Serviços Públicos Essenciais e Conflitos de Consumo: Os Tribunais Arbitrais Necessários

AutorCátia Marques Cebola
CargoDoutora em Direito e docente no Instituto Politécnico de Leiria, Portugal
Páginas135-146

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Excertos

"No que concerne à arbitragem institucionalizada, esta traduz-se na criação de estruturas arbitrais com regras e árbitros próprios, competentes para a resolução de determinados litígios no âmbito da sua competência, permanecendo em funcionamento após cada decisão arbitral, tal como se estabelece no artigo 62º da LAV"

"Os centros de arbitragem de conflitos de consumo constituem, assim, entidades institucionalizadas, competentes para a resolução através da arbitragem de litígios em matéria de direito de consumo e, no âmbito que nos ocupa, de conflitos relativos à prestação de serviços públicos essenciais"

"Independentemente da concepção de serviço público adotada, certo é que a relação jurídica entretecida nesta sede envolve como sujeitos principais o prestador do serviço, por um lado, e o utente do mesmo, por outro"

"Por litígios de consumo entende-se os que decorram do fornecimento de bens, prestação de serviços ou transmissão de quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com caráter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios"

"Dados estatísticos revelam que mais da metade dos processos resolvidos nos centros de arbitragem de conflitos de consumo findam por acordo obtido em sede de mediação e conciliação"

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Introdução

O s serviços públicos essenciais, pela impreteribilidade das necessidades que satisfazem, granjearam do legislador uma especial atenção normativa, vertida na Lei 23/96, de 26 de julho (LSP). As especificidades intrínsecas à prestação dos preditos serviços repercutem-se necessariamente na própria litigiosidade inerente a este setor, que exigirá, além do mais, uma urgente, efetiva e adequada resolução dos conflitos que emergem nesta sede.

Este objetivo terá norteado o legislador a introduzir, através da Lei 6/2011, de 10 de março, o atual n. 1 do artigo 15º da LSP, nos termos do qual "os litígios de consumo no âmbito dos serviços públicos essenciais estão sujeitos a arbitragem necessária quando, por opção expressa dos utentes que sejam pessoas singulares, sejam submetidos à apreciação do tribunal arbitral dos centros de arbitragem de conflitos de consumo legalmente autorizados". Desta norma resulta, por um lado, a consagração da arbitragem necessária neste âmbito, vinculando de forma obrigatória, ainda que unilateralmente, o prestador do serviço. Por outro lado, o legislador atribui expressamente aos centros de arbitragem de conflitos de consumo a competência para a resolução de conflitos em matéria de serviços públicos essenciais.

No que concerne ao caráter necessário da arbitragem, a sua admissibilidade à luz da Constituição da República Portuguesa tem sido afirmada pela jurisprudência do Tribunal Constitucional. A título de exemplo, o Acórdão 32/871prescreve que "depois da revisão constitucional de 1982, e face à nova redação então dada ao art. 212º, n. 2, da Constituição, passou a ser insuscetível de qualquer discussão e admissibilidade, na ordem jurídica portuguesa, de tribunais arbitrais. E, não distinguindo o preceito entre tribunais arbitrais ‘voluntários’ e ‘necessários’, não existe razão para se haverem por consentidos só os primeiros, e não os segundos. (...). Decorre do exposto, em suma, que quer já face ao texto primitivo da Constituição, quer agora, face à disposição expressa do art. 212º, n. 2, se haviam e hão de considerar admissíveis os tribunais arbitrais necessários"2.

Não obstante a pertinência da aplicação da arbitragem em matéria de serviços públicos essenciais e a sua admissibilidade constitucional, a prescrição normativa ínsita no artigo 15º da LSP tem repercussões na prática dos centros de arbitragem de conflitos de consumo, podendo contender, em alguns aspectos, com a realidade vigente nestes tribunais arbitrais, como veremos no presente trabalho.

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1. Arbitragem necessária: uma prerrogativa unilateral do consumidor

O artigo 15º da LSP consagra, como referimos, a arbitragem necessária para a resolução de conflitos em matéria de serviços públicos essenciais3. Contudo, esta obrigatoriedade é unilateral, uma vez que apenas vincula o prestador do serviço. De fato, decorre da predita norma que para o utente do serviço a arbitragem mantém o seu caráter voluntário, assente no princípio da autonomia da vontade, podendo este optar por resolver o seu conflito ou pelas vias judiciais ou pela arbitragem. Contudo, se o utente optar pela arbitragem, ao abrigo do artigo 15º da LSP, o prestador do serviço está vinculado à apreciação do litígio pelo tribunal arbitral, sendo para este uma via obrigatória ou necessária, que ele não pode recusar.

Esta prescrição tem duas consequências jurídicas relevantes. Por um lado, torna desnecessária a celebração de uma convenção de arbitragem, bastando que o utente de um serviço público essencial apresente a sua reclamação junto de um centro de arbitragem de conflitos de consumo para que o processo siga os seus termos nesta entidade. Por outro lado, se o prestador do serviço intentar uma ação relativa a um conflito em matéria de serviços públicos essenciais, pode o utente demandado invocar por exceção a preterição de tribunal arbitral necessário4.

A opção pela via da arbitragem suspende, nos termos do n. 2 do artigo 15º da LSP, os prazos de prescrição consagrados no artigo 10º, nos 1 e 4, da mesma lei, reforçando-se, desta forma, a possibilidade de recurso aos tribunais arbitrais.

2. Os centros de arbitragem de conflitos de consumo

O artigo 15º, n. 1, da LSP, comete aos centros de arbitragem de conflitos de consumo a resolução dos litígios relativos aos serviços públicos essenciais, optando de forma expressa pela arbitragem institucionalizada e excluindo a possibilidade de criação pelas partes de um tribunal arbitral ad hoc.

Traçando a distinção entre ambas5, cumpre indicar que na arbitragem ad hoc está em causa a criação pontual de um tribunal arbitral para a resolução de um determinado litígio, tribunal que se extingue após a tomada de decisão pelos árbitros. Deste modo, a existência de um tribunal arbitral ad hoc depende do surgimento efetivo de um conflito entre as partes, apenas se constituindo quando seja necessário e que se extingue uma vez decidido o litígio6. A sua criação exige a celebração de uma convenção de arbitragem, a escolha do(s)

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árbitro(s) e, ainda, a determinação das regras de procedimento aplicáveis, nos termos regulamentados na atual Lei da Arbitragem Voluntária - Lei 63/2011, de 14 de dezembro (LAV).

Desta feita, compreende-se a preferência legislativa pelos centros de arbitragem de conflitos de consumo manifestada no artigo 15º da LSP, uma vez que as diligências inerentes à constituição de um tribunal ad hoc consumirão tempo e implicarão esforços difíceis de compaginar com a celeridade reclamada na resolução de conflitos relativos aos serviços públicos essenciais. Acresce que a tramitação necessária à criação ex novo de um tribunal arbitral poderia provocar a desistência das partes e a opção pelas vias judiciais ou mesmo a renúncia à própria resolução do conflito7.

A natureza jurídica dos serviços públicos essenciais não granjeia consenso na doutrina

No que concerne à arbitragem institucionalizada, esta traduz-se na criação de estruturas arbitrais com regras e árbitros próprios, competentes para a resolução de determinados litígios no âmbito da sua competência, permanecendo em funcionamento após cada decisão arbitral, tal como se estabelece no artigo 62º da LAV. Os centros de arbitragem de conflitos de consumo constituem, assim, entidades institucionalizadas, competentes para a resolução através da...

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