Sentença

AutorManoel Antonio Teixeira Filho
Páginas1187-1378

Page 1187

1. O ofício de julgar

O homem - já o disse Aristóteles - é um ser gregário. Repugna, pois, em princípio, à sua natureza a vida solitária e isolada. Os anacoretas e os eremitas constituem, por isso, exemplos algo anômalos, no conjunto da espécie.

Não pretendemos, com estas considerações, iniciar um exame sociopolítico dos motivos que, agindo poderosamente sobre o espírito do ser humano, fizeram-no procurar aproximar-se do seu semelhante, seja para efeito de convivência permanente, de relacionamento fugaz ou de intercâmbio. Em todo caso, sabemos que o homem primitivo se agrupou por um imperativo de sobrevivência, como forma de defender-se de animais predadores, de indivíduos hostis, de outros grupos beligerantes, ou, mesmo, de fatos da natureza (raios, terremotos, cataclismos, enfim). O ato de agrupar-se constituiu, portanto, o húmus que, a partir de Aristóteles, iria fazer brotar, mais tarde, com Augusto Comte, a sociologia científica, a cujo estudo se dedicaram, dentre outros, Gabriel Tarde (Le Lois de l’Imitation), defensor do nominalismo e Émile Durkheim (Les Règles de la Méthode Sociologique), ligado ao realismo sociológico de Platão, sem omitirmos as preciosas contribuições de Max Weber, Georg Simmel e, mais recentemente, de Louis Recaséns Siches. O nominalismo é uma posição teórica, em matéria de ontologia sociológica, consistente em negar maior substância ao social, que, assim, ficaria reduzido a, praticamente, um nome. Melhor seria chamá-lo de relacionismo, cuja tese é menos radical do que a do nominalismo (MACHADO NETO, A. L.; MACHADO NETO, Z. Sociologia Básica. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1983. p. 73). O relacionismo também constitui um pensamento doutrinário, em matéria de ontologia sociológica, que atribui ao ser (onthos) da sociedade a substância de uma coisa (res) (idem).

O homem, todavia, é um ser que possui interesses. Sob esse aspecto, pode-se dizer que a sociedade é formada por uma complexa rede de interesses individuais, que são refreados pelo interesse coletivo ou público, sem que, com isso, aqueles sejam cancelados ou não possam ser realizados. A vida em sociedade, com suas múltiplas inter-relações, não tardou, porém, em provocar a coincidência de duas ou mais pessoas manifestarem interesses sobre o mesmo bem ou utilidade da vida, sem que uma delas renunciasse a essa pretensão. Surge, então, o conflito de interesses, que, no início, era solucionado pelos próprios indivíduos nele envolvidos (período da autotutela ou da autodefesa), passando, depois, a ser dirimido, em caráter monopolístico, pelo Estado (Justiça Pública).

O conflito intersubjetivo de interesses, que passou a ocorrer, com frequência, entre os componentes do grupamento humano socialmente organizado, deu origem, nos tempos

Page 1188

modernos, à figura do juiz, a quem se incumbiu, institucionalmente, a tarefa de resolver, com neutralidade, tais conflitos. Em rigor, convencendo-se da inconveniência do sistema da autotutela, os indivíduos, em determinado momento histórico, preferiram eleger árbitros, confiando-lhes o encargo de harmonizar os conflitos em antagonismo. Essa arbitragem era exercida, em geral, pelos sacerdotes ou pelos anciãos. As decisões dos árbitros eram baseadas, quase sempre, nos usos e costumes e nos princípios morais da coletividade. A judicatura, em seu caráter formal (e oficial), como hoje é conhecida, é posterior à arbitragem, conquanto não seja com ela inconciliável. Certos sistemas legais, a propósito, mantêm ambas as formas de solução dos litígios, como ocorre no Brasil, segundo revela a Lei n. 9.307/96. No processo do trabalho, a arbitragem é prevista, de modo geral, no plano das ações coletivas (CF, art. 114, § 1.º), sendo, nas individuais, realizada pelo Ministério Público do Trabalho.

Se penetrarmos nas entranhas da História, veremos que os diversos povos antigos cuidaram de organizar, de acordo com as suas necessidades e suas inclinações éticopolítico-religiosas, um sistema de Justiça, capaz de permitir a solução dos entrechoques de interesses, amiúde estabelecidos, e, por esse motivo, perturbadores da estabilidade das relações sociais. É o que faremos, a seguir, embora a voo de pássaro.

1.1. Egito

Em geral, os crimes comuns e as causas de pequena monta eram apreciados pelos juízes singulares existentes nas diversas cidades egípcias. As causas mais graves eram julgadas por um tribunal superior, composto de trinta sacerdotes, que eram denominados “auditores das queixas do Tribunal de Justiça” (soutnou en os kat en mã). Esses julgadores eram muito bem remunerados. Do ponto de vista do procedimento, é interessante observar que todos os debates eram realizados por escrito. A sentença era proferida em sessão secreta; nessa oportunidade, o presidente do tribunal voltava a efígie de Mã, a Deusa da Verdade (que a trazia no colar como símbolo do cargo), para a parte vencedora, proclamando, desse modo, a decisão.

Posteriormente à 21.ª dinastia, as cidades de Heliópolis, Mênfis e Tebas passaram a contar com tribunais compostos de sacerdotes, a quem se cometia o encargo de julgar (secretamente). Acima deles havia, em Tebas, uma Corte Suprema.

A despeito dessa organização judiciária, a História demonstra que o rei podia, a seu livre arbítrio, avocar qualquer feito, para reexaminá-lo, modificando a decisão dada pelos juízes.

1.2. Pérsia

Numa tradição fortemente arraigada em vários povos, os persas escolhiam os seus juízes dentre os...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT