O papel da regulação em aspectos sensíveis do biodireito: um estudo de caso do conselho federal de medicina

AutorTailine Fátima Hijaz - Paulo Henrique Burg Conti
CargoAcadêmica do Curso de Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC) - Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Páginas460-481

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Introdução

Nos últimos tempos, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, houve um considerável crescimento da atividade normativa da Administração Pública. A partir dessa constatação, verificou-se que inúmeras questões sensíveis, relacionadas ao biodireito, passaram a ser tratadas apenas por atividade normativa administrativa, o que evidencia uma mudança de ótica no Direito, uma vez que os referidos assuntos deveriam ser regulados, tradicionalmente, por lei.

Para ilustrar a questão, o caso do Conselho Federal de Medicina, objeto de estudo do artigo, traz alguns exemplos interessantes, como a normatização das Técnicas de Reprodução Assistida (TRAs), dentre elas a fertilização in vitro e a maternidade por substituição (popularmente conhecida como barriga de aluguel), ambas disciplinadas por resolução (BRASIL, 2011-a); a normatização da cirurgia de transgenitalização, também por resolução do CFM (BRASIL, 2011-b); a normatização da limitação consentida de tratamento, por resolução do CFM (BRASIL, 2011 -c), bem como por portaria do Ministério da Saúde (BRASIL, 2011 -d)2.

Assim, para alcançar o objetivo principal de análise da legitimidade da atuação normativa da Administração Pública nos temas sensíveis relativos ao biodireito, dividiu-se o artigo em alguns momentos fundamentais. Primeiro, (a) far-se-á uma análise conceitual dos princípios da legalidade administrativa e da juridicidade, bem como da sua compreensão na ordem jurídica brasileira atual. Posteriormente, (b) partir-se-á para o estudo dos aspectos constitucionais da delegação legislativa para, depois, (c) analisar o Conselho Federal de Medicina no que diz respeito, principalmente, à sua personalidade jurídica e atribuições. Por fim, (d) busca-se selecionar algumas resoluções do CFM pertinentes ao escopo de avaliar, com base nos conceitos anteriormente estudados, se o Conselho Federal de Medicina está ultrapassando os limites fixados em suas atribuições.

Salienta-se que esse artigo parte de indagações levantadas dentro de projeto de pesquisa financiado pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação

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Científica e pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (PIBIC-UNESC), que tem por tema a investigação do papel da regulação em aspectos sensíveis do biodireito com base em um estudo de caso de algumas resoluções editadas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM).

1. Os princípios da legalidade administrativa e da juridicidade na ordem jurídica brasileira

No ordenamento jurídico brasileiro, o princípio da legalidade, em sua forma genérica, encontra-se previsto no artigo 5o, II, da Constituição Federal. Da leitura do dispositivo, pode-se depreender que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa sen o em virtude de lei" (BRASIL, 2011-e). Em suma, a regra indica que cabe somente à lei a criação de deveres e obrigações, isto é, qualquer ato que interferir com o direito de liberdade e propriedade dos indivíduos necessita de lei prévia que o autorize (BARROSO, 2006). No que diz respeito ao direito administrativo, há que se ressaltar o disposto no caput do artigo 37 da Constituição, o qual indica que a Administração Pública deve atuar conforme a lei e o Direito3.

De outro lado, a literatura especializada indica que a legalidade administrativa pode operar em duas dimensões fundamentais: como princípio do primado da lei ou como princípio da reserva de lei (CORREIA, 1987; ABREU, 1987). Em suma, o princípio do primado (ou supremacia, preferência e prevalência) da lei estabelece que toda atividade administrativa deve respeitar estritamente as determinações legais, sob pena de invalidade (ANDRADE, 2010). Durante o liberalismo clássico o princípio do primado da lei era considerado apenas em seu sentido negativo, isto é, a Administração Pública não poderia praticar qualquer ato que fosse contrário à norma legal (DIAS; OLIVEIRA, 2008). Porém, tal princípio sofreu modificação no seu entendimento, pois, atualmente, a lei deixa de ser apenas

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limite, passando também a pressuposto e fundamento de toda a atividade administrativa (DIAS; OLIVEIRA, 2008)4

Já o princípio da reserva de lei, sobretudo no período liberal, se subdividia em uma tripla reserva: orgânica (a lei seria um domínio normativo exclusivo do parlamento), funcional (a emissão de leis corresponde a uma função específica, a função legislativa) e material (as leis identificam-se com as normas jurídicas, as quais seriam exclusivamente as normas relativas à esfera da liberdade e da propriedade dos cidadãos). É exatamente desta sistemática que resulta o monopólio parlamentar de emiss o de "normas jurídicas" e uma correspondente zona de administração estritamente vinculada à lei (ANDRADE, 2010; DIAS; OLIVEIRA, 2008).

Registra-se que a noção tradicional de tripla reserva não possui hoje o mesmo sentido que detinha na época liberal. Conforme Dias e Oliveira (2008), em relação à legislação portuguesa, a reserva orgânica restou alargada, pois, em que pese manter o Parlamento a competência legislativa mais importante, de fato, o Governo também possui essa competência, como se verá posteriormente. Da mesma forma, a reserva material, bem como a funcional, não têm mais tanto sentido, afinal, é pacífico que o Direito não é mais entendido somente como lei. Em relação à reserva funcional, houve um grande alargamento no âmbito da reserva de lei, para além da liberdade e propriedade dos cidadãos (DIAS; OLIVEIRA, 2008).

No que se refere à reserva de lei estabelecida constitucionalmente, Binenbojm (2008) destaca seis espécies, sob três perspectivas distintas. Em síntese, o autor indica que a reserva de lei pode ser (a) formal (quando certa matéria só pode ser tratada por lei em sentido formal, ou seja, o ato normativo primário editado pelo Parlamento) ou material (quando a Constituição não exige a emanação de lei em sentido formal, mas de ato normativo com força de lei); (b) absoluta (quando a Constituição exigir que toda a matéria relativa à determinada questão, notadamente no que se refira a restrições a direitos fundamentais, deva estar contida na lei, não havendo espaço para delegação legislativa) ou relativa (quando a Constituição se

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contentar apenas com o estabelecimento de parâmetros gerais pela lei); (c) qualificada ou não qualificada (estabelecimento ou não, no texto constitucional, de meios e/ou finalidades específicos, que deverão pautar a restrição a direitos fundamentais)5

Partindo dessas premissas, é certo que o princípio da legalidade administrativa foi permeável a "quase infinitas gradações" impressas pelos diversos ordenamentos jurídicos desde os seus primórdios (CORREIA, 1987). De fato, beira ao truísmo afirmar que o princípio em estudo não pode mais ser concebido exatamente como era outrora. As sociedades evoluíram e incontáveis mudanças, operadas principalmente na segunda metade do século XX, tiveram como consequência a ampliação e a diversificação das relações entre a Administração e o Direito.

Sob uma perspectiva sintética, constata-se que com o surgimento do Estado Social de Direito (Estado de Bem-Estar Social, Welfare State ou Estado providência), foram criadas uma série de atribuições à Administração Pública que não estavam expressamente previstas em diplomas normativos (BINENBOJM, 2008). Além disso, da evolução e diversificação das relações entre Estado e Administração, surgiram questões que demandavam soluções rápidas e eficientes em termos de legislação. É nesse sentido que Clève (2000) problematiza a "sociedade técnica", que contribuiu de forma considerável para a ampliaç o da atividade normativa da Administração Pública.

No cenário sumariamente desenhado acima, faz-se premente uma nova forma de se pensar a legalidade administrativa e demais institutos jurídico-administrativos. Assim, segundo alguns autores, esse novo modelo de direito administrativo perpassa pelo seu processo de constitucionalização, erigindo-se aqui o princípio da juridicidade. De acordo com esse princípio, "deve ser a Constituiç o, seus princípios e especialmente seu sistema de direitos fundamentais, o elo de unidade a costurar todo o arcabouço normativo que compõe o regime jurídico administrativo" (BINENBOJM, 2008, p. 36). Percebe-se que a consagração do

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princípio da juridicidade não aceita a ideia da Administração vinculada exclusivamente às regras prefixadas nas leis, mas sim ao próprio Direito, o que inclui as regras e princípios previstos na Constituição (OLIVEIRA, 2010).

Ademais, diante do crescimento da atividade normativa da Administração Pública e das novas incursões teóricas acerca da noção de juridicidade, alguns estudiosos passaram a sustentar que a Administração não se apresenta mais como uma simples instância de execução das normas estabelecidas pelo Poder Legislativo. Ao revés, hodiernamente erige-se como verdadeira fonte normativa, que, por seu volume numérico e importância prática, acaba preponderando sobre a lei formal (BINENBOJM, 2008; TOJAL, 2003).

Em que pese a consistente fundamentação utilizada pelos supracitados autores, não se olvida que a hipótese do Poder Executivo atuar de forma a exceder os seus limites institucionais, sob pena de ofender a Constituição Federal, mostra-se deveras latente. A verdade é que, com isso, estaria se colocando em risco as liberdades...

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