram textos de proteção aos direitos humanos de alcance regional e abrangência setorial. [...] Por outro lado, acrescentou-se a esses textos um conjunto de tratados de alcance regional. A proteção seria mais ampla em termos de rol de direitos protegidos, mas restrita no tocante ao alcance geográfico11. Page 24

A proteção aos direitos humanos pode se originar de outros tratados, não específicos de direitos humanos, como os Tratados da União Euro-péia, do Mercosul, de Cooperação Regional, que em suas cláusulas podem conter disposições de promoção e garantia do ser humano. Ademais, no campo dos direitos humanos, aponta a doutrina para a formação de um vasto conjunto de normas internacionais não convencionais, como o costume internacional e os princípios gerais do Direito, que também são fontes do Direito Internacional dos Direitos Humanos.

Essas normas não convencionais servem para preencher lacunas jurídicas internacionais geradas pela não-adesão aos tratados de proteção aos direitos humanos por determinados Estados. Muitos desses costumes originaram-se das resoluções da Assembléia Geral da ONU, bem como das deliberações do Conselho Econômico e Social e sua Comissão de Direitos Humanos12, a exemplo da Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU, reconhecida pela Corte Internacional de...

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